Levei um tempão para assimilar o falecimento de Valdete da Silva Cordeiro, criadora das Meninas de Sinhá (1989), aos 75 anos, em 14.1.2014. Tinha aura de eterna a mineira de Barra, na Bahia (1938). Veio para BH, com sua madrinha, aos 5 anos. Estudo? Até o 2º ano do antigo primário! Trabalhou como doméstica e no Ciame. Era aposentada do Estado. “Deixou marido, 4 filhos, 16 netos e 4 bisnetos”.
Por Fátima Oliveira
De plantão, não fui ao enterro. Viajei na memória para “mulherar” uma negra, comunista (PCdoB), feminista e antirracista. Foi liderança comunista destacada nas lutas comunitárias. Juntas, percorremos o Alto Vera Cruz coletando assinaturas para a Emenda Popular Saúde da Mulher na Constituinte Mineira: garantia de serviços de aborto previsto em lei (gravidez pós-estupro e risco de vida da gestante).
Valdete foi minha vice quando presidi o Movimento Popular da Mulher (MPM), de 1989 a 1991. Numa reunião do MPM, ela argumentou que precisávamos fazer algo pelas idosas de seu bairro, dopadas de diazepam! A bem da verdade, ela comunicou uma decisão que sua perspicácia e sabedoria definiram como um imperativo ético contra a medicalização abusiva. E arrematou: “Elas ficam sem comer, mas sem diazepam, não! Tudo em mulher hoje em dia é depressão, como em criança é virose!”. Honestamente? Eu, médica, ouvia pela primeira vez uma crítica impecável sobre a futilidade terapêutica e a banalização do diagnóstico de depressão.
Era de uma inteligência rara: pegava tudo no ar. A proposta dela decorria de discussões do MPM sobre “medicalização do corpo”, enfatizando o parto, sob o olhar crítico feminista. Era 1989! Não foi fácil Valdete materializar a ideia, milimetricamente pensada por ela, centrada na busca da autoestima!
O Meninas de Sinhá se concretizou como grupo cultural de resgate de cantigas de roda, com cerca de 30 mulheres, dos 50 aos 90 e tantos anos, com um sucesso deslumbrante. O primeiro CD (“Tá Caindo Fulô”, 2007) ganhou o prêmio TIM de Música Brasileira em 2008, o 6º prêmio Rival Petrobras de Música e o reconhecimento de patrimônio cultural brasileiro pelo Ministério da Cultura no prêmio Cultura Viva 2007. “Roda da Vida”, o segundo CD, 2011, é apoteótico.
Ano passado, eu e Kia Lilly passamos uma tarde na casa de Valdete. Um papão: a origem feminista das Meninas de Sinhá e as vezes em que fui ao Alto Vera Cruz. Embevecidas, ouvimos o relato dela sobre as Meninas de Sinhá na 8ª edição do Festival Brave (Breslávia, Polônia, de 2 a 7 de julho de 2012). “Lá, caiu a ficha do acerto de nosso trabalho como terapia. Lá, doei sementinhas de Meninas de Sinhá pra muitas partes do mundo”.
A criatividade dela era singular. Em 2013, saindo do plantão, nos encontramos na portaria do hospital. Fomos a um café… “Fátima, inventar é comigo mesmo! Sou boa nisso, desde menina”. Inventou seu sobrenome (da Silva) aos 16 anos para se registrar e, antes, inventou a data de seu aniversário (só sabia o ano), escolheu o 7 de setembro. Disse ao Museu da Pessoa (5.8.2007): “É inventado meu aniversário. E quis fazer uma festa. Fui juntando dinheiro… Comprei doces no botequim, cortei os pedacinhos, pus em um prato. E o bolo?! E o bolo? Eu não tinha bolo. Arrumei uma caixinha de sapato, comprei as velas… Enfiei na caixa, foi meu bolo de aniversário… Fiz aquela festa… A meninada gostou… Bolo de caixa de sapato e doce de botequim”.
É, Valdete: “Tá caindo fulô, eh eh/ Tá caindo fulô, eh ah/ Lá do céu, cai na terra, eh/ Tá caindo fulô…”.
Fonte: O Tempo