Por caráter inovador, pesquisa da UnB venceu concurso da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e Tecnologias (Esocite)
Por Serena Veloso, Do UnB Ciência
Na bolsa, na cabeceira da cama, no armário do banheiro. Lá estão eles, prontos para uso imediato. Com efeitos e funcionalidades diversos, o consumo de medicamentos aumenta de forma considerável no Brasil. Entre 2014 e 2018, a venda de remédios no país deu um salto de 42,6%.
Antes da comercialização, os produtos farmacêuticos passam por uma série de testes, os chamados experimentos clínicos, para averiguar questões como ação terapêutica, segurança, efeitos colaterais e eficácia dos compostos em seres humanos. Analisar todas as etapas dos experimentos clínicos para identificar questões econômica, política, ética e de saúde envolvidas na produção de medicamentos foi a proposta de tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB, premiada em setembro de 2019.
Conduzido pela pesquisadora Rosana Castro e orientado pela professora do Departamento de Antropologia (DAN) Soraya Fleischer, o trabalho Precariedades oportunas, terapias insulares: economias políticas da doença e da saúde na experimentação farmacêutica venceu o primeiro concurso de teses e dissertações da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e Tecnologias (Esocite). A entidade atua no fortalecimento da colaboração entre investigadores e na promoção de pesquisas na área.
Ao total, 43 trabalhos – 20 de mestrado e 23 de doutorado – concorreram à premiação, concedida em reconhecimento à excelência das pesquisas e suas contribuições. Concluído em 2018, o estudo da UnB explorou o emaranhado de relações, atores e metodologias envolvido em experimentos clínicos para o desenvolvimento das tecnologias biomédicas e as implicações no sistema de saúde brasileiro.
VISIBILIDADE – Para a pesquisa, Rosana Castro esteve em um centro de estudos clínicos brasileiro, local normalmente contratado por laboratórios farmacêuticos para a realização dos experimentos clínicos. Ela conversou com cientistas, profissionais e participantes das avaliações dos medicamentos, além de gestores públicos atuantes na área.
A visibilidade dada ao assunto, ainda pouco explorado no âmbito acadêmico, foi um dos aspectos considerados inovadores pela banca avaliadora do concurso, composta por pesquisadores de diversas instituições do país. Debruçada no debate sobre ciência, tecnologia e corpos desde a graduação em Antropologia, Rosana Castro acredita que a compreensão dos processos envolvidos na experimentação de medicamentos é fundamental para proporcionar o conhecimento sobre a própria indústria farmacêutica, uma das mais lucrativas do mundo.
“No Brasil, para disponibilizar um medicamento, é necessário uma autoridade estatal autorizar a indústria que o produz a vendê-lo. Para isso, essa autoridade irá solicitar à indústria evidências científicas sobre segurança e eficácia do medicamento”, esclarece.
Segundo a professora Soraya Fleischer, a tese contribui para ampliar o conhecimento sobre o sistema de saúde privado no país. A docente afirma que a pesquisa abre espaço para um diálogo mais sistemático entre a Antropologia e outras áreas do conhecimento, como as Ciências Farmacêuticas. Além disso, agrega questões a serem debatidas entre gestores públicos e a sociedade.“Vejo um grande potencial de aplicabilidade da tese, que analisa todos os processos, da produção até a chegada dos medicamentos para consumo. Eles precisam ser bem conhecidos para que fiquem mais transparentes e estejam à serviço da população”, defende a orientadora.
METODOLOGIA – A tese de Rosana Castro investigou uma das metodologias prevalentes em avaliações avançadas de medicamentos, os Ensaios Clínicos Randomizados Duplo Cegos Controlados (ECR). Referenciados internacionalmente como padrão-ouro, os ECRs são instrumentos de experimentação comparativos, nos quais participantes são distribuídos aleatoriamente em dois grupos. Enquanto um é submetido aos efeitos da substância testada, o outro, não, servindo apenas como controle do experimento. A alocação nos diferentes grupos é feita sem conhecimento prévio tanto por parte dos recrutados, como dos pesquisadores.
A antropóloga detalha as práticas envolvidas na execução dos protocolos das pesquisas clínicas, norteada por conceitos da Antropologia e da Farmacologia, campo que estuda a interação de substâncias químicas no organismo. Os procedimentos incluem diversas etapas, como a escolha dos países para os quais um estudo será direcionado; o recrutamento de pacientes; o rastreamento para avaliar se atendem o perfil requisitado para a pesquisa; a realização de exames clínicos, etapa conhecida como screening, e a randomização, ou seja, o momento em que os pacientes recebem a primeira medicação e têm suas consultas agendadas para acompanhamento
ASSISTÊNCIA – A tese propõe ainda debate sobre os processos relativos à finalização das pesquisas e o fornecimento do tratamento pós-estudo. Segundo Rosana, a pesquisa clínica mobiliza milhares de pessoas no mundo. No Brasil e em outros países da América Latina, esses experimentos costumam ser aplicados já em fase avançada. Em grande parte, são voltados à avaliação da eficácia e identificação de efeitos adversos de um medicamento em pessoas adoecidas com perfis específicos.
Esses países são considerados promissores para esse tipo de estudo, pela alta demanda por assistência em saúde, apesar de ainda pouco explorados. “Há um discurso mais disseminado entre cientistas do campo, gestores públicos interessados na pesquisa clínica e representantes dessas indústrias no país de que o Brasil é um local com muito potencial, mas que é desperdiçado por conta de morosidades burocráticas”, salienta Rosana Castro.
Em diálogo com os participantes dos ensaios clínicos, a pesquisadora observou a grande atratividade dos experimentos como meio de acessar gratuitamente serviços, exames e consultas indisponíveis nos sistemas público e privado de saúde de modo adequado. Na avaliação da pesquisadora, as fragilidades das políticas de saúde criam perspectivas vantajosas para a indústria farmacêutica e retroalimentam um sistema de contato pontual e limitado da população com os tratamentos de ponta oferecidos nos centros de estudos clínicos. Nesse cenário, a população trafega entre diferentes serviços de saúde, sem perspectivas de assistência integral, universal e gratuita garantida.
“É interessante problematizar em que medida a própria precariedade da oferta de serviços e tecnologia de saúde no Brasil é algo que acaba beneficiando essa indústria. Quanto mais precarizado é o acesso das pessoas a esses serviços e tecnologias, mais a indústria atua para especular sobre esses sujeitos”, observa.
Rosana considera a questão problemática, já que a disponibilização dos medicamentos experimentais e da assistência em saúde pelas unidades de pesquisa clínica é, muitas vezes, limitada ao período do estudo. Com o fim dos procedimentos, esses pacientes voltam a requisitar atendimento nas redes pública e privada de saúde e acabam desassistidos.
Apesar de existir resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que prevê a oferta dos remédios testados aos participantes dos ensaios clínicos após a finalização dos estudos, um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional prevê limitações ao processo. “Como os laboratórios são resistentes à oferta de tratamento pós-estudo por tempo indeterminado, o projeto de lei está tentando limitar o tempo e as condições da oferta do tratamento. O objetivo é criar um cenário mais amistoso para as indústrias virem para o país”, alerta a antropóloga. Segundo ela, é necessário diversificar as estratégias de assistência à saúde para a população, para que não haja dependência exclusiva da oferta de medicamentos.
Confira entrevista da pesquisadora Rosana Castro para o programa Explique sua Tese, da UnBTV