Terceiro setor sofre com críticas do governo Bolsonaro

Ao perder espaço devido a contexto político inédito no país, Terceiro Setor busca alternativas ao governo federal e perfil técnico

Por Amália Safatle, Do Valor

“O retrocesso já está dado”, diz Neca Setubal, da Fundação Tide Setubal, sobre o atual “contexto político arrasador” — Foto: Claudio Belli/Valor

Nos idos de 1950, quando a Fundação Ford passou a atuar no combate ao apartheid, regime de segregação racial imposto pelo governo sul-africano, não podia imaginar que 40 anos depois o desfecho seria positivo. Assim é a filantropia: um recurso privado doado a fundo perdido, muitas vezes com base na defesa de uma causa pública.

No Brasil das jabuticabas, a filantropia se desdobrou em um significado próprio chamado investimento social privado. Foi uma tentativa de dar contornos mais profissionais à boa e velha prática de doar, diferenciando-a do assistencialismo e valendo-se de ferramentas da gestão privada. O doador ganha um chapéu de investidor que pode até financiar negócios de impacto, aqueles capazes de gerar lucro e bens públicos ao mesmo tempo.

Desde a Constituinte de 1988, a sociedade civil passou a se organizar de forma mais ativa e coesa em torno de pautas como direitos humanos, acesso a educação e saúde, proteção ambiental, justiça, cidadania e a própria defesa da democracia. Em tese, caberia ao investimento social privado, promovido por empresas e bancos, fortalecer esse tecido sociedade civil, seja atuando em cooperação com as esferas de governo, ao propor e testar soluções capazes de se transformar em políticas públicas e gerar escala.

 

Denis Mizne - homem branco, careca, vestindo roupa social- sentado em frente a uma mesa de escritório
“Não tínhamos vivido, no Brasil recente, um discurso antissociedade civil (…). ONG virou sinônimo de inimigo”, diz Denis Mizne, do Instituto Sou da Paz e da Fundação Lemann — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

 

Mas esse movimento, que já havia sofrido revés com a recessão econômica gerada durante o governo da petista Dilma Rousseff, agora se encontra em xeque diante do novo contexto político na gestão de Jair Bolsonaro, que critica a sociedade civil organizada e rechaça temas que defendem as minorias.

Some-se a isso a conduta do próprio setor privado, que nos últimos anos privilegiou o aporte de recursos em projetos de seus institutos e fundações, em detrimento do apoio às organizações independentes da sociedade civil. “A redução desse investimento afeta a resiliência do tecido social, justamente neste momento de crise econômica, social e ambiental, quando é mais necessária”, afirma Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu, que atua na área de produção e consumo sustentáveis basicamente com recursos doados pelo setor privado.

Segundo o Censo Gife, publicado pelo Grupo de Institutos Fundações e Empresas, o percentual de investimentos em projetos próprios subiu de 37% para 43% entre 2014 e 2016, enquanto o aporte em organizações independentes caiu de 18% para 16%. Os investimentos híbridos, que combinam as duas características, passou de 45% para 41%. No total, o investimento social privado medido pelo Gife em 2016 reduziu-se a R$ 2,9 bilhões – uma queda de 19% que é essencialmente atribuída pela instituição à crise econômica. Os dados referentes a 2018 serão divulgados no dia 28.

Marcos Nisti - homem branco de cabelo e barba grisalha, usando óculos de grau, camiseta social na cor salmão e calça jeans- sentado com um livro na mão
“Falta a gente olhar para o país em que está inserido, e escutar essas vozes que pedem socorro. Porque a pessoa vota no Bolsonaro para pedir socorro”, diz Marcos Nisti, do Instituto Alana — Foto: Claudio Belli/Valor

A crise foi devastadora para as organizações do Terceiro Setor em geral. De acordo com o estudo do IBGE “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil)”, a recessão econômica contribuiu para o fechamento de 38,7 mil unidades no Brasil, com redução de 14% entre 2013 e 2016. O segmento que mais sofreu foi o de defesa de direitos humanos e dos direitos de comunidades, enquanto o grupo mais expressivo (organizações religiosas) saiu praticamente ileso, com queda de somente 1%.

O Mapa das Organizações da Sociedade Civil (OSC), publicado neste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também não traz boas notícias. Mostra que apenas 2,7% das OSCs receberam recursos federais entre 2010 e 2018. A partir de 2017, caiu a presença de organizações de desenvolvimento e defesa de direitos entre os repasses, enquanto aumentou a de entidades classificadas como associações patronais e profissionais.

Se já havia um desafio de reforçar e aperfeiçoar a democracia por meio da atuação das organizações, a política veio se somar a ele. “O elemento novo é este contexto político arrasador que chegou”, diz Maria Alice (Neca) Setubal, presidente do conselho da Fundação Tide Setubal, que atua com desigualdades educacionais, de gênero e de raça nas periferias. “Essas são pautas com as quais o atual governo trabalha contra, então podemos dizer que o retrocesso já está dado.”

Eduardo Saron - homem branco, vestindo roupa social- sentado em um banco sorrindo
Para Eduardo Saron, do Itaú Cultural, estudos e métricas ajudariam a sociedade a perceber que a cultura gera desenvolvimento econômico e social — Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo

Denis Mizne, fundador do Instituto Sou da Paz e diretor-executivo da Fundação Lemann, referência em educação, diz que o país enfrenta um ambiente inédito. “Não tínhamos vivido, no Brasil recente, um discurso antissociedade civil. Temos marcos regulatórios importantes nos governos FHC, Lula, Dilma. Podia haver posições distintas, mas todo mundo achava positivo. Agora, temos visto que ONG virou sinônimo de inimigo”, afirma.

Procurado pelo Valor para comentar como tem sido o diálogo e a cooperação com o investimento social privado, o Ministério da Educação respondeu, por meio de nota, que “a Educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”.

Na alternância de poder que havia desde a redemocratização, os objetivos eram praticamente comuns a todos os partidos – o que havia era divergência quanto ao modo de alcançá-los. Mas, agora, na visão de investidores sociais ouvidos nesta reportagem, os próprios objetivos são atacados, como a defesa da ciência, da diversidade, da democracia e do meio ambiente.

Hélio Mattar- homem idoso branco, usando óculos de grau e roupa social- em pé sorrindo
Redução de investimento “afeta a resiliência do tecido social”, em momento de “crise econômica, social e ambiental”, afirma Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

“Não sabemos se isso é um reflexo do fim do período pós-Segunda Guerra ou do pós-iluminismo, mas alguma dessas coisas está acontecendo”, diz José Marcelo Zacchi, secretário-geral do Gife. “A Constituição pactuou a expansão de direitos e liberdades para a sociedade como um todo. Mas agora isso encontrou seu limite e, no limite, isso se fragmenta.”

Para Zacchi, a polarização política que rachou o Brasil não passaria incólume. “A sociedade brasileira erodiu imensamente sua capacidade de produzir convergências e ação combinada entre atores múltiplos em um ambiente de cooperação e pluralismo.”

Tal retrocesso, para Neca Setubal, vem sublinhar a importância dessa agenda e exigir maiores esforços. Ela defende a criação de uma rede de “grantmaking” (doação institucional) para fortalecer organizações da sociedade civil, seja porque perderam recursos do governo, seja porque estão sendo perseguidas. O diretor de um instituto que preferiu não se identificar diz temer não a ação institucional da polícia do Exército, como havia no período da ditadura militar (1964-1985), mas de “haters” que enviam ameaças constantemente, de origens desconhecidas.

Há uma sensação de insegurança entre ativistas, agravada diante de fatos como o assassinato, no começo do mês, de Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, integrante do grupo Guardiões da Floresta, e da prisão de Preta Ferreira (Janice Ferreira Silva), uma das lideranças do Movimento dos Sem Teto do Centro (MTSC) que, com outros ativistas, ficou 109 dias na cadeia, acusada de extorquir moradores em São Paulo, e liberada após habeas corpus.

“Muitas vezes, o único recurso de que essas organizações dispõem para se defender ou proteger seus integrantes vem de fundações e institutos”, diz Neca. Segundo ela, o apoio é necessário até mesmo para custear a defesa advocatícia, mas serve também para mostrar que há resistência sendo urdida. “Vejo muitas fundações empresariais que não querem aparecer neste momento, mas nos bastidores estão apoiando organizações da sociedade civil nesse sentido.”

Inês Mindlin Lafer, diretora do Instituto Betty e Jacob Lafer, também identifica aumento na tensão. “Algumas organizações com as quais trabalhamos estão aflitas. Têm sofrido mais ataques na internet e ameaças à integridade física de alguns membros.” O instituto atua na gestão e inovação de políticas públicas e no combate à desigualdade do sistema de Justiça, tendo já apoiado organizações como Instituto Igarapé, o Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A sempre sensível pauta da segurança pública e defesa dos direitos humanos é evitada por muitas das empresas, que preferem investir em temas menos polêmicos, como educação e cuidados na primeira infância, a fim de evitar riscos à imagem institucional. Diante disso, por meio do instituto, o pai e a tia de Inês resolveram aplicar parte de seu capital para cobrir essa lacuna e combater um problema que tende a crescer na medida em que a sociedade se torna mais intolerante. “A aplicação da pena no Brasil é muito seletiva. Se você for negro e periférico, a chance de ser condenado é bem maior do que se for branco e das regiões centrais, especialmente quando a questão é o uso de drogas”, diz a diretora.

Segundo Inês, o governo tem autorizado um conjunto de pensamentos e ideias que compromete a ação do instituto. “Quando o discurso federal diz: ‘Você pode desmatar, pode matar em nome do combate ao crime e prender sem respeitar as garantias constitucionais’, isso faz com que os agentes públicos matem mais, criminalizem mais, desmatem mais e multem menos. A nossa agenda fica comprometida porque o discurso vai contra o que estruturamos em nosso programa de financiamento.”

A isso ela acrescenta mudanças definidas por decreto que levaram ao esvaziamento da sociedade civil em conselhos participativos, como o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Em nota, o Ministério da Justiça respondeu que “considera essencial a participação da sociedade civil”. Para isso, ampliou a estrutura da Ouvidoria Geral – que é a unidade responsável, entre outras, por promover a interlocução do público junto ao ministério, abrangendo suas unidades subordinadas e entidades vinculadas – e fortaleceu o canal de comunicação entre cidadão, organizações e órgão.

O ministério afirmou ainda que não localizou, no sistema utilizado pela unidade para recebimento e tratamento de manifestações de ouvidoria, registros contendo denúncias a respeito de ameaças, perseguições ou monitoramento de ativistas. “As manifestações, quando recebidas em consonância com as atribuições dos órgãos vinculados ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, são prontamente direcionadas, considerando sua competência de atuação.”

Procurados para avaliar se as mudanças nos respectivos conselhos (Conama e Conanda) trariam prejuízos às práticas da democracia, os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e o da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) não responderam até o fechamento desta edição. Ao MMA também foi solicitado que comentasse as declarações que buscaram criminalizar as ONGs. Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro insinuou que as organizações seriam responsáveis por colocar fogo na Amazônia e, em outubro, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) tentou responsabilizar o Greenpeace pelo vazamento de petróleo que atinge a costa nordestina e o Espírito Santo.

O ambientalista João Paulo Capobianco, que dirige o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e já esteve do outro lado do balcão como secretário de Biodiversidade e Florestas, na gestão Lula, considera que o investimento social privado ganhou ainda mais relevância dada a dificuldade deste momento. Além do discurso contra as ONGs, ele afirma que há uma ação coordenada e estruturada do governo para cortar recursos de projetos.

Um exemplo é o cancelamento do que se chama de “no objection”. Trata-se de uma carta emitida pela Agência Brasileira de Cooperação que atesta não haver objeções a projetos vencedores de editais estrangeiros, autorizando-os a receber recursos internacionais. Segundo Capobianco, isso ocorreu com um projeto que, após competição acirrada, havia sido aprovado na União Europeia e já estava em fase de contratação. Outro projeto, aprovado com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), também teve o “no objection” cancelado.

Procurado para explicar o motivo das negativas da Agência Brasileira de Cooperação, o Ministério das Relações Exteriores, ao qual o órgão é subordinado, não respondeu até o fechamento desta edição.

Além disso, pontua Capobianco, houve as paralisações no Fundo Amazônia e no Fundo Clima. Segundo Mattar, do Akatu, essas mudanças causaram um mal-estar político capaz de afetar as doações no Brasil. Um exemplo vivido na pele: ao buscar recursos internacionais para driblar as dificuldades internas de captação, o Akatu conseguiu do governo alemão uma doação de US$ 500 mil para um projeto de capacitação de professores e alunos sobre a crise climática. “Depois de alguns meses, o MMA, para minha surpresa, forneceu uma carta que indicava o interesse do Brasil e indicava o Akatu como executor.” Mas nesse meio tempo, por confronto com os governos alemão e norueguês e desconsideração de regras já estabelecidas na gestão do Fundo Amazônia, a Alemanha voltou atrás.

Diante desse quadro de dificuldades, há um silêncio do setor privado brasileiro que difere, por exemplo, dos empresários americanos mais progressistas, que se posicionaram abertamente na ocasião da eleição de Donald Trump. Para Capobianco, muitas empresas no Brasil veem um risco real de se manifestarem contra o que considera como retrocessos pois podem sofrer retaliação do governo – dada a alta complexidade do sistema tributário nacional, que permite uma série de interpretações e expõe flancos. “Por isso que as empresas aqui são muito cuidadosas, ainda mais em um governo perseguidor como este.”

Segundo Mattar, essa cautela também tem afetado o relacionamento entre empresas e ONGs. “Algumas empresas que dependem de recursos federais ou têm alguma relação com o governo deixaram de apoiar organizações, mesmo aquelas com as quais travavam um relacionamento importante. Isso porque ficaram com receio de serem vistas como contrárias à política que este governo está colocando explicitamente.” Para ele, “existe, de fato, uma ou outra organização que não usa corretamente os recursos, mas é a minoria da minoria”.

Mas, na vida que segue, as organizações estão revendo suas estratégias de atuação. “O desafio não é insuperável”, afirma Mizne. Uma das saídas, no caso da Fundação Lemann, tem sido trabalhar muito mais com municípios e governos estaduais, além de comissões temáticas no Congresso. “Dentro do governo federal, apesar das dificuldades, onde houver uma oportunidade de dar uma contribuição técnica, a gente não vai se furtar de ajudar.”

A respeito disso, na nota enviada à reportagem, o Ministério da Educação respondeu: “Na esfera pública, a educação básica é organizada em regime de colaboração pelos sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Segundo a avaliação de uma fonte da área, embora o ministro da Educação, Abraham Weintraub, mantenha o discurso bolsonarista, em especial para alimentar redes sociais, ele entendeu que precisava operar a máquina, então manteve um corpo mais técnico e conhecedor da gestão pública. Isso sucedeu a gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, marcada por brigas internas entre seguidores de Olavo de Carvalho e militares e uma “caça às bruxas” a quem fosse considerado petista, mesmo após dois anos do governo Temer (MDB).

A busca pelo tom mais técnico, amparado em dados, é vista como uma forma de desmontar a retórica do governo, afeito a usar a expressão “ideologia” para combater seus desafetos políticos. É também uma maneira de conquistar a parte da sociedade menos sensível a ideias progressistas. É nisso que acredita Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. Para ele, medir a relevância para a sociedade e para a economia é uma saída para atrair mais investimentos no âmbito da cultura e das artes, que são algumas das áreas mais combatidas pelas alas conservadoras – haja vista a suspensão de edital da Agência Nacional do Cinema (Ancine) que co

O veto foi publicado e assinado pelo Ministério da Cidadania, que até então era responsável pela Secretaria de Cultura, agora subordinada à pasta do Turismo. Em nota, o Ministério da Cidadania respondeu: “Por se tratarem de recursos públicos – R$ 70 milhões – que financiariam séries para serem exibidas em TVs públicas, este governo resolveu suspender com a intenção de analisar os critérios de sua formulação. O próprio edital previa a possibilidade de suspensão ou anulação.”

Para Saron, estudos e métricas ajudariam a sociedade a perceber que, além de promover o crescimento humanístico, a cultura gera desenvolvimento econômico e social. Um exemplo é a pesquisa da Fundação Getulio Vargas que mediu o retorno do investimento no 50º Festival de Campos de Jordão. Cada R$ 1 investido movimentou R$ 16,70 na economia local e arrecadou R$ 3,16 em impostos, dos quais R$ 2,10 federais. Outro estudo, realizado pela consultoria PwC, mostra que a economia criativa no Brasil cresceu a taxa média anual de 8,1% entre 2013 e 2017, bem acima do PIB.

Embora a sociedade civil busque cada vez mais trabalhar com evidências a fim de atrair investimentos e neutralizar as críticas de cunho ideológico, Mizne, da Fundação Lemann, faz um contraponto ao lembrar que dados factuais e científicos têm sido atacados ou ignorados, no Brasil e no mundo. Aqui, foi notório o ataque de Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que mede cientificamente o desmatamento, culminando com a demissão do diretor Ricardo Galvão.

Para Mizne, na era do negacionismo e das “verdades relativas”, cabe às organizações encontrar formas de conquistar corações e mentes para fora de seu “mundinho”. No métier do investimento social privado é comum dizer que todos caberiam numa Kombi que vivem na bolha da Vila Madalena, bairro hipster de São Paulo, “pregando para convertidos”. A despeito do tom anedótico, o cenário atual tem favorecido a revisão de estratégias para envolver investidores e as diversas camadas da sociedade em torno dessas causas.

“Quando eu postava alguma coisa e o Denis [Mizne] dava um ‘like’, eu ficava superfeliz”, conta Marcos Nisti, CEO do Instituto Alana e um dos fundadores da Maria Farinha Filmes. Mas eram apenas amigos corroborando entre si as próprias ideias. Até que Nisti teve um estalo ao participar de uma palestra nos Estados Unidos, logo após Donald Trump ganhar a eleição, em 2016. No evento para uma plateia seleta, foi mostrado como a comunicação é feita nos EUA: invariavelmente dirigida para as cidades da costa, reforçando os valores dessa população e deixando na sombra milhões de pessoas que não fazem parte desse mundo.

“Mas aqueles que sabem se comunicar com essas pessoas que são ignoradas ganham uma vantagem competitiva em termos de produtos, de ideias e de plataforma política. Foi o caso de Trump, que se aproveitou dessa situação. Algo parecido também aconteceu no Brasil”, avalia Nisti.

Quando a Maria Farinha produziu o filme “Repense o Elogio”, buscou desconstruir os estereótipos segundo os quais as meninas são chamadas de “lindas” e “fofinhas” e os meninos de “fortes” e “inteligentes”. A mensagem era: se a menina quisesse jogar bola, e o menino, brincar de boneca, estava tudo certo. Aí veio a enxurrada de “haters”, indicando que o filme não teria aderência no “meião” do Brasil, formado por uma população em grande parte conservadora e evangélica. Ressoaria apenas entre os descolados que moram “na costa”, para usar a analogia americana.

“Diante disso, perguntamos: ‘Quem é evangélico aqui no Alana? Assiste ao filme e critica’. Eles assistiram e fizeram três críticas perfeitamente fáceis de resolver, não era nada estrutural e teria amenizado muita coisa. Isso para dizer que a gente, na sociedade civil, entrou em uma ânsia de progressismo e se esqueceu de ouvir essas pessoas. Chamamos de ‘eles’. Mas ‘eles’ somos nós”, diz Nisti.

Lição aprendida, a segunda temporada da série “Aruanas”, sobre a luta de uma ONG contra garimpos ilegais e a devastação da Floresta Amazônica, terá um personagem que é pastor evangélico e atua na Comissão da Verdade. “Nos filmes, em geral, tem a evangélica bobinha e o pastor vilão. Com esses preconceitos, como o evangélico vai acreditar na gente?”, questiona o fundador da Maria Farinha.

Isso faz aquela brincadeira sobre a bolha da Vila Madalena ter um fundo de verdade. “Fazemos um mea-culpa aí. Como investimento social privado trabalha só com coisa legal, como melhorar a vida das crianças e proteger o meio ambiente, somos o mocinho dessa história. E mocinhos pensam que não precisam escutar ninguém. Mas precisam. Falta a gente olhar para o país em que está inserido, e escutar essas vozes que pedem socorro. Porque a pessoa vota no Bolsonaro para pedir socorro”, diz Nisti.

Isso mostra que nem todos os problemas enfrentados no campo do investimento social privado se devem ao novo contexto político e à crise econômica. Havia já uma desconexão com a ponta, com as bases, e em relação a problemas pulsantes da sociedade – o que vinha enfraquecendo esse tecido e mostrando certa exaustão do ciclo iniciado com a redemocratização.

Uma hipótese levantada por Neca Setubal é que as fundações e institutos teriam se acomodado em sua zona de conforto, buscando apenas resultados mais palpáveis e garantidos, em vez de fortalecer a sociedade civil e encontrar formas mais inovadoras, criativas e eficazes de lidar com temas espinhosos. Temas estes que já avançavam em todo o mundo, como racismo, feminismo, questão LGBTQ+, escassez de água, mudança do clima, segurança, desigualdade e problemas urbanos, mas aqui não encontraram eco.

A preferência do investimento social privado no Brasil em atuar com assuntos de consenso, como educação e primeira infância, e em executar seus próprios projetos é atestada por Fábio Deboni, gerente-executivo do Instituto Sabin, que atua com inovação social e inclusão na área de saúde. “Enquanto lá fora o George Soros investe, por exemplo, na questão de drogas, aqui no Brasil as famílias ligadas a negócios empresariais evitam as bolas divididas.” Com isso, questões cruciais para o desenvolvimento da sociedade democrática, como o fortalecimento da imprensa livre, mal aparecem no radar. No último Censo do Gife, o investimento em comunicação está no fim da fila.

Para Deboni, autor de três livros sobre o tema, o investimento social privado no Brasil possui uma característica muito corporativa, o que explica o fato de que prefere atuar com seus projetos e equipes para ter o controle da reputação. “E ainda captam recursos no mercado, competindo com as ONGs que deviam financiar. É um jeito de fazer muito consolidado e difícil de desarmar. A quem a gente serve? Essa é uma questão que não está resolvida”, diz.

“O setor privado no Brasil normalmente não é parceiro de iniciativas que puxam novas frentes no mundo, como a crise climática. Ele é parceiro de coisas que já estão mais estabelecidas, demonstram efetividade e só precisam de escala”, avalia Capobianco, do IDS. Além disso, em sua opinião, há uma demanda exagerada de quantificação de resultados em projetos cada vez mais complexos e detalhistas. “Muitas organizações que estavam na linha de frente acabaram virando elaboradoras de projetos como qualquer empresa, de forma a conseguir apoio [de investidores sociais privados]. A diferença é que não têm fins lucrativos”, diz o ambientalista. “Não julgo se isso está certo ou errado, mas vejo que perderam muito aquela coisa da mobilização nas ruas e da ação disruptiva.”

Ao mesmo tempo, há quem se preocupe em apoiar projetos nas áreas de mídia, segurança pública e desigualdade racial, até para enfrentar as dificuldades adicionais trazidas pelo momento. Exemplo disso é o Confluentes, projeto financiado pelo Instituto Betty e Jacob Lafer e outras fundações, entre as quais Oak, Open Society, Luminate e o Instituto Ibirapitanga, com o intuito de atrair pessoas físicas de alta renda para causas estratégicas e formar uma rede de relacionamento, com palestras e encontros.

Inês Lafer conta que a abordagem será: “Você está insatisfeito? Quer ser parte da mudança? Aqui tem uma oportunidade de investir em organizações que a gente já conhece e financia”. A ideia é aproximar de temáticas sociais quem está na elite econômica, mas não se sente muito identificado com ela. “Este projeto está sendo gestado faz tempo, mas hoje em dia virou uma coisa necessária”, diz. As doações serão de R$ 5 mil a R$ 15 mil por ano e os recursos distribuídos entre cinco organizações da sociedade civil.

Inovações são vistas também em outras frentes, como no investimento de impacto, que concilia ganhos sociais e ambientais com oportunidades de mercado. Luis Fernando Guggenberger, coordenador de inovação e sustentabilidade da Vedacit, empresa pertencente à família Baumgart, destaca a geração millennial de empreendedores que está incomodada com a forma como a construção civil é feita no país, tanto do ponto de vista social como ambiental.

Essa geração tem buscado inovações por meio de startups de impacto, uma das linhas de atuação do Instituto Vedacit, que financia laboratórios de inovação em um dos setores mais conservadores da economia. “O que está influenciando os negócios hoje são a terceira e quarta geração das famílias”, aposta.

Ainda que o investimento social privado mostre sinais de vida como esses, Zacchi, do Gife, avalia que o país entrou uma fase na qual tem dificuldade de reconhecer avanços feitos na sociedade civil durante toda a trajetória democrática iniciada na Constituinte – e esse talvez seja o maior desafio.

Segundo ele, problemas persistentes em educação, saúde, segurança e meio ambiente levaram ao senso comum de que o Brasil pouco avançou – o que é falso, bastaria olhar indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em sua leitura, a tendência de descartar tudo com a água do banho vem de um quadro psicológico ciclotímico da nação, no qual a sociedade passa facilmente da euforia à depressão, alternando o “com brasileiro não há quem possa” e o complexo de vira-latas, que induz à terra arrasada, para se recomeçar do zero.

Mas Zacchi lembra que democracia e desenvolvimento é corrida de revezamento, pega de onde está, identifica o que avançou e, com muito cuidado, passa o bastão para o outro construir em cima. “Não é derruba tudo e começa do zero. Sociedades não avançam dessa forma. O Brasil flerta com esse modo, quase em um transe, de forma não racional.” A pergunta que se coloca, segundo ele, é como refazer modos de convergência e de debate público neste contexto mais sujeito à intimidação, ao ódio e à manipulação. É como se Brasil vivesse, a seu modo, um apartheid, sem saber neste momento se o desfecho será positivo.

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