Subordinação Racial no Brasil e na América Latina

PREFÁCIO

Por Arivaldo Santos de Souza Enviado para o Portal Geledés

Subordinação Racial no Brasil e na América Latina é o livro que eu gostaria de ver traduzido para o Português e publicado no Brasil. Ao conhecer a autora e a sua obra, percebi que havia encontrado uma peça importante de um quebra-cabeça: o papel do direito na coordenação das relações raciais no hemisfério americano.

A autora desafia a narrativa tradicional do passado legal racialmente benigno da América Latina. Tanya Hernandez disseca o direito costumeiro de regulação racial e analisa o desenvolvimento contemporâneo de legislações de igualdade racial na América Latina. Para tanto, examina costumes legais e a histórica cumplicidade dos Estados latino americanos com a criação e manutenção de hierarquias raciais.

Como o leitor verá ao final, a autora empreende o esforço também por interesse próprio, vez que os Estados Unidos continuam a enfrentar graves desafios nessa seara, ao mesmo tempo em que observam mudanças no padrão das relações raciais. Alguns chamam essa tendência de latinoamericanização das relações raciais. Não é surpreendente, contudo, que a autora seja filiada a uma universidade estadunidense.

A sociedade daquele país se acostumou a pensar de forma hemisférica, assim a América Latina enquanto objeto de estudo tem lugar na academia daquele país. Infelizmente, a academia brasileira (inclusive no que diz respeito ao direito, e ao direito e as relações raciais), dificilmente, recorre aos vizinhos para comparações e aprendizados. Por termos o próprio Estados Unidos e a Europa como objeto preferencial de comparação e inspiração, acabamos por deixar uma lacuna em algumas áreas de estudos.

O livro de Tanya Hernandez, a um só tempo, preenche uma lacuna na literatura jurídica, das ciências sociais e das ciências humanas. Ao estudar o direito costumeiro latino americano do período pós-escravidão, a autora dá visibilidade ao legado do período abordado não só para a história dos países latinos, mas também para a vida das pessoas que neles vivem nos dias de hoje.

A abordagem do livro inaugura um novo capítulo no estudo do direito e das relações raciais. No plano geral, sem perceber, desafia o complexo de vira lata dos brasileiros, vez que coloca o país e algumas de suas políticas públicas como a vanguarda latino americana de promoção da igualdade racial. Outrossim, reinvidica a área de estudos para os juristas, visto que os antropologos reinam soberanos até o momento.

O livro é original também porque, do ponto de vista metodológico, toma como referência o direito costumeiro e não o direito legislado. Do ponto de vista do conteúdo, oferece motivos para que se amplie a área temática dos estudos na área, em cuja predomina uma atitute pouco criativa e pouco produtiva de estudos quase exclusivos sobre ações afirmativas e diferenciações entre crime de racismo e injúria racista.

Em particular no último caso, a autora critica diretamente a esperança desproporcional que é depositada no direito criminal enquanto resposta jurídica à longa história de marginalização e negação do racismo. Indiretamente, abre espaço para uma crítica mais integral que, embora aceite que parte dos nossos problemas tem a ver com o legado da escravidão, também percebe que grande da responsabilidade das desigualdades raciais na região tem a ver com as diferentes configurações do Estado Desenvolvimentista.

Arriscaria incluir a era nacional-consumista levada a cabo pelo Partido dos Trabalhadores. Estatudo da Igualdade Racial sem orçamento que o viabilize e a redução da participação em espaços de poder a secretarias e ministérios de promoção da igualdade racial, nas palavras da Ministra Luiza Bairros, são meros sinais da minoridade política dos negros na cena política nacional.

Como nem tudo são flores, devo também dizer que a obra apresenta lacunas. Algumas dizem respeito a atualizações legais, outras dizem respeito a omissões importantes. Obras de alguns autores brasileiros que se debruçaram sobre tais temas teriam muito a contribuir com o livro. Notadamente: Fernando Henrique Cardoso, Lilia Moritz Schwarcz, Octávio Ianni, Florestan Fernandes e Gilberto Freyre. Tais autores ajudariam a explicar melhor a moldura econômica e institucional na qual as transformações sócio-culturais ocorreram. Similarmente, dariam uma ideia mais precisa das fraturas nas elites e da cooptação de oprimidos.

Apesar das lacunas, algo particularmente interessante na obra ora prefaciada é que a mesma abre e aponta caminhos para onde podemos seguir, não somente rumos acadêmicos, mas também opções de políticas públicas. O livro abre caminhos para refletir sobre o que realmente importa: o esgotamento da capacidade de obter conquistas por meio da atual institucionalidade brasileira.

A versão brasileira ganhou o nome de “Subordinação Racial no Brasil e na América Latina” (o título da versão original é “Subordinação Racial na América Latina”) para deixar claro que o livro também trata do Brasil, aliás com destaque; e também para individualizar o Brasil no contexto continental, à luz da nossa ainda mal resolvida identidade latina.

Agradeço a autora, a co-tradutora, a editora, a José Garcez Ghirardi e a todas as pessoas que acreditaram na ideia e colaboraram para o sucesso do projeto.

Leia a obra completa aqui:  http://bit.ly/2odC65o

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