por Conceição Lemes
Quatro meses após o anúncio, a Rede Cegonha está oficialmente criada. Em 27 de junho, o Diário Oficial da União publicou a portaria nº 1.459/2011, do Ministério da Saúde (MS), instituindo-a no Sistema Único de Saúde (SUS).
Diz a portaria que a Rede Cegonha “consiste numa rede de cuidados que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis.”
Seus objetivos são:
“I – fomentar a implementação de novo modelo de atenção à saúde da mulher e à saúde da criança com foco na atenção ao parto, ao nascimento, ao crescimento e ao desenvolvimento da criança de zero aos vinte e quatro meses;
II – organizar a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil para que esta garanta acesso, acolhimento e resolutividade; e
III – reduzir a mortalidade materna e infantil com ênfase no componente neonatal”.
Semana retrasada, a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos enviou carta ao ministro Alexandre Padilha, avaliando a portaria. Assinam o colegiado da Rede e entidades parceiras; o texto mescla preocupações e críticas, inclusive a falta de diálogo com os movimentos feministas:
“Preocupa-nos ainda que a publicação da Portaria 1459 de 24/06/2011, que estabelece a Rede Cegonha, não tenha ensejado nenhuma iniciativa por parte deste Ministério para a discussão do seu conteúdo final, ao nosso ver, incompleto em relação aos compromissos inicialmente assumidos. E que não estejam sendo convocadas reuniões com a sociedade civil nas diversas instâncias que sempre compuseram o espectro dos debates junto à área da saúde, além do Conselho Nacional de Saúde, os Comitês e Comissões que compõem esta arquitetura”.
“A portaria mantém o equívoco de origem da Rede Cegonha, que é a não reafirmação da integralidade de saúde da mulher”, analisa em entrevista exclusiva a esta repórter a cientista social Telia Negrão, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde. “Infelizmente, a portaria deixa de considerar as Políticas Nacionais de Atenção Integral à Saúde da Mulher e de Direitos Sexuais e Reprodutivos em suas bases conceituais.”
Nos anos 80, o Movimento Feminista criou uma imagem emblemática da mortalidade materna, uma tragédia evitável, ainda não descoberta devidamente pela mídia.
“Dizia-se”, lembra Sueli Carneiro, em sua tese de doutorado na USP, “que, quando cai um avião, cria-se uma comoção mundial, porque em geral, da queda de um avião dificilmente alguém escapa; no entanto, a quantidade de mortes diárias de mulheres, no mundo, por parto, equivaleria à de morte resultantes da citada queda de avião – e no caso, de tipo ‘Jumbo’, sem que tal fato mobilizasse a opinião pública.”
O Jumbo, versão original, tem capacidade para 355 pessoas. No Brasil, anualmente, cerca de 2 mil grávidas morrem, sendo 200 a 250 por abortos. Ou seja, 5,6 Jumbos caídos por ano, sem sobreviventes. Um deles com brasileiras mortas por abortos inseguros, feitos em condições degradantes, abandonadas pelas políticas atuais de saúde.
“Se quisermos realmente reduzir a mortalidade materna não podemos ignorar que 1 milhão de abortos são feitos por ano no Brasil e que os óbitos decorrentes correspondem a 10% a 15% das mortes maternas. Se não for assim, ficará sempre um buraco”, alerta Telia. “Sozinha, a Rede Cegonha não tem condição de enfrentar todas as causas da mortalidade materna. Precisa ser articulada com outras políticas de saúde da mulher.”
“Na verdade, a portaria tem lacunas importantes, deixa a desejar”, acrescenta Telia. “Isso se deve à falta de diálogo contínuo com os movimentos feministas. Aliás, é perceptível o esvaziamento das instâncias de discussão das políticas públicas para as mulheres no Ministério da Saúde. Apostamos, porém, no diálogo com o ministro Padilha, pois acreditamos na crítica para construir.”
Telia é também do Conselho Diretor da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). Ela fala em nome de um mulherio realmente de peso. Confira a entrevista na íntegra.
Viomundo – Logo após o lançamento da Rede Cegonha, a Rede Feminista de Saúde denunciou que a proposta era reducionista e representava retrocesso de 30 anos nas políticas com enfoque de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais. E agora, com a portaria publicada e a Rede Cegonha oficializada?
Telia Negrão – A portaria nº 1.459 tem vários considerandos, que, a priori, contemplam quase todas as políticas e leis existentes. Porém, deixa de lado questões fundamentais, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, instituída no Brasil desde 1983 [chamava-se PAISM, agora PNAISM]. O PNAISM é a diretriz da nacional de atenção à saúde das mulheres. Prevê que a atenção à saúde reprodutiva das mulheres tem de contemplar as que querem e as não querem ter filhos.
A portaria, portanto, não tem nos seus fundamentos o conceito da integralidade previsto no PNAISM. Também não reafirma a política nacional dos direitos sexuais e reprodutivos. Nessa medida, rompe-se um preceito fundamental que continuamos a defender: qualquer política de saúde para as mulheres tem de estar no escopo da integralidade e na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos.
Viomundo – Em relação à proposta inicial, houve algum avanço?
Telia Negrão – Sim. Nós sugerimos, por exemplo, que a portaria levasse em conta todas as políticas existentes. Ela considerou quase todas, mas manteve o equívoco de origem da proposta da Rede Cegonha, que é a não reafirmação da integralidade da saúde da mulher.
Viomundo – Mas em entrevista coletiva a blogueiros no mês de maio e da qual participei, o ministro Padilha afirmou que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher seria considerada…
Telia Negrão – Não foi, pelo menos explicitamente, e não entendemos por quê.
Viomundo – O fato de a portaria não usar a expressão materno-infantil é positivo, não é?
Telia Negrão – Com certeza. As palavras têm muita força. Agora, embora não utilize a terminologia, na prática, continua sendo um programa materno-infantil. E nós apostamos que seja um bom programa materno-infantil. Gostaríamos de deixar bem claro que, por mais que a gente faça crítica à concepção materno-infantil da Rede Cegonha, nós queremos que dê certo e seja acessível a todas as mulheres.
Viomundo – Qual o status da Rede Cegonha dentro das estruturas de políticas do Ministério da Saúde?
Telia Negrão – Esse é outro problema da portaria. É dúbia. Em nenhum lugar dela está dito qual será o seu status. Ou seja, se será uma política pública, como o PNAISM, uma diretriz, uma estratégia, um programa, uma ação ou uma atividade. São os diversos níveis de escalonamento no desenho das políticas públicas e que influem na sua garantia.
Para a Rede Cegonha ser uma rede mesmo, ela teria de ter um fluxo, uma articulação, que não foi possível ainda identificar na portaria. Percebe-se o desenho de uma política pública, mas não a sua posição dentro de uma estratégia governamental.
Viomundo – Por que é importante esse status ficar bem claro?
Telia Negrão – O status define o padrão orçamentário, o calcanhar-de-aquiles das políticas públicas. Aliás, além de demorarem muito tempo para ser implementadas, o principal problema das políticas públicas brasileiras é o financiamento.
Viomundo – Um dos objetivos da Rede Cegonha é reduzir a mortalidade materna. Realmente é possível?
Telia Negrão – As dificuldades de o Brasil reduzir a mortalidade materna decorrem do não enfrentamento de todas as suas causas, que estão além da atenção no pré-natal e no parto. Para reduzir mesmo a mortalidade materna é preciso garantir o acesso fácil à saúde, que é agenda central da Conferência Nacional de Saúde, e ao planejamento reprodutivo de qualidade em todos os momentos da sua vida, inclusive antes de engravidar.
Veja bem. Muitas mulheres engravidam num momento da vida em que não desejariam ter um filho e abortam nas piores condições, colocando em risco suas vidas. Assim, se quisermos realmente reduzir a mortalidade materna não podemos ignorar que no país são feitos 1 milhão de abortos por ano. Também que10% a 15% das mortes maternas são óbitos por aborto.
Viomundo – Quantas mortes maternas ocorrem por ano no país?
Telia Negrão — Cerca de 2 mil.
Viomundo – E quantas mortes são por aborto?
Telia Negrão – São 200 a 250 por abortos inseguros, feitos em clínicas clandestinas, em situação degradante, por falta de política pública e lei que permitam que sejam feitos em condições adequadas.
Ou seja, todo ano, um avião cheio de mulheres grávidas, jovens, cheias de vida, cai, sem sobreviventes, sem que haja qualquer manifestação em defesa delas. Ao contrário. Devido à visão atrasada que cerca essa seriíssima questão de saúde pública, muitas vezes elas fazem a vergonha de suas famílias.
Viomundo – O que acontecerá se o Brasil não encarar a questão da mortalidade materna por abortos?
Telia Negrão – Se quisermos realmente reduzir a mortalidade materna não podemos ignorar os óbitos por aborto, que correspondem a 10% a 15% das mortes maternas. Se não for assim, ficará sempre um buraco. Isso implica apoiar tanto as mulheres que querem engravidar para que tenham seus bebês nas melhores condições possíveis, assim como aquelas que não desejam ou não conseguem evitar naquele momento da vida.
Viomundo – A carta da Rede Feminista ao ministro Padilha aborda outros pontos…
Telia Negrão – Realmente, nós estávamos analisando a portaria da Rede Cegonha, quando soubemos de dois fatos novos: o parecer de Anand Grover, da Organização das Nações Unidas (ONU), e o caso da gestante de um subúrbio do Rio de Janeiro que, na semana retrasada, pariu na estação de trem e, depois, teve de ir de ônibus para a maternidade, pois não havia um serviço de saúde que fizesse o seu deslocamento. Dada a gravidade de ambos, resolvemos incluí-los na carta, já que dizem respeito à saúde das mulheres brasileiras.
Viomundo – Do que trata o parecer de Grover?
Telia Negrão – Grover, o relator do Informe da ONU, esteve, aqui, em 2010, para uma audiência pública com a sociedade civil. Em cima do que detectou, elaborou um relatório para o Informe Direito de Todos ao Desfrute do mais Alto Nível Possível de Saúde Física e Mental, da ONU. Nele, aborda questões referentes à saúde sexual e reprodutiva, onde pede medidas para a redução de mortes por razões evitáveis, como os abortos inseguros.
O relatório foi encaminhado ao governo brasileiro em novembro de 2010. Como até o momento, não houve resposta, nós queremos que o ministro Padilha dê atenção especial ao parecer e às recomendações propostas pelo Grover.
Viomundo – E o caso da gestante do Rio de Janeiro?
Telia Negrão – Chocante, indigno. Um país como o Brasil, que está entre os mais ricos do mundo, não pode continuar com tais cenas de desigualdade. Nós redigimos a carta ao ministro Padilha sob impacto dele. Essa mulher não foi assistida no parto nem no seu deslocamento até a maternidade. Isso demonstra que a Rede Cegonha não tem conseguido se efetivar com a rapidez necessária na medida em que se constitui hoje na principal política para a saúde das mulheres. Afinal, não conseguiu preencher, no momento de maior necessidade, a demanda mais imediata de uma mulher que mora num subúrbio de uma grande cidade como o Rio de Janeiro.
Viomundo – Não seria pouco tempo para se cobrar resultados da Rede Cegonha?
Telia Negrão – As mulheres brasileiras estão cansadas de ouvir as justificativas dos gestores de saúde de que ainda deu tempo. Quando será este tempo então?
Nosso problema não é elaborar mais políticas, mas colocar em prática as já elaboradas, inclusive com a colaboração da Rede Feminista de Saúde. Se as existentes estivessem sendo cumpridas – entre elas, a de humanização do pré-natal e nascimento, que é de 2000, o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal e todas as leis e portarias que vieram depois – não se precisaria da Rede Cegonha para uma mulher ter direito ao leito garantido, acesso ao hospital e atendimento digno que não coloque em risco a sua saúde nem a do seu bebê.
O que a gente vê pela foto da gestante do Rio de Janeiro que teve filho dentro do trem é que se trata de uma pobre, trabalhadora e negra. Isso dá um retrato de quem está excluída da política de saúde do Brasil.
25 de julho é o Dia das Mulheres Negras. É também o Dia da Saúde das Mulheres Afro-latino-caribenhas. Portanto, é a data em defesa da saúde das mulheres negras. Nós a comemoramos em todo o Brasil, denunciando que uma mulher negra, pobre, da periferia do Rio de Janeiro teve um filho dentro de um trem. E ainda fez o percurso até o hospital de ônibus, já que não conseguiu um transporte adequado a levasse.
Viomundo – Na carta ao ministro Padilha, a Rede Feminista afirma que compromissos inicialmente assumidos pelo Ministério da Saúde não foram cumpridos na íntegra. Também que não foi chamada para debater o seu conteúdo final, considerado incompleto pela Rede. O que aconteceu?
Telia Negrão – Na verdade, o que aconteceu com a Rede Cegonha não é um fato isolado. Nós temos percebido que há um esvaziamento das instâncias de discussão das políticas públicas para as mulheres na área da saúde. Por exemplo, a Comissão Nacional de Mortalidade Materna não tem se reunido. O Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materno e Neonatal também não tem sido chamado a se reunir.
Essas duas instâncias são chaves na discussão da mortalidade materna e das políticas de saúde das mulheres, mas não têm sido convocadas pelo Ministério da Saúde que é quem tem esse poder. Então, esses dois canais diretos de comunicação que tínhamos estão neste momento bastante esvaziados. Diria que até interrompidos.
Viomundo – E agora?
Telia Negrão –A Rede Feminista vai continuar cumprindo o seu papel, de lutar pela garantia à saúde das mulheres brasileiras, denunciando, criticando, propondo, fiscalizando. Queremos dialogar mais, por isso encaminhamos a carta também ao Conselho Nacional de Saúde. Esperamos que o Conselho, que é presidido pelo ministro Padilha, inclua a Rede Cegonha nas suas próximas reuniões. Nós pretendemos e esperamos, sim, um diálogo com o ministro. Afinal, nossa crítica é propositiva, para construir.
PS1 do Viomundo: Telia Negrão fala em nome de um time de peso. Também assinam a carta ao ministro Padilha: Maria Luisa Pereira de Oliveira, secretária adjunta da Rede Feminista; Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos, Conselho Nacional de Saúde; Clair Castilhos, Casa da Mulher Catarina; Karen Borges, Associação Lésbico Feminista Coturno de Vênus; Maria Goretti Lopes, Espaço Mulher do Paraná; Alaerte Leandro, Rede de Mulheres Negras do Paraná e Comissão Nacional de Mortalidade Materna; Maria José de Oliveira Araújo e Lilian Marinho, Instituto Mulheres pela Assistência Integral à Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (IMAIS); Maria Noelci Teixeira Homero, Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras; Marta Giane Machado Torres, Fórum de Mulheres da Amazônia; Maria Beatriz Oliveira, Associação de Mulheres do Graal; Neusa das Dores Pereira, Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher – Rio de Janeiro; Rosa de Lourdes Azevedo dos Santos, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher; Maria Luísa Carvalho Nunes, Centro de Defesa do Negro do Pará; Gigi Blander,Grupo de Teatro Loucas de Pedra Lilás; Maria Lúcia Lopes de Oliveira, Cunhã Coletivo Feminista; Silvana Maria da Silva, Secretaria da Mulher da Fecosul; Beatriz Galli , LAC, Ipas; Margareth Arrilha, Comissão de Cidadania e Reprodução e Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe.
PS2 do Viomundo: Até a postagem desta reportagem, em 31 de julho, o ministro Alexandre Padilha não havia dado qualquer resposta à Rede Feminista de Saúde sobre a carta enviada no dia 20.
Fonte: Viomundo