“Estou cansada de pessoas questionando minha competência profissional porque sou negra”

A Dayane me enviou sua revolta. Um verdadeiro manifesto que dispensa apresentações. 

MANIFESTO DO MEU CANSAÇO

Essa semana tive a plena consciência de que por ser mulher cis, negra, agnóstica, feminista e filha de mãe solteira, eu não valho nada pra uma grande parcela da sociedade brasileira. Percebi, inclusive, que alguns indivíduos dessa parcela encontram-se no Congresso, decidindo questões sobre mim, minha vida, minha saúde, minha integridade física e minha família.
Essa semana descobri que todo o peso cultural da expressão “cabelo de bombril” pode ser jogado no lixo em favor da “arte ousada e  subversiva” por profissionais que supostamente deveriam saber o que é Semiótica e Teoria Social.

Melhor ainda foi saber que meu cabelo crespo — que nunca foi “duro”, “fedido”, “sujo”, pelo contrário –, que foi chamado de “bombril” e “bucha” a vida toda, desde que eu era criança, é representado numa passarela justamente com esse material feio, opaco, usado pra limpar panelas. Melhor ainda foi ver minha área de trabalho (Artes Visuais) ser usada como desculpa esfarrapada para trabalho malfeito e para justificar naturalizações de racismo.

E melhor ainda foi ver esses profissionais usando de desvios arrogantes, apoiados por certos veículos de comunicação de qualidade jornalística completamente duvidosa, para tentar nos culpar, o público, de seu trabalho questionável. Vi pessoas compararem isso à revolta que o Modernismo causou nos anos 20. Vi pessoas compararem esdruxulamente “racismo” com “arte”, como se liberdade poética fosse inquestionável e absoluta. O mesmo pensamento pra esse “humor” medíocre brasileiro. Se você não concorda, logo é chamado de politicamente correto (a.k.a. chato e sem graça), inculto, burro e por aí vai. Porque todo mundo aqui tem que achar super engraçado piadas e “arte” que mexem de forma desleixada com temas como racismo, homofobia e misoginia, coisas que várias pessoas sofrem de forma violenta diariamente.

trote racista

Essa semana vi estudantes de Direito fazerem trotes de cunho racista e machista e achando graça. Estudantes supostamente tão inteligentes e instruídos pintando a cara de uma aluna de preto, chamando-a de escrava e ainda por cima de Chica (sic) da Silva, com erro gramatical — só pra ser bem chata. Estudantes que daqui a dez anos estarão no Judiciário, estarão em vários cargos públicos de alto escalão, estarão cuidando de mim, negra e mulher, e da minha família. Estudantes que provavelmente — ESPERO MESMO QUE NÃO — continuarão estudando no mesmo lugar com os mesmos privilégios e rindo da cara de todo mundo por causa do manto de impunidade que existe neste país.

No mesmo barco, vi um Doutor em Linguística, que provavelmente, em alguma parte de sua carreira acadêmica, teve seu curso sustentado pelo Estado — que eu respondo e sustento com meu salário –, ignorar o poder de sua própria área de trabalho em favor do racismo e chamar um aluno negro de macaco. Se a tal educação que devia libertar se mostra absolutamente ineficaz, o que mais que eu posso esperar dela?

padilha ministro saude

Essa semana eu vi uma junta médica se declarar favorável ao aborto por uma questão de saúde pública, e na contramão vi um ministro apelando da carteirada e da prepotência responder “Não aprovo. Eu sou ministro da saúde. Eu sou o governo”. E melhor ainda, vi uma jornalista criticando em rede nacional, agressiva e publicamente, por pura convicção pessoal e religiosa, um grupo de médicos opinando sobre uma questão de saúde.

sheherazade sobre aborto

Mesma jornalista que disse que cristãos estão sendo perseguidos, que a sociedade brasileira rejeita a inspiração amorosa do cristianismo, que acha bonito o fato de um estado laico ter uma Constituição promulgada por deus. Uma jornalista que deveria prezar por uma mídia isenta de desonestidade intelectual. Mas depois de uma revista que nos chama de burros, na cara dura, porque não concordamos com um estilista, o que mais se esperar? E isso porque somos nós que pagamos por ela.

aborto nao deve ser crime

Vi pessoas me chamando de abortista por defender a vida feminina. Logo eu, que nunca fiz nem pretendo fazer um aborto. Logo eu, que uso DOIS métodos contraceptivos combinados. Vi pessoas apelando pra discursos filosóficos e religiosos e usando metáforas como “o sopro da vida” pra me dizer indiretamente que a vida de um embrião vale mais que a minha. Vi pessoas se declarando médicas na internet falando que aborto é “método contraceptivo”. Cheguei até a ver uma pessoa dizendo que Programa de Controle de Natalidade é método de extermínio.

Chega de achar que toda essa PALHAÇADA não interfere no nosso cotidiano.

Estou cansada de pessoas questionando minha competência profissional porque sou negra, com aquela mentalidade de “negro no Brasil quando é bem sucedido sempre teve um empurrãozinho né, aff esse país ajuda demais esse povo”. Estou cansada de andar na rua e ouvir um monte de homens desconhecidos me chamando de GOSTOSA e falando AÔ LÁ EM CASA. Estou cansada de estar sentada num ônibus e, do lado de fora, um caminhoneiro ficar me mandando beijos.
grosserias na rua

Estou cansada das pessoas acharem que me sinto elogiada por isso, que não tenho medo de um desses homens me agredir, me seguir e me violentar. Estou cansada de sair de casa com um vestido que, mesmo sendo na “linha do joelho” (como se isso fizesse diferença), é motivo pra todos assoviarem e mexerem comigo. Estou cansada de sair de calça e casaco quando vou pra lugares desconhecidos de ônibus ou quando sei que vou fazer um grande trajeto a pé.

mulher cabelo curto

Estou cansada de ouvir coisas como “Nossa, agora que seu cabelo tá mais curto tá mais bonito, TÁ MAIS LISO” e ter que encarar numa boa, porque foi só um comentário inofensivo. Estou cansada de ouvir coisas como “mas você nem é tão escurinha”, como se isso fosse algum tipo de elogio e me impedisse de ser negra.

Tô de saco cheio de pessoas questionarem a minha sexualidade porque meu cabelo é curto, como se um CABELO indicasse minha paixão por homens ou mulheres. Tô de saco cheio de pessoas ignorantes que soltam argumentos como “racismo tá nos olhos de quem vê”, “isso aí é coisa da sua cabeça”, “negro também é racista”, “eu sou branco/oriental/etc e sofri racismo!”.
bolsonaro queima rosca todo dia

Tô de saco cheio de ver um político que deveria ser sério e me representar escrevendo ‘QUEIMAR A ROSCA’ numa audiência séria insultando homossexuais. Tô de saco cheio de ver o presidente de uma Comisssão de Direitos Humanos ser misógino, homofóbico e racista. Tô de saco cheio de reaças com argumentos RIDÍCULOS falando de “movimento gayzista”, como se todxs xs homossexuais do mundo estivessem se armando com metralhadoras e obrigando todo mundo a virar gay.

quem tem respeito usa camisinha

Tô de saco cheio de gente estúpida, grossa e mal educada vir tentar me dizer como eu devo me portar por se mulher, o que devo beber, quando devo ter filhos, gente que acha um absurdo eu carregar preservativo na bolsa, gente que me olha com cara de “hmmm essa dá” quando eu tomo meu anticoncepcional que é PRA EVITAR ESPINHAS MAJORITARIAMENTE. Porque obviamente na mente dessas pessoas toda mulher que toma pílula é promíscua. Porque ter camisinha na bolsa é “coisa de puta” e porque se eu engravidar mesmo assim a culpa é minha e que eu não devo é fazer sexo. E claro que essa mesma gente me negaria o direito ao aborto.

Não aguento mais ver mulheres fazendo aborto no fundo do quintal com uma agulha e um monte de pessoas hipócritas virem me dizer que elas têm que morrer mesmo. Não aguento mais ver pessoas que se dizem pró-vida usando argumentos apelativos e ausentes de qualquer lógica. Não aguento mais essas mesmas pessoas chamando mães solteiras de vadias, abandonando seus filhos de qualquer jeito, não dando assistência a nada nem a ninguém, não adotando crianças (porque se for pra adotar tem que ser branca do ôio azul, vai adotar um negro pra quê) e não fazendo nada de efetivo pra que esse mundo onde a vida bela que eles tanto adoram defender exista de fato.

Parei de acreditar em burrice plena. Pra mim, o problema do Brasil é a hipocrisia, a má fé e a preguiça de assumir o que está errado. Fácil é fingir que tá tudo de boa e não se mexer. O Brasil é um país doente.

Beijos da negra, mulher cis, filha de mãe solteira, feminista e agnóstica, que não vale nada pra muitos mas, mesmo estando exausta, não vai desistir tão fácil.

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