Thereza Santos entre armas e kizombas

Pegar em armas de fogo, no Continente Africano, durante a guerrilha em Guiné-Bissau, é a primeira coisa que os amigos lembram ao falar da atriz, dramaturga, publicitária, filósofa, educadora, escritora, ativista e carnavalesca

A grande arma de Thereza sempre foi a mais eficaz de todas. Aquela que tanto serve para destruir, como para construir: a palavra. E ela a dominava muitíssimo bem. Muitas vezes aos berros – com aquela voz que o tempo e os cigarros foram deixando cada vez mais rouca – a metralhar palavrões e impondo suas ideias.

Poucos sabem que, no batismo, recebeu o nome de Jaci dos Santos. Jaci, a Lua na língua tupi e, como tal, vivenciava intensamente a noite do Rio e, depois, a paulistana, onde tudo se debatia e se criava, fosse no campo das artes, da cultura ou da política. Mas seja onde fosse, Thereza, nome artístico que adotou para a vida e para a militância, em tempos de guerra ou de paz, se destacava pelas frenéticas realizações e pela intensidade de sua presença.

A Lua negra
Carioca, seu primeiro berro foi ouvido na então capital federal, em 1930, no mesmo ano em que um golpe de estado levou o gaúcho Getúlio Vargas ao poder para, em seguida, implantar sua ditadura. Quinze anos depois, Thereza estreava no cinema, no filme O Cortiço, de Luiz de Barros. Depois de quatro anos, lá estava ela, também, em Orfeu Negro, de Marcel Camus, o único filme brasileiro a conquistar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Participou do Teatro Experimental do Negro e sua voz, então forte, ecoou em espetáculos como A Escada, de Jorge Andrade, A Filha da Besta Torta do Pageu e Viva o Cordão Encarnado, ambas de Luiz Marinho; além da emblemática Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Hollanda, entre outras. As crianças de minha infância, que tiveram acesso à televisão, ainda em preto e branco, nos anos de 1960 e 1970, acostumaram-se a ver aquela atriz negra em novelas da TV Tupi, como Nino, o Italianinho, A Fábrica e na primeira versão de Mulheres de Areia.

Naquele período de ditadura militar, a inconformada Thereza Santos, comunista de carteirinha, não se acomodava nos papéis subalternos que a televisão lhe destinava. Precisava protagonizar. Por isso escreveu e dirigiu, em 1973, com o intelectual Eduardo Oliveira, a peça E agora… falamos nós, que estreou no teatro do Masp, com um elenco exclusivamente de atores e atrizes negras. Quando o personagem era caucasiano, surgia no palco com a face pintada de branco, numa referência ao Blackface norte-americano. Aqueles anos de chumbo levaram muitos de nossos intelectuais ao exílio. Alguns foram para a União Soviética e para a Europa; outros para o Chile de Allende ou para a Cuba de Fidel. Libertada, após uma detenção por questões ideológicas, em 1977, preferiu partir para a África, nos conturbados períodos de guerrilhas no pós-libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Depois, mudou-se para Angola e atuou nas áreas de educação e cultura, ao lado de seu amigo José Eduardo dos Santos, que, desde 1979, é presidente daquele país. Na volta ao Brasil, dirigiu vários espetáculos, entre eles, o musical Ongira, Grito Africano, de Estevão Maya Maya e Antônio de Pádua.

Carnavais e política cultural 
O grande palco para Thereza Santos, porém, era a passarela dos cordões e escolas de samba. Mangueirense, em sua mudança para São Paulo, criou e desenvolveu enredos, sempre baseados na história e na cultura afro-brasileiras para várias agremiações, principalmente a Camisa Verde e Branco e a Unidos do Peruche. Nos tempos em que o carnaval não era exclusividade de Rede Globo, seus comentários contundentes tornaram-se a marca registrada das transmissões dos desfiles, pela Rede Bandeirantes e pelas TVs Gazeta e Cultura.

Era brigadora por natureza. Organizou o Coletivo de Mulheres Negras e, inconformada com a ausência de negras no Conselho Estadual da Condição Feminina, infernizou tanto o governo que foi nomeada conselheira.

Por suas atividades nas escolas de samba e em seu grupo Negro, Arte e Cultura, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, então secretário da Cultura da cidade de São Paulo, a convidou para assessorá-lo no desenvolvimento de políticas culturais para nossa gente. Dali, ela seguiu para a esfera estadual. Como assessora de cultura afro-brasileira da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo, de 1986 a 2002, ajudou a implantar o Projeto Negro Consciência e Liberdade, do qual faziam parte o Perfil da Literatura Negra, o Encontro Internacional de Música Negra e o Kizomba, um festival anual multimídia que enegrecia a cidade de São Paulo.

Candidatou-se algumas vezes à vereadora e deputada estadual, mas nunca conseguiu se eleger. Talvez pela autenticidade que, muitas vezes, assustava aqueles que esperam dos políticos em campanha uma docilidade que não lhe era própria. Thereza não sabia fingir. É o que se percebe em sua autobiografia Malunga Thereza Santos – A História da Vida de uma Guerreira, publicada em 2008, pela Editora da UFSCar. Não faltaram homenagens, ao longo de sua vida, como o Prêmio Espelho D’água, do Projeto Oxum Rio Ijexá de Mãe Iva d’Oxum, que recebeu em 30 de novembro de 2012, menos de 20 dias antes de seguir para o Orum.

 

Fonte: Raça Brasil

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