Sou quilombola

Parte das terras da Fazenda Soares, que pertencera a meu bisavô, o negro João de Deus Neves, foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

Um ano atrás, eu desembarquei na Bahia em busca de minhas origens familiares. Já me sabia descendente do povo balanta, da Guiné-Bissau. Faltava pisar a terra que pariu as três gerações de mulheres que me antecederam. Assim, chegamos eu e minha única filha, Isabela, a Salvador e, três dias depois, a Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano que guardava histórias de minha mãe, de meus tios e tias, avós e bisavós maternos. Numa sucessão de supostas coincidências — pessoas de fé sabem que não foram obra do acaso, mas puro destino — encontramos certidões, documentos e endereços, ouvimos relatos de antigos vizinhos, velhos conhecidos e uma parente, até então, desconhecida. A dois dias do fim da semana de visita, a descoberta. Parte das terras da Fazenda Soares, que pertencera a meu bisavô, o negro João de Deus Neves, fora reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como a Comunidade Remanescente de Quilombo Tabuleiro da Vitória.

Por ascendência, sou quilombola.

A longa introdução é para dar a medida da emoção de ocupar o centro de uma roda de mulheres no quilombo Maria Joaquina, divisa entre Cabo Frio e Armação dos Búzios. A linhagem, que, trazida de África, se acostou na Bahia, veio dar no Rio de Janeiro, estado onde nasci e me reproduzi. Sábado passado, primeiro aniversário da visita a Cachoeira — outra falsa coincidência — fui à Região dos Lagos para a quinta oficina da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Foi o último capítulo de um roteiro de construção de protagonismo feminino, que passou pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Piauí e Ceará antes de alcançar o território fluminense.

Postas em círculo, cerca de 60 mulheres — e também uma dúzia de homens, um punhado de crianças — debateram com afeto e vigor acesso à terra, desigualdade de gênero, violência doméstica, extermínio de jovens negros, empreendedorismo, trabalho e renda. Em respeito à ancestralidade, pisei descalça na terra batida onde — soube ontem — ficava o Terreiro de São Jorge, Ogum no sincretismo, para falar sobre o impacto das reformas do Estado na população negra, mulheres, em particular. Como são maioria entre pobres, pouco escolarizados, moradores de habitação precária, desempregados, informais, pretos e pardos sofrerão mais com o arrocho orçamentário na saúde, na educação, na assistência social e com o endurecimento das regras de acesso à previdência e aos benefícios de prestação continuada.

O Brasil tem 2.849 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, mas somente 86 já conseguiram título de propriedade do Incra; 82 estão na fase final do processo, com decreto de desapropriação pronto ou publicado no Diário Oficial da União. O Estado do Rio tem 34 áreas certificadas, três tituladas — Campinho da Independência (Paraty), Preto Forro (Cabo Frio) e Marambaia (Mangaratiba) — e duas na etapa derradeira — Santana (Quatis) e Cabral (Paraty). Outras quatro — Sacopã (Rio de Janeiro), Alto da Serra do Mar (Rio Claro e Angra dos Reis), São Benedito (São Fidélis) e Botafogo-Caveira (São Pedro da Aldeia) — têm portaria de demarcação territorial publicada e esperam a assinatura do decreto presidencial.

A luta dos quilombolas é por terra, direitos sociais, trabalho e renda. No quilombo Maria Joaquina, a comunidade quer recuperar o velho moinho de farinha, destruído pelo efeito do tempo e pelas fortes chuvas de 2016, para produzir tapioca, derivado mais valorizado da mandioca nos dias de hoje. Da vegetação do terreno, saem banana, carambola, abacate e noni, o fruto a que os antigos atribuem efeitos benéficos à saúde. Nenhuma fruta é vendida; são consumidas pela comunidade ou doadas aos vizinhos. Porque as comunidades quilombolas nasceram da luta pela liberdade, mas também das tradições culturais e religiosas, dos modelos tradicionais de produção, dos laços familiares e das redes de solidariedade do povo oprimido.

 

+ sobre o tema

A professora da creche cortou o cabelo crespo, da menina de um ano, dizendo ser duro, ruim de pentear- disse a mãe, na Omode

A Omode Roda de Conversa Sobre Crianças e Infâncias Invisíveis, aconteceu...

‘Não queria sair de casa’, diz jovem que sofreu racismo nas redes sociais

Maria das Dores foi hostilizada ao postar uma imagem...

Superliga de vôlei recebe multa de 50 mil por racismo

Racismo rende nova multa recorde de R$ 50...

para lembrar

Eduardo Pereira da Silva: Os gorilas invisíveis no processo penal brasileiro

Há pouco mais de dez anos, os psicólogos estadunidenses...

Obama limita a entrega de material militar à polícia

Presidente aplica recomendações feitas por um comitê depois dos...

“Se Deus vier que venha armado”: entre a arte e a realidade

Primeiro longa-metragem do diretor Luis Dantas retrata violência que...

Começa nos EUA novo julgamento sobre morte de negro pela polícia

Um emblemático julgamento pelo homicídio de um homem negro...
spot_imgspot_img

Elites que se tornaram uma caricatura

Em salões decorados com obras que ninguém sabe explicar e restaurantes onde o nome do chef vale mais que o sabor da comida servida, uma parte da elite...

Festa de São Jorge é a utopia de um Rio respeitoso e seguro

Poucas celebrações são mais reveladoras da (idealizada) alma carioca e, ao mesmo tempo, do fosso de brutalidade em que nos metemos. Todo 23 de...

Belém e favela do Moinho, faces da gentrificação

O que uma região central de São Paulo, cruzada por linhas de trem, a favela do Moinho, tem a ver com a periferia de Belém, sede...
-+=