O sorriso de batom vermelho e o turbante colorido, tão bem alinhado no penteado afro, não são as únicas características que chamam a atenção de quem a vê. Do alto de seu 1,75m, Ducineia Cardoso – ou Nega Duda, nome artístico pela qual é conhecida há 12 anos – emociona quando sobe ao palco e começa a cantar.
Por Ana Luísa Vieira*, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
*Colaborou Tânia Carlos
O vozeirão rouco e imponente já foi comparado ao da norte-americana Nina Simone (1933-2003), um dos maiores nomes do jazz. Basta o elogio para os olhos de jabuticaba de Nega procurarem o chão, timidamente. “Faça isso não! Nina é uma grande diva.”
As semelhanças não se restringem ao timbre, tampouco à cor da pele. Ícone da música e da defesa dos direitos civis, Nina, sexta de sete filhos de uma empregada doméstica com um marceneiro, teve uma infância pobre, como mostra o documentário “What Happened, Miss Simone?”, previsto para estrear em junho no Brasil.
Nega, nascida em São Francisco do Conde, cidade de 38 mil habitantes localizada a 1h30 de Salvador, no Recôncavo Baiano, é a mais velha de 12 irmãos. Quatro morreram por desnutrição, ainda bebês.
Sua mãe, limpadora de peixes da espécie xangó, cuidou sozinha das crianças. O pai, operário de uma plataforma de petróleo, não acompanhou o crescimento dos filhos – reapareceu quando Nega, mãe adolescente, já dera à luz Jackson, hoje com 31 anos, e Jaqueline, atualmente com 30 – ela tem três netos, Eric, Jackson Júnior e Camille Vitória, de 12, 3 e 2 anos, respectivamente.
Força e sonho
Os percalços na estrada, de certa forma, fortaleceram a voz da cantora. Nega Duda, ao assumir o microfone, leva os trajes, os batuques e as histórias africana e afro-brasileira para suas apresentações. Tornou-se expoente do povo negro.
Nascida em 13 de maio de 1968, no aniversário de 80 anos da Abolição da Escravatura, Ducineia conta que o apelido Nega Duda surgiu justamente por causa da coincidência entre as datas. “Na Bahia, 13 de maio é Dia dos Negros. Tinha de acompanhar minha mãe ao ‘Bembé do Mercado’. Era uma festa de Candomblé que concentrava todos os terreiros da região em uma cidade vizinha, para celebrar a abolição”, lembra-se. “Eu queria era bolo e festa, como qualquer criança. Mas, quando cresci, pude entender minha missão.”
A infância foi sofrida. “Fome, não passei, mas privação, sim, por ter o que comer ao meio-dia e nada à noite.” Desde pequena, era convidada pela mãe, Hildete Cardoso – a dona Dete do Xangó – a acompanhá-la no Candomblé. A menina registrava em cadernos amarelados os ritos aprendidos. Depois, os lia para a mãe, analfabeta.
“Ela foi uma guerreira ao escolher viver sozinha, sem depender de outras pessoas, em uma sociedade tão machista. Mesmo severa com os filhos, hoje eu a entendo. Dona Dete me inspirou a ir à luta. Toda mulher negra é obrigada a ser mais forte.”
Verve musical
A música sempre esteve na vida de Nega. Ela se lembra da avó “cantando seus lamentos” enquanto pendurava roupas. A mãe preferia o samba de roda e assobiava pelos cantos da casa. As idas ao Candomblé também a ensinaram uma série de canções nos dialetos africanos Yorùbá (Nigéria) e kimbundu, da etnia Bantu (Angola e Congo).
Cantar alto era um mero passatempo para Nega. “Sempre fui boa ouvinte. Tanto no Candomblé quanto no samba de roda, você ouve e responde em um coletivo de vozes. Assim cresci, a 200 metros do mar, na orla da minha cidade.” Pela manhã, a primeira coisa que faz é ligar o rádio. “Hoje, eu acesso o site da emissora, mas sinto falta daquele zumbido ao caçar as estações”, brinca.
Da Bahia para a França
Em 2002, produtores culturais franceses vieram ao Brasil em busca de grupos regionais. A ideia era reuni-los para um mês de apresentações na 17a edição do Festival Printemps des Comédiens, em Montpellier. Ao todo, 38 brasileiros representaram o país no evento. Da Bahia, apenas Nega Duda, então integrante do grupo Lindro Amor, e a conterrânea Rita da Barquinha foram selecionadas.
Transformadora é a palavra que, segundo Nega, descreve a experiência no exterior. “Viramos uma família”, recorda-se. “E aos 35 anos, descobri que as pessoas me achavam bonita. Eu nunca tinha ouvido isso”, emociona-se. “Eu era elogiada pelas minhas comidas e pelo meu trabalho, não pela minha aparência. Sempre trabalhei muito. Sempre fui forte, mas também tenho meus calundu [dias de mau humor]”, diz, os olhos marejados.
“Não era por eu estar com um batom bonito, com uma saia colorida e rodada, com um turbante. Eles me reconheciam como mulher negra. E eu também passei a me reconhecer, a me assumir, a me entender mais bonita, a aceitar o meu cabelo crespo, a conviver com gente da minha tribo que não me cobrava para esticar os fios.”
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Tambores que empoderam
Em Montpellier, Nega conheceu Beth Beli e outros artistas dos quais se aproximou. De volta a São Paulo, Beth a chamou para fundar o grupo Ilú Obá de Min (Mãos Femininas que Tocam Tambor para o Rei Xangô).
Trata-se de um coletivo que busca empoderar as mulheres negras, com sede no Centro da capital. O espaço oferece debates, oficinas, palestras e cursos de danças típicas. Recebe também os ensaios da trupe para o Carnaval de rua.
Há uma década, o Ilú, que reúne quase 300 mulheres de diferentes religiões, celebra as matrizes culturais africanas. Seus enredos, influenciados pelo Candomblé, sempre homenageiam mulheres negras. Neste ano, a escolhida foi a escritora e poetisa Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Os leitores do jornal Folha de S.Paulo elegeram o Ilú o melhor bloco da cidade.
“É no Ilú que Nega vira Nega Duda”, diz, rindo. Com o grupo, além de aprender a tocar tambor, soltou a voz. “Imagine só: eu tinha quase 40 anos e não sabia quem tinha sido Rainha Nzinga, a primeira homenageada do Ilú, primeira mulher a comandar um exército masculino. O llú me ensinou história, cidadania e empoderamento”, afirma Nega, que se tornou protagonista do desfile de dois anos atrás, com o enredo “Nega Duda e o samba de Roda do Recôncavo Baiano – Patrimônio Imaterial da Humanidade”.
Canção de estudante
No Candomblé, todos são filhos de orixás. Nega Duda exibe no punho esquerdo a tatuagem do machado de Xangô (o Rei, aquele que representa a Justiça). No peito, estão o nome da mãe e as iniciais dos filhos. “Sou incendiária desde pequena”, gargalha.
Um passeio pela pequena casa de Nega, localizada em Santana (Zona Norte de São Paulo), mostra o quanto a cantora preza suas raízes africanas. Colares e lembranças de viagens colorem o espaço. Nas prateleiras abarrotadas, entre tantos livros, chamam a atenção as obras “Dialética Radical do Brasil Negro”, “Caroço de Dendê – a Sabedoria dos Terreiros”, “Novo Dicionário Banto do Brasil” e “Amkoullel, o Menino Fula”, de Amadou Hampâté Bâ, autor nascido em 1900 em Bandiagara, atual Mali. “Eu quero e preciso saber sobre a história da arte, sobre o que meus ancestrais me trouxeram. Também tenho de ler as novidades da literatura da África, do Brasil, do meu povo”, diz.
Na cabeceira, duas biografias: a do líder negro Malcolm X e a do fotógrafo francês Pierre Verger, intitulada “O Homem Livre”. O antropólogo passou a vida estudando a relação entre a África e o Brasil. Na estante reservada aos CDs, misturam-se Alcione, Clementina de Jesus, Clara Nunes e Leci Brandão – esta, por sinal, madrinha do Ilú Obá de Min.
Com 5 mil amigos no Facebook, Nega recorre às redes sociais para anunciar seus shows. Antes e depois dos espetáculos, a artista vira vendedora: oferece pimentas caseiras, licor de jenipapo, turbantes e bijuterias criadas por ela. “Gostaria de ter mais apoio para divulgar o samba da minha cidade. Sei que tenho e recebo muito amor. Mas, infelizmente, ele ainda não paga as contas”, reflete Nega, que estuda arte-educação e sonha em cursar faculdade de Ciências Sociais.
Depois de uma operação na garganta por conta de pólipos (pequenas formações nas cordas vocais), Nega precisou largar a vida de diarista. Alguns produtos de limpeza começaram a lhe fazer mal. “Eu não sabia que para cantar precisava aquecer a voz, dormir bem, não tomar gelado”, conta. “Parei de fumar também. Se essa voz pode me dar algo bonito, então vamos tratar dela com carinho, né?”