‘Temos falhado em incorporar a África ao ensino’, diz historiador na Bienal

Os historiadores Alberto da Costa e Silva e Joel Rufino dos Santos participaram nesta terça-feira (15) de um debate no Café Literário desta 14ª edição da Bienal do Livro Rio. O tema da conversa foi “Nosso sistema nervoso é africano”.

Fonte: G1

O título que batizou o debate foi tirado de uma declaração dada por Costa e Silva a um jornalista 15 anos atrás. “Disse que o esqueleto brasileiro era português, que o nosso sistema nervoso era africano, e que o nosso útero ou sistema reprodutor era ameríndio”, lembrou o escritor e historiador, autor de, entre outros, “A enxada e a lança: a África antes dos portugueses” e “Francisco Félix de Souza, mercador de escravos”.

 

Por “sistema nervoso”, explicou Costa e Silva, ele se referia à proximidade que brasileiros e africanos têm “na área das emoções, da sensibilidade, do afeto, da solidariedade, do sentido de família”.

 

“Estamos impregnados de África por um motivo muito simples: a escrava africana se apossou da casa do senhor, sobretudo dos filhos do senhor. Era a eles que ela contava as histórias africanas, ensinava os jogos africanos, a maneira de ser e comer africana”, aponta o historiador – e diplomata – paulistano nascido em 1931. “Na minha casa, eu ainda comi com a mão, fazendo bolinhos, e ninguém me explicou que isso era africano. Na época do Brasil Colônia e no Império, o branco mandava na sala, mas nos quartos, na cozinha e no quintal mandavam os negros. E era lá que se passava parte essencial da vida de uma casa.”

 

Lacunas históricas

 

Mas, apesar dos elos comuns entre o Brasil e a África – iniciados ainda no século 16 com a chegada dos primeiros escravos ao país -, Costa e Silva e Joel Rufino dos Santos sugerem que o continente ainda ocupa espaço pequeno nos livros de história brasileiros — especialmente nos materiais escolares.

“Até aqui, temos falhado redondamente em incorporar a África ao nosso sistema de ensino”, afirma Santos, que escreveu, entre outros, “A questão do negro na sala de aula” além de livros didáticos de história para o ginásio pela editora FTD.

Costa e Silva concorda: “toda a nossa estrutura de ensino no Brasil – e até na África – foi orientada no sentido europeu. Ficamos com a formação fragmentada, parcial. Conhecemos a nossa metade, e não a outra. É preciso mostrar que temos heranças múltiplas, e valorizá-las”.

Santos, no entanto, reconhece uma certa mudança na abordagem dos estudos africanos em sala de aula nos tempos atuais. “Quando eu era estudante, o Quilombo dos Palmares ocupava duas ou três linhas no meu livro de história. Hoje, qualquer livro de história consagra muitas linhas ou mesmo um capítulo para isso”, explica.

 

“Palmares era uma lacuna na história social do país. E graças a pressões do movimento negro sobre os autores livros didáticos, professores, secretarias e ministério da educação, temas como Zumbi e o Quilombo dos Palmares foram transformados num grande acontecimento, num capítulo importante da história social do país.” E acrescenta: “Hoje, acho que quem escrevesse um livro de história do Brasil incorporando a África estaria muito mais à vontade do que eu estava anos atrás”.

 

Negro brasileiro

 

Ambos os autores alertaram, contudo, para os riscos da “romantização do legado africano” no Brasil.

 

“Acho que, reconhecidamente, temos muito de africano, mas temos muito também do negro brasileiro – o africano que veio para cá e ganhou uma nova alma ou desdobrou as culturas africanas em uma nova cultura que poderíamos chamar de negro-brasileira”, disse Santos. “Por isso que não gosto da expressão afro-descendentes. Somos descendentes do negro que, aqui, desdobrou por quase três séculos o legado africano. É fato que somos bastante africanos. Mas é preciso cuidar para esse aspecto: que descendemos é de negros brasileiros.”

 

Nesse sentido, o autor de “A enxada e a lança” lembra que, apesar de suas indiscutíveis raízes africanas, manifestações como a capoeira, a umbanda e mesmo a culinária que temos hoje só existem como tal graças a seu encontro com a cultura indígena e americana. “Não há uma África, há várias áfricas. Assim como não há uma só Europa ou uma só América”, diz Costa e Silva.

“Muitos africanos não gostam de doce. O angolano gosta de doce porque o brasileiro o ensinou a gostar. Assim como foi o brasileiro que mandou a farinha de mandioca e alterou os hábitos de consumo da África. Levamos muita coisa – a começar da comida, mas também a arquitetura, as redes de dormir”, enumera.

 

Como vítima dessa mistificação, Costa e Silva também cita a música brasileira, geralmente comparada à música africana. “A música brasileira, apesar da forte influência da poliritmia da música africana atlântica, se baseia no compasso europeu – no compasso do Zé Pereira, na marcha. Nossa música, portanto, é baseada no ritmo europeu, mas com todas as inflexões e sutilezas da musica africana”, explica. “Nada no mundo é puro. Tudo é plural. Ou mestiço, se vocês preferirem a palavra.”

 

A Bienal do Livro acontece até o dia 20 de setembro no Riocentro, Zona Oeste carioca. Clique aqui para conferir os dias e horários.

 

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