No papel, e só no papel, foi abolida a escravidão negra naquele 13 de maio de 1888. Já havia uma maioria de pretos livres. E direitos mesmo não foram garantidos a pessoas negras até hoje. No futuro, imagino que olhem para os nossos dias como pós-abolição; 132 anos são muito pouco perto dos quase 400 de escravização. Corpos negros ainda não são considerados humanos. Não deu tempo.
Tempo, nkisi sobre o qual já escrevi por aqui, ontem foi celebrado na live de lançamento de “Continuo Preta: a vida de Sueli Carneiro”. De forma generosa, no bate-papo entre nós duas, Sueli Carneiro afirmou que eu era uma fazedora de tempos, por ter escrito o livro em meio a outras atividades. Levantou a bola para que eu pudesse contar que, na verdade, eu dançava com Tempo. E fazia oferendas a ele, normalmente com mel, pipoca, fumo. Hoje, com palavras. Para isso, peço licença.
Nesta quinta (13), a Coalizão Negra por Direitos vai realizar um “13 de maio de Lutas” em todo o país. Se pessoas são executadas dentro de suas casas em meio a uma pandemia que exige isolamento social, admiro quem assume o risco de ir às ruas pelo fim do racismo, do genocídio negro, das chacinas e pela construção de mecanismos de controle social da polícia. Com início em diferentes horários, de 7h da manhã no Acre, a 18h no Pará e no Mato Grosso, há 30 atos confirmados até agora. “Nem bala, nem fome, nem covid. O povo negro quer viver!” é o lema deste 13 de maio. Mas na trança do tempo, não tenho dúvida da companhia e proteção dos de ontem, além das máscaras, PFF2 quando possível, álcool 70 nas mãos, distância e ventilação.
José Horácio Carneiro, pai de Sueli, saiu de Ubá, Minas Gerais, aos 17 anos de idade para buscar alternativas à vida de servidão imposta à sua família. Já era 1933, mas segundo me contou sua irmã Nadir, era tudo como no tempo dos escravos. “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, apresenta na ficção aquilo que vez ou outra vemos no jornal: escravidão negra ainda agora.
Os anos passam, os nomes mudam, mas a situação da população negra no Brasil permanece. Parece até mandinga, mas é racismo mesmo
Os anos passam, os nomes mudam, mas a situação da população negra no Brasil permanece. Parece até mandinga, mas é racismo mesmo. Só apropriados de temporalidades afro-brasileiras conseguimos nos conectar à nossa ancestralidade para escapar da opressão colonial e acessar possibilidades de existir que antecedem o sequestro de nossos antepassados, o tráfico transatlântico, o estupro colonial, o cárcere, o subemprego, a fome, a bala. Pelo fio da memória podemos pulsar futuros possíveis para a nossa gente.
Abdias Nascimento já deu a letra, em 1977: “Que o governo brasileiro localize e publique documentos e outros fatos e informações possivelmente existentes em arquivos privados, cartórios, arquivos de câmara municipal de velhas cidades do interior, referentes ao tráfico negreiro, à escravidão e à abolição; em resumo, qualquer dado que possa ajudar a esclarecer e aprofundar a compreensão da existência do africano escravizado e seus descendentes”.
A gente acreditou que, com uma ordem de Ruy Barbosa, todos os nossos documentos foram queimados. Além de tantas historiadoras e historiadores negros nos mostrarem que isso não é verdade, apresento na biografia de Sueli Carneiro nomes que estavam apagados para sua família: a bisavó Maria Gaivota e o tataravô Manoel Gaivota, que sairam de Grão Mogol depois de 1850 para, possivelmente, trabalharem com café em outra região das Minas Gerais. Tia Nadir lembrava detalhes de sua avó, que empreendera uma vingança à Sinhá que a vigiava, mas não lembrava de seu nome. Graças às buscas em livros de cartórios e igrejas de algumas cidades, pude viver a emoção de falar o nome de Maria Gaivota a Tia Nadir que, bastante emocionada, repetia para as filhas, netas e sobrinhas: “Isso! Maria Gaivota era a minha avó. Maria Gaivota era a minha avó!”