Tribunal militar reduz em 28 anos pena de militares que mataram músico Evaldo

Com decisão do Superior Tribunal Militar, penas foram reduzidas para menos de 4 anos; nenhum deles será preso

O STM (Superior Tribunal Militar) decidiu nesta quarta-feira (18), por maioria, reduzir em até 28 anos as penas dos oito militares do Exército envolvidos no assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo, em abril de 2019.

Os militares do Exército deram 257 tiros contra os dois. Os agentes afirmaram que confundiram o carro utilizado por uma das vítimas com um veículo que teria sido usado em um roubo na região militar, no Rio de Janeiro.

Com a decisão do tribunal, o 2º tenente Ítalo da Silva Nunes foi condenado a 3 anos e 7 meses de reclusão e os outros sete acusados, a 3 anos de prisão, pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio culposo. O regime das penas será aberto —ou seja, nenhum deles será preso.

O STM julgou um recurso da defesa dos militares, condenados na primeira instância da Justiça Militar, em 2021, a penas que variavam de 28 a 31 anos e 6 meses pelos crimes de homicídio qualificado contra duas vítimas e tentativa de homicídio de uma terceira.

O voto vencedor foi do ministro-relator Carlos Augusto Amaral. Ele decidiu absolver os militares pela morte de Evaldo, por legítima defesa, e condenar em penas mais baixas pela morte de Luciano e pela tentativa de homicídio de Sérgio de Araújo, sogro do músico que foi atingido pelos disparos.

O julgamento foi acompanhado pela viúva de Evaldo, Luciana dos Santos Nogueira, e o filho do casal, Davi Nogueira, 12. No início da sessão, Luciana perguntou ao filho. “Está tudo bem?”. Davi disse que sim e deitou a cabeça sobre o ombro da mãe.

O ministro-revisor, José Coelho, disse ao público presente que a decisão do tribunal militar precisa ser como o “direito aplicável” ao caso.

“Podemos errar? Sim, somos falíveis, humanos. Mas todos fazemos isso com o coração aberto e pensando no melhor para todos. Às vezes não é o melhor do ponto de vista de quem sofreu a perda de um familiar, mas é um direito que é aplicável —é isso que todos nós temos que entender.”

Após o julgamento, Luciana disse à Folha que o resultado foi “lamentável” e que se sente injustiçada por um tribunal composto majoritariamente por militares julgar os oficiais e praças que mataram seu marido.

Ela disse ainda que pretende não recorrer da decisão. “Eu vou conversar com meus advogados, mas eu prefiro encerrar aqui mesmo. Nós sabemos que no Brasil que nós vivemos não existe justiça para pobre e para preto. Ficar tentando protelar, sofrer seria só manter viva uma esperança de algo que não vai acontecer”.

Eleita presidente do STM para próximos dois anos, Maria Elizabeth votou pela manutenção integral da condenação dos dois militares de patentes mais altas envolvidos na operação, o 2º tenente Ítalo da Silva Nunes (31 anos e 6 meses) e o sargento Fábio Henrique Braz (28 anos).

A ministra sugeriu que os demais seis acusados —todos soldados e cabos— deveriam ter as penas menores, de 23 anos e 4 meses, por não serem os comandantes da ação.

Ela defendeu que o tribunal militar não podia acolher a tese de legítima defesa no assassinato de Evaldo Rosa porque o músico não apresentava risco nenhum aos militares..

Para a ministra, o argumento de que os militares confundiram as vítimas com os criminosos traduz os conceitos de violência institucional e racismo estrutural —ambas as vítimas, Evaldo e Luciano, eram negras.

“[O caso] Revela a exacerbação das desigualdades sociais e raciais existentes, no qual o tratamento dispensado ao policiamento varia a depender da classe e fenótipo do indivíduo, já que, indubitavelmente, o comportamento e o agir policial não é em Ipanema e Leblon o mesmo em Guadalupe ou na Baixada Fluminense”, disse a ministra.

Ela ainda destacou que as duas vítimas não estavam armadas. “[Esse fato] Rechaça a narrativa de que a ação militar esquadrinha a reação à ameaça ou à ação de alguma das vítimas”.

Os ministros apresentaram ainda dois votos divergentes, com penas que variavam de 10 a 16 anos de prisão. O resultado foi confirmado por maioria, com oito votos favoráveis às reduções das penas.

O caso ocorreu em abril de 2019. Um comboio com 12 militares se deslocava do 1º Batalhão de Infantaria Motorizada Escola para os apartamentos funcionais do Exército em Guadalupe, na zona oeste do Rio de Janeiro.

No caminho, os militares flagraram o roubo de um Honda City. O proprietário do carro foi rendido por uma pessoa armada, e parte do grupo criminoso fugiu do local em um Ford Ka.

Os militares do Exército tentaram perseguir o carro e, no caminho, encontraram um outro Ford Ka semelhante, que passava a metros do local do crime.

O músico Evaldo Rosa dos Santos dirigia o veículo a caminho de um chá de bebê próximo à região. Ele levava no carro o sogro, no banco do passageiro, e a esposa, o filho de 7 anos e uma amiga nos bancos traseiros.

Oito dos militares do comboio, confundindo os veículos, usaram fuzis para atirar contra o carro. Segundo a perícia, o primeiro disparo atravessou o carro e não feriu ninguém. O segundo, diz o laudo, entrou pela caixa de rodas e passou pelo banco do motorista, “atingindo a base das costas de Evaldo Rosa dos Santos, que começou a perder os sentidos”.

O carro percorreu cerca de 100 metros até parar. O catador de recicláveis Luciano Macedo, que passava pela região, viu Evaldo ferido e tentou socorrê-lo.

Mesmo desarmado e tentando prestar auxílio, ele foi alvo de uma nova sequência de tiros de fuzil.

Para reduzir as penas, o ministro Carlos Augusto Amaral de Oliveira colocou em dúvida a conclusão do laudo sobre a morte de Evaldo Rosa. O relatório da análise necroscópica concluiu que o músico morreu por hemorragia causada por um tiro na cabeça —o que, segundo a investigação, só pode ter ocorrido durante a segunda ação dos militares, ocorrida após a primeira leva de tiros.

Amaral, porém, reuniu trechos dos depoimentos de familiares do músico para defender que a vítima pode ter morrido durante a primeira ação dos militares, com um tiro de fuzil que o atingiu nas costas.

Para o ministro, as diferenças entre os depoimentos e o laudo necroscópico sobre o momento exato da morte de Evaldo Rosa levantam dúvidas suficientes para absolver os militares do homicídio.

Isso porque, na visão de Amaral, os primeiros tiros foram disparados quando os militares acreditavam estar em risco, diante de possíveis criminosos armados em fuga. A situação pode se enquadrar, na avaliação dele, como legítima defesa putativa, na qual o agente acredita se encontrar em situação de ameaça real, mesmo que ela não seja concreta.

Na segunda leva de disparos, quando o catador Luciano se aproxima do carro, Amaral diz que já não havia riscos para os militares. E, por isso, a ação configuraria homicídio culposo, segundo o voto do ministro.

Como Amaral defende, à revelia do laudo, que Evaldo morreu logo nos primeiros disparos, os militares são absolvidos em seu voto por legítima defesa.

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