Trajetória: Nuances sobre o racismo brasileiro

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

(ALVES, Castro. Navio Negreiro, 1880)

Por Jaqueline Lima Sales da Silva*,  enviado para o Portal Geledés 

ilustrações Amanda Favali (@favali_)

No Brasil do século XXI, não é raro encontrarmos pessoas fingidas que não declaram abertamente suas “preferências”, seus medos, seu racismo e sua direcionada covardia social. Ficamos sem saber como estruturar pensamentos e ideias diante da hipocrisia nos seus variados segmentos, mas a hipocrisia racista brasileira é a que mais chama atenção. Nessa mesma lógica nos orienta Abdias Nascimento, em seu livro: O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado (1978) que “a realidade brutal que os brasileiros têm de aceitar é que o racismo é em toda a parte diferente, e em toda a parte – o mesmo – varia em estilo, mas não em essência”.

Não é de hoje que o racismo vem sendo denunciado e combatido como um problema deletério que se arrasta historicamente vitimando mulheres e homens negros que vivem no país. O sistema escravocrata brasileiro perdurou por mais de 300 anos e, com isso, o Brasil foi o último país do Ocidente a acabar formalmente com a escravidão após a entrada em vigor da Lei Imperial nº 3.353 de 13 de maio de 1888 assinada pela princesa Isabel. 

O resultado de tanto tempo de servidão forçada já era de se esperar: Uma sociedade que atualmente ainda vive as mazelas da escravidão, perpetrada na desigualdade, pobreza, fome, marginalização, subserviência, violência, analfabetismo, prisão e genocídio da população negra. Inseparavelmente, tudo isso engloba o racismo brasileiro.

O racismo não blinda, nem poupa seus alvos, não importa a ascensão social, reconhecimento intelectual ou qualquer outro elemento de status convencionalmente aceito. 

No nosso país, a cor preta ou parda, denuncia a potencialidade de uma vítima. A pessoa negra sempre foi relacionada ao negativo, ao sombrio, a figura do criminoso, do malandro, do vadio e etc.  Por isso, não é de se espantar que muitas pessoas não se autodeclaravam, nem se autodeclaram como pretas ou pardas, preferindo se declararem com outras “cores” como “marrom”, “moreno”, “mulato”, “café-com-leite” entre outros. 

Partindo desse mesmo raciocínio, se compararmos os dois últimos censos realizados, respectivamente em 2000 e 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE- notamos que em 2010 houve uma significativa queda no número de pessoas que se autodeclaram brancas e um leve aumento no número de pessoas que se autodeclararam pretas e pardas. 

De acordo com dados do IBGE, em 2000 o Brasil possuía uma população de 170 milhões de habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram como brancos (53,7%), 10 milhões como pretos (6,2%), 761 mil como amarelos (0,4%), 65 milhões como pardos (38,4%) e 734 mil indígenas (0,4%).

Assim, em 2010, o Brasil contava com uma população de 191 milhões de habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram como brancos (47,7%), 15 milhões como pretos (7,6%), 82 milhões como pardos (43,1%), 2 milhões como amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%).

 Pelo que tudo indica, as pessoas estão começando a entenderem mais um pouco sobre suas peculiaridades raciais e, consequentemente, se autodeclarando condizentemente com suas características étnicas.  

Diante desse cenário de negação e exclusão com a população negra, aleijada por diversos problemas sociais, quase todo mundo já tomou conhecimento de notícias que envolvem casos de denúncias de preconceito e descriminação racial, em que, uma pessoa negra, denuncia uma pessoa não negra de ter cometido os delitos, previstos na Lei 7.716/1989, crime de racismo e no art. 140 § 3º do Código Penal Brasileiro, crime de injuria racial.

Em pleno século XXI, os casos se multiplicam e quase nunca são assumidos por quem os pratica. Os acusados, geralmente alegam que as vítimas entenderam errado, mesmo quando existem provas concretas do crime. Para ilustrar melhor, podemos citar vários fatos típicos que podem servir, no mínimo, como reflexão. Vejamos:

No dia 10 de novembro de 2019, durante uma partida de futebol, um torcedor do Atlético Mineiro, depois de uma discussão com o segurança que trabalhava no local, além de chama-lo de macaco, cuspiu-lhe o rosto, dizendo: Olha a sua cor!

No dia 12 de agosto de 2017, a jornalista e apresentadora, Maria Júlia Coutinho, sofreu ataques racistas pelas redes sociais, onde um dos criminosos disparou: “Cala a boca Maju, preta, escrava, insuportável e desgraçada”.

No mês de agosto 2019, seguranças de uma rede de supermercados em são Paulo, torturaram um adolescente negro de 17 anos, acusado de ter furtado um chocolate.

Em setembro de 2018, uma advogada, no exercício de sua profissão, foi algemada e arrastada para fora da sala de audiência no Rio de Janeiro.

Inúmeros outros episódios poderiam ser descritos aqui, com pessoas famosas ou anônimas, mas, por ora, esses casos já nos permitem refletir e dimensionar a perversidade provocada pelo racismo na vida das pessoas negras. 

Depois de 131 anos de abolição da escravidão, parece que os racistas ainda não se conformam com a declaração daquilo que é tão obvio na natureza humana, a liberdade.  Não temos mais espaço para tolerar qualquer lógica de opressão e negação da liberdade de pessoas por sua condição étnica ou de qualquer outra natureza. Precisamos falar sobre o racismo, enquanto ele existir, incessantemente, não importa a estação do ano. 

Ao longo desse processo, percebemos que muitos falam do racismo e de como aniquilar esse mal da sociedade, com todas as palavras-chave que a temática evoca, inclusive, instituições públicas e privadas. No entanto, na vida real, no cotidiano dessas mesmas pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, muitos escondem o que verdadeiramente são: Racistas! Mas como assim? Simples, encontramos manifestação de racismo nas coisas simples do cotidiano, o racismo em alguns casos ocorre de maneira sutil, por ser estrutural, muitas vezes é imperceptível aos olhos de quem não sofre, porém detectável aos olhos de quem é vítima. 

Não obstante, podemos encontrar racistas, nas mais diversas funções: na elaboração das programações de TV, racistas nos processos seletivos e anúncios de empregos, racistas que classificam pessoas e acreditam que existe um lugar determinado para cada “tipo” de sujeito, racistas que não aceitam “dividir espaços de poder e de status” com pessoas pretas, racistas que se recusam a ouvir quem sofre na pele, todos os dias, injurias, crimes e humilhações pelo fato de ser negro, racistas que querem ganhar visibilidade com a cor/dor do povo negro.

No entanto, em paradoxo a essa estrutura criminosa, temos sempre por perto, aquela racista que goza quando o negro faz um golaço, aquele racista que insulta quando o preto é seu colega de sala na universidade, aqueles racistas que não sentem empatia da dor quando ela é derramada em lágrimas que escorrem de faces retintas. 

Assim, tem perdurado a dissimulação racista, não é raro, falas que dizem: Como posso ser racista, fulana é minha amiga e é negra. Outras confessam: Não sou racista, porém não casaria com um homem negro, até “pegaria”, mas não casaria. 

Muitas vezes, o racismo é cometido, assim, “espontaneamente”, outras vezes, perceptível em olhares, caras e bocas, que não toleram a presença de pessoas negras nos espaços hegemonicamente demarcados por eles. Em alguns casos as pessoas racistas tentam esconder isso, como se fosse um cheiro forte que se pode disfarçar com aroma de perfume importado. Mas, o resultado nós já sabemos, o odor exala forte e chama atenção, na primeira oportunidade.

Dura e criminosa realidade. Isso mesmo, criminosa realidade que tem aniquilado vidas negras ao longo de séculos na história do Brasil, inclusive isso só tem piorado na história recente do Brasil, os dados apresentados pelo Atlas da Violência de 2019 e pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, revelam, em números a piora na desigualdade referente a letalidade racial no Brasil, segundo o Anuário, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia, isso é claramente traduzido na perspectiva do racismo institucionalizado e do viés racial da violência no Brasil.

Por tudo isso, temos que denunciar e enfrentar o racismo sistêmico, o racismo estrutural, o racismo institucional, o racismo criminoso e o racismo hipócrita brasileiro, hipocrisia que sustenta até hoje o mito/anedota da democracia racial.

Verdade dura?

Duro mesmo é ter que conviver e ser vitimado por causa dessa ideologia racista, por isso, precisamos privilegiar as falas e vivencias das pessoas negras no debate sobre racismo e seus efeitos. Precisamos fazer ressoar a voz negra para que os racistas não camuflem o debate romantizando e minimizando uma luta secular, pois, como disse Conceição Evaristo, em seu livro: Olhos D’Água (2018) “ Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel”. 

 

Referencias: 

 

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf Acessado em: 18 de novembro de 2019. 

EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. 1ªed. Rio de Janeiro. Pallas: Fundação biblioteca Nacional, 2016. 

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:      http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf.  Acessado em: 19 de novembro de 2019

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:  https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf. Acessado em: 12 de Abril 2020. 

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:   https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/83/cd_2000_caracteristicas_populacao_amostra.pdf. Acessado em: 12 de Abril 2020.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

 

 

 

*Jaqueline Lima Sales da Silva é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Pós-graduanda em Ciências Criminais na Universidade Católica do Salvador- UCSAL, Bacharela em Direito-UFBA e Bacharela em História- UCSAL.

 

 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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