A mensagem chega por WhatsApp, e-mail, inbox, DM e também em posts com meu nome marcado nas redes sociais. “Manifestação de apoio à concessão de título de Doutora Honoris Causa pela Unifesp a Amelinha Teles”. Clico no link, corro os olhos no formulário e subscrevo com satisfação. A história do feminismo no Brasil e, principalmente, a luta por memória, verdade e justiça devem muito a Amelinha. Se essa mulher ainda não tem um diploma de doutora, a falta é toda da Academia, não dela.
Amelinha é uma dessas intelectuais que o italiano Antonio Gramsci chamaria de orgânica. Nunca se distanciou de sua base, de sua classe, de sua origem enquanto local de expressão social e coletiva.
Pesquisadora rigorosa e ativista incansável, Amelinha atua há cinquenta anos como ponta de lança na defesa da democracia e na busca (interminável) para que as vítimas da violência de Estado, sobretudo nos anos de chumbo, tenham reparadas sua dor e suas perdas: não com indenizações, mas com o reconhecimento, a ampla divulgação das violações cometidas, a condenação dos criminosos, as respostas que os familiares dos desaparecidos ainda esperam.
Onde houver uma atividade por memória e justiça – um ato pela transformação do antigo DOI-Codi em equipamento de cultura, uma troca de nome de rua, uma caminhada do silêncio, uma representação contra algum servidor público ou instituição disposta a comemorar o golpe de 1964 – lá estará Amelinha.
Quatro anos atrás, uma galera mais jovem se surpreendeu ao ouvir o depoimento dado por Amelinha a um programa eleitoral do então candidato Fernando Haddad. Em meio minuto, Amelinha contou detalhes das torturas praticadas na primeira metade dos anos 1970 pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do então candidato Jair Bolsonaro, e sua equipe:
“Eles colocam muitos fios elétricos descascados (em você). Dentro da vagina, dentro do ânus. Você grita de dor. Você perde o equilíbrio e cai no chão, eles vêm pra cima de você para te estuprar. O momento de maior dor foi o Ustra levando meus dois filhos para a sala de tortura, onde eu estava nua, vomitada, urinada“
Lembro-me de ouvir esse testemunho de Amelinha inúmeras vezes, a primeira delas pessoalmente, em 2016, quando trabalhávamos juntos na Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo. Janaína, sua filha, tinha 5 anos, e Edson, seu filho, tinha 4, quando Amelinha foi presa, nos últimos dias de 1972. Tortura maior, as duas crianças foram igualmente sequestradas pelos agentes do DOI-Codi de São Paulo e levadas à Rua Tutóia. Sequestradas, tanto a mãe quanto as crianças, assim como o companheiro de Amelinha, César Teles, porque a detenção não era oficial: não havia mandato, nem registro, nem comunicação à Secretaria de Segurança Pública, nem sequer qualquer previsão legal, sob qualquer hipótese, para que dois menores com tão pouca idade fossem arrastados para uma sala de tortura.
Amelinha conta que Janaína olhou para ela, custou a lhe reconhecer, e finalmente perguntou: “por que você está azul e o papai está verde?” Era o resultado monstruoso dos hematomas, da pancadaria que ambos haviam acabado de sofrer. Se eu, que nunca estive naquela situação, muito menos na presença do meu pai ou da minha mãe, jamais esquecerei dessa cena, que dirão aquelas duas crianças?
Ousadia e coragem
A história de Amelinha é, toda ela, um épico de ousadia e coragem. Logo depois de ser solta, após dez meses de detenção política e arbitrária, Amelinha engajou-se nas campanhas pela anistia e pela democracia, e também pelo fim da tortura e em busca de desaparecidos políticos. Seu cunhado, André Grabois, foi dado como desaparecido em 1973. A irmã, Crimeia, presa na mesma época que Amelinha, estava grávida de sete meses e ficou viúva (pelas mãos criminosas da repressão) antes de ter o menino João Carlos.
Amelinha nunca optou pelo silêncio. Já em 1975, entrincheirou-se no Movimento Feminino pela Anistia e criou o jornal Brasil Mulher. Entre 1978 e 1979, no âmbito dos comitês brasileiros pela anistia, participou da elaboração dos primeiros relatórios produzidos pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Participou de expedições à região do Araguaia em busca do paradeiro de companheiros sumidos. E, em 1990, liderou o movimento para que todas as 1.049 ossadas descobertas numa vala clandestina no cemitério de Perus, em São Paulo, fossem transferidas em segurança para um instituto universitário de medicina forense para que pudessem ser analisadas e identificadas.
Na ocasião, engajou-se de forma intensa e resoluta como assessora da Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara Municipal para investigar a origem daquela vala, as razões de sua construção e a cadeia de comando por trás dela. Outras comissões viriam nos anos seguintes, entre as quais a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, da qual foi membro, e a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, da qual foi assessora.
Amelinha não tem nenhum familiar que possa estar na vala e, a despeito disso, passados mais de trinta anos, não falta às audiências e não se exime das discussões e disputas travadas até o presente momento para garantir a continuidade e a finalização dos trabalhos de análise, ainda inconclusos.
Se Carlos Alberto Brilhante Ustra é, desde 2008, o único torturador brasileiro reconhecido judicialmente como torturador, foi porque a família Teles, em 2005, constituiu o advogado Fabio Konder Comparato para ingressar com uma ação declaratória a fim de que o Estado brasileiro assim o reconhecesse. A ação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça em 2012.
Tudo isso sem deixar de lado a militância feminista na União de Mulheres de São Paulo, da qual é fundadora, e o trabalho permanente como intelectual e pesquisadora. São dela os livros “O que são direitos humanos das mulheres?” e “O que é violência contra a mulher?”, ambos publicados pela Brasiliense na saudosa coleção Primeiros Passos, bem como dois títulos mais recentes:
“Da guerrilha à imprensa feminista”, em coautoria com Rosalina Santa Cruz, e “Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios”.
Parecer favorável
A contribuição de Amelinha para a luta pela democracia e pelos direitos humanos, bem como para a construção dos direitos das mulheres, motivou Fernanda Emy Matsuda, professora do curso de Direito no campus de Osasco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a propor a outorga do título de doutora honoris causa a ela. Sua recomendação recebeu parecer favorável da comissão constituída para analisar a admissibilidade do pedido em sua unidade. Ainda não há data para a apreciação pela comissão permanente, vinculada ao Conselho Universitário, que apresentará um novo parecer a fim de apoiar a decisão final dos conselheiros. O abaixo-assinado que circula nas redes funciona como um endosso extraoficial à candidatura.
Recentemente, a Unifesp concedeu o título de doutor honoris causa ao xamã e líder indígena Davi Kopenawa, porta-voz do povo yanomami, em maio, e ao educador Paulo Freire (póstumo), em junho. Na USP, quem recebeu o mesmo diploma, também póstumo, em novembro do ano passado, foi o advogado, jornalista e abolicionista Luiz Gama. Na PUC, o departamento de Comunicação propôs e acaba de ser aprovada na Faculdade de Filosofia e Comunicação a entrega do título de doutor honoris causa ao escritor e frade dominicano Frei Betto, que segue agora para tramitação junto ao Conselho.
É alvissareiro observar a profusão de títulos que vêm sendo conferidos por universidades brasileiras a pensadores e personalidades com destacada atuação em favor da democracia, da cidadania, da equidade de gênero, da pauta antirracista, da educação, da representatividade. Amelinha Teles, Frei Betto, Paulo Freire, Davi Kopenawa e Luiz Gama são feitos do mesmo tecido de que é feita a resistência contra o arbítrio e a luta por direitos humanos.
Vacina contra o negacionismo
A concessão desses títulos no atual momento da história do Brasil é também um sinal de amadurecimento e de coragem da própria academia, que não se curva perante o negacionismo nem se acovarda diante da anticiência raivosa dos que nos governam. A opressão vem de todos os lados e de diferentes formas. Há pouco mais de dois meses, o governo federal bloqueou mais de R$ 3 bilhões do valor a ser repassado para as universidades federais, um cruzado de direita do tamanho de 15% do orçamento. Intimidação da pior espécie. Nesse cenário, toda ação capaz de explicitar a autonomia universitária deve ser celebrada.
Em outros tempos, nem sempre o assédio dos poderosos pôde ser combatido com brio e soberania. Até mesmo a concessão de títulos de doutor honoris causa entravam no jogo político. No último dia 19, o Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) cassou os diplomas honoríficos entregues nos anos 1970 aos ex-ditadores Arthur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici, ambos generais e gaúchos. A recomendação foi feita pelo Ministério Público Federal e motivada pelo fato de ambos estarem entre os autores de graves violações de direitos humanos listados pela Comissão Nacional da Verdade. Em 2021, a Unicamp seguiu liturgia semelhante para derrubar o título de doutor honoris causa concedido ao ex-ministro da Justiça Jarbas Passarinho, basicamente pelas mesmas razões. Na UFRGS, na semana passada, foram 48 votos favoráveis à cassação, um voto contrário e uma abstenção.
Cultura do cancelamento
Uma decisão injusta? Um desrespeito à memória dos generais? Revanchismo? A notícia suscitou alguma discussão, não muita, sobre uma eventual arbitrariedade no gesto de cassar um título como esse, mais ou menos com os mesmos argumentos que ouvimos quando se discute a troca de nome de vias públicas – como a substituição do golpista Costa e Silva pelo golpeado João Goulart nas placas do Minhocão, em São Paulo. A cultura do cancelamento teria chegado aos títulos honoris causa?
Professor de filosofia, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro entende que a revogação desses títulos é compreensível e justificável. “O que ela significa? Que essa pessoa era considerada honrada até que se descobriu que ela não merecia essa honra. Ou mudou o contexto”, diz ele. Janine compara a situação dos militares à dos membros da Academia Francesa, equivalente à Academia Brasileira de Letras, que após a Segunda Guerra Mundial afastou alguns dos “imortais” que haviam aderido ao nazismo. “Provavelmente, esses títulos foram entregues aos ditadores numa espécie de demanda por mais recursos”, diz Janine, aventando a hipótese de que, na conjuntura autoritária dos anos 1960 e 1970, universidades federais podem ter recorrido a expedientes menos nobres, ou de menor independência, para pleitear favorecimentos junto à esfera federal.
Seja como for, sinto-me pessoalmente contemplado com a saída de Costa e Silva, Médici e Jarbas Passarinho e com a chegada de Luiz Gama, Paulo Freire, Davi Kopenawa e, em breve, dos amigos Frei Betto e Amelinha Teles entre os doutores das melhores causas. Para quem quiser subscrever a consulta popular em apoio à entrega do título a ela, é só clicar aqui.