Severino Francisco
Venício A. de Lima, professor aposentado da UnB, foi um dos primeiros a ministrar, no Brasil, cursos sobre os estudos culturais com base no trabalho do sociólogo jamaicano Stuart Hall. Durante o doutorado, nos EUA, na Universidade de Ilinois, ele entrou em contato com a vertente de estudos da cultura que propunha abordar a comunicação não mais como uma fórmula matemática de emissor e receptor, mas sim como sistema simbólico complexo. Esse interesse o levou até a obra de Stuart Hall, que não criou os estudos culturais, mas ampliou o seu campo e se tornou o mais brilhante e influente pesquisador. Questões como as do impacto da mídia na formação social, da cultura como espaço de criação valores, da afirmação das minorias étnicas e do multiculturalismo saltaram do âmbito restrito da academia e ganharam o espaço do debate público.
Nascido em 1932 em Kingston, na Jamaica, Hall encarnou, dramaticamente, na própria biografia, as disparidades, as singularidades e as contradições contemporâneas. Filho de pai inglês e mãe jamaicana, estudante na Inglaterra, se interessou pelas manifestações culturais dos povos marginalizados. Na trilha dos estudos pioneiros de Raymond Williams, de Richard Hoggart e de Antonio Gramsci, questionou, audaciosamente, os dogmas da esquerda ortodoxa. O mais célebre era o de que a cultura era um subproduto da economia. Mas a grande contribuição de Hall foi ampliar o campo de temas dos estudos culturais para os limites da raça, da sexualidade, dos gêneros e do multiculturalismo.
Nesta entrevista, Venício fala sobre seu encontro com Stuart Hall, o legado de suas ideias, a importância do pensamento do jamaicano para os estudos de comunicação e as conexões com o Brasil, entre outros temas.
Como foi seu contato com os estudos culturais e com a obra de Stuart Hall?
Venício A. de Lima – Fiz o doutorado em um instituto tradicional dos EUA, na Universidade de Illinois, que, na época, era um local onde se debatiam os estudos culturais. A referência era um professor pouco conhecido no Brasil, James W. Carey. Ele estava orientando uma tese de doutorado de um aluno chamado Lawrence Grossberg, no fim da década de 1970. Grossberg havia estudado no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham, onde o Stuart Hall já era a figura principal. Minha tese de doutorado era uma tentativa de pensar as questões da comunicação via Paulo Freire na perspectiva de um estudo cultural latino-americano. Tomei contato com o trabalho do CCCS por causa do tema da minha tese. Me interessava saber como a comunicação afetava a cultura. Anos depois, assisti a uma conferência de Stuart Hal, em 1988, quando fui à Inglaterra com uma ajuda do Conselho Britânico.
Que impressão Stuart Hall passava?
V.A.L. – Era uma figura diferenciada, um cara fascinante. Tinha uma presença física muito forte e falava muito bem, em um inglês claro. Era jamaicano e não tinha aquele sotaque que dificulta a compreensão de quem, como eu, tem uma formação norte-americana. Convergiam na figura e na circunstância biográfica dele uma série questões que passaram a ser centrais no estudo da cultura e da mídia.
Que questões ele catalisava?
V.A.L. – É preciso colocá-lo na perspectiva mais ampla de uma tendência que se desenvolve na Inglaterra e não começa com ele. Ele abraça essa tendência e a acaba se tornando a grande expressão dos estudos culturais. Depois da Segunda Guerra, durante as décadas de 1940 e 1950, na Europa , e especialmente na Inglaterra, há uma questionamento muito forte sobre a visão tradicional do economicismo do marxismo ortodoxo sobre a cultura.
A visão de que a cultura seria um subproduto da economia…
V.A.L. – Isso tem uma abrangência muito grande no marxismo ocidental. Esse questionamento está presente nos pensadores da Escola de Frankfurt e, sobretudo, ficou associado ao pensamento do italiano Antonio Gramsci. Na Inglatarra, se dá em torno de alguns trabalhos importantíssimos. Valeria a pena mencionar três figuras: Richard Hoggart, autor de The uses of literacy, tem um argumento interessante: mostra como a cultura de massa surgiu, na Inglaterra, com o livro de bolso. Lá, a classe operária é diferente de qualquer outro lugar. O Raymond Williams, figura extraordinária na revalorização da cultura como elemento essencial de constituição da sociedade. E o terceiro é E. P. Thompson, autor do famosoThe Making of the English Working Class.
Qual é a virada que eles promovem no campo do pensamento sobre a cultura?
V.A.L. – A de que a criação cultural vai muito além da determinação econômica, envolvendo o eixo de disputa do poder, a significação social e a produção dos sentidos. Quando o centro de Birmingham é fundado, a característica principal era uma reavaliação do papel da cultura no mundo contemporâneo. Desde que entrei na universidade como aluno meu interesse era compreender o papel da mídia nas transformações que ocorrem na sociedade. E o interessante é que o centro tinha um caráter multidiscplinar: reunia pessoas de história, da sociologia, da antropologia, da literatura e da comunicação. O trabalho era organizado em grupos de estudos transdisciplinares. Há um novo entendimento de cultura e de comunicação. A comunicação é entendida como um sistema simbólico abrangente, locus da disputa do poder.
Qual a contribuição de Stuart Hall no sentido da ampliação dos estudos culturais?
V.A.L. – No começo dos anos 1980, a ideia de estudos culturais se consolida no sentido da preocupação com diversidade e a disputa de poder. É nesta época que proliferam os grupos de estudos sobre raça, gênero e mídia. Toda essa preocupação com multiculturalismo e identidade surge lá. Veja só: ele era um negro jamaicano, filho de uma relação multirracial, o pai era negro e a mãe branca. Já era diferente do modelo familiar tradicional, vinha de uma colônia inglesa em luta pela emancipação, como era excelente aluno ganhou bolsa de estudos para estudar em Oxford. Vai para a Inglaterra e inclui mais uma situação inusitada em sua vida: casa-se com uma inglesa tradicional, professora de história. Nele convergem, portanto, muitas contradições das mundo contemporâneo.
Que mudanças Stuart Hall promoveu, especificamente, no pensamento sobre a comunicação?
V.A.L. – O debate sobre as comunicações era feito a partir de um modelo positivista, matemático, de transmissão de informação entre um emissor ativo e um receptor passivo. Então, os estudos culturais deslocaram completamente o eixo para a discussão da dinâmica cultural e para como a cultura pop interage com essa teia de significação. É uma mudança completa de foco.
Em que medida o debate acadêmico promovido por Stuart Hall migrou para o espaço público?
V.A.L. – Na Inglaterra, migrou de uma forma muito clara com as intervenções que ele fez no debate durante a era de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, com a ascensão do neoliberalismo. Hall forjou inclusive o termo “thatcherismo”. Isso acaba levando ao fechamento do CCCS em 2002.
Mas até que ponto as ideias dele suscitaram políticas públicas?
V.A.L. – Muitas das coisas que começaram em Birmingham se tornaram questões e políticas públicas: o reconhecimento do mundo patriarcal e a emergência do feminismo, a valorização multiétnica e racial.
O pensamento dele é importante no sentido de interpretar o caráter híbrido da cultura brasileira?
V.A.L. – No Brasil, existem pesquisadores que trabalham com música popular, com literatura, com cinema e com identidade, influenciados por Stuart Hall. Ele é uma pessoa difícil de aprisionar dentro das classificações acadêmicas.
Gilberto Freyre não teria antecipado os estudos culturais ao mostrar que, mesmo subjugados do ponto de vista das relações de poder, os negros africanos devoraram a cultura dos senhores da senzala?
V.A.L. – Concordo, mas com uma diferença fundamental: a matriz interpretativa era diversa dos estudos culturais ingleses, de origem marxista, com uma ótica de análise nas relações de classe. Gilberto Freyre não tem afinidade com essa linha de investigação.
Qual a influência de Stuart no pensamento sobre a mídia no Brasil?
V.A.L. – No debate acadêmico sobre a mídia no Brasil, a influência dele foi mínima. Tenho uma hipótese: a comunicação e a importância da mídia privada na construção contemporânea no Brasil é completamente distinta da Inglaterra. No caso inglês, o sistema majoritário da mídia é, historicamente, público e não privado. Não se exige diploma para exercer a profissão. No Brasil, prevalece a especialização norte-americana, o que nos coloca no polo oposto de Hall. Para ele, o debate sobre a comunicação não pode ser departamentalizado. É algo de interesse multiciscplinar. Ele se interessa pelas manifestações culturais, pelas tribos urbanas, pelas novas formações étnicas, pela identidade.
O pensamento engajado de esquerda tende a ser dogmático em razão do interesse na transformação social. Em que medida Stuar Hall escapou desta sina?
V.A.L. – Ele falava que era preciso praticar um “marxismo sem garantias”, quer dizer, sem determinismos. Não basta ter uma posição, é preciso conhecer o pensamento do adversário para refutá-lo de uma maneira competente e convincente. Não cultivamos essa qualidade na tradição brasileira, nós rejeitamos sem conhecer.
Na era virtual, há uma pulverização nas formas de transmissão, acesso e consumo da cultura e da informação. Isso não muda tudo?
V.A.L. – Nenhuma das palavras que você usou faz parte do vocabulário conceitual dos estudos culturais. Junto com as novas tecnologias, vem junto um vocabulário que aprisiona o pensamento. Muda muita coisa, mas ainda mudou relativamente muito pouco. Pesquisa recente no Brasil mostra que, apesar de todo avanço do mundo digital, a maior fonte de informação e de formação de valores continua sendo a velha mídia da tevê aberta para 84% da população. Não sabemos ainda para onde isso tudo está caminhando. Há muitas mudanças importantes. Muito mais gente está tendo voz no espaço público, mas, no caso brasileiro, ele continua controlado por poucos grupos privados.
Fonte: Observatório da Imprensa
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