Eu conheci o silenciamento bem cedo. Desde minha infância tentam me convencer a não falar sobre racismo, a não perguntar o PORQUÊ das coisas, a não me colocar em posição defensiva ou imponente.
Por Thaís Oliveira Do Preciso falar disso
Cresci com o rótulo de “PAVIO CURTO“. Eu era aquela criança que tinha as trancinhas puxadas na fila da merenda, era a inspiração de músicas com versos tipo “nêga do suvaco fedorento”, fui a mais feia da turma durante todo o Ensino Fundamental – as outras crianças faziam questão de me dizer isso – e fui também a única aluna negra da turma durante esse ciclo, mas tive anos mais leves, em que surgiu outra aluna negra pra dividir comigo o fardo do tratamento hostil. Mesmo com tudo conspirando contra, fui uma criança muito inteligente e alegre! Eu sentia RAIVA na hora da ofensa, mas depois fingia esquecer tudo. Por que eu fazia isso? Porque crianças querem pertencer, querem ser aceitas. Eu achava melhor perdoar do que andar sozinha na hora do recreio.
Ao chegar em casa, eu chorava enquanto contava pra minha mãe. Perdi a conta das vezes em que ela foi até a escola pra conversar com a Direção sobre o racismo que eu enfrentava diariamente. Minha mãe não discursava sobre racismo em casa, mas sua postura firme me inspirou a ser a mulher que me tornei. Eu a vi cursar uma faculdade após os 40 anos de idade, tendo que se dividir entre o trabalho, a educação de dois filhos pequenos e uma vida conjugal atribulada pelo alcoolismo do marido. Eu tinha uns 6 anos de idade quando a vi receber o diploma de nível superior (e essa imagem jamais sairá da minha cabeça).
Na família, na escola ou na rua com os vizinhos, eu vivia na defensiva. “Ela não sabe brincar, tem pavio curto”, foi o que ouvi desde que me entendo por gente. Eles não tinham a empatia de analisar o que poderia ser a causa daquela personalidade difícil. E eu só conseguia me afastar e desconfiar cada vez mais das pessoas. Precisei de terapia já na infância, pra conseguir lidar com tudo isso. O racismo pode destruir a autoestima de uma criança.
Na adolescência, eu não namorava e continuava sem amizades próximas. Foi aí que comecei a me culpar. Achava que eu era a única responsável pelo meu próprio isolamento social. Até que no terceiro ano do Ensino Médio ganhei um computador. Sinto que ali tudo mudou. Eu tinha fome de aprendizado, o que absorvia da TV e da escola não me representava, não me parecia suficiente. Comecei a participar de fóruns de discussão na internet, através dos quais ampliei meus horizontes, recebi dicas de leitura e pude enxergar que eu não tinha culpa de nada do que enfrentei a vida toda. Foi naquele ponto que eu me percebi negra, inteligente, linda e MUITO CAPAZ.
Tive acesso a estudos sobre o comportamento humano, o que me interessava muito, pois queria entender o que motivava o ser humano (mesmo criança) a ser tão cruel. Li sobre a herança do período colonialista, representatividade negra, alianças políticas e estatísticas sociais que consideravam a cor da pele. Entendi que tudo o que eu passei se justificava na História. Sem dúvida, aquele computador foi meu maior presente até hoje, pois me permitiu CONHECER A MIM MESMA e entender melhor o mundo à minha volta.
Hoje, eu estudo numa universidade federal e tenho um cargo no funcionalismo público. Sou minoria nesses espaços; pra muitos, eu levo uma VIDA DE BRANCO. O racismo não diminuiu só porque tive algumas conquistas. Sinto que esperam a todo tempo provas da minha capacidade. Vou ao shopping com uma amiga e, ao entrar EM CADA LOJA, o “boa tarde” é direcionado apenas à ela. E se entro na loja sozinha, geralmente quem me dá atenção é apenas o segurança. Resolvo morar num bairro melhor, e ouço dos amigos que estou ficando MUITO METIDA (ou seja, eles podem morar em área nobre, mas uma negra ex-moradora de favela? “Nooossa!”). E quando passei a usar os cabelos naturalmente crespos? Tive que ouvir no trabalho que gosto de TESTAR O SISTEMA. Na vida amorosa, foram poucos os relacionamentos que tive, a preocupação dos caras com meu cabelo e minha cor falavam mais alto. Hoje o negro é moda, a repulsa aos nossos traços diminuiu bastante, mas permanece enraizada na sociedade.
Acho que a palavra INCÔMODO é a melhor definição pra reação que eu e muitos outros negros e negras bem sucedidos causamos nas pessoas. Mas apesar de toda essa força, eu sou depressiva. E pra um depressivo, romper barreiras é mil vezes mais difícil.
Este espaço é a minha válvula de escape. Eu estava cansada de engolir o racismo e outras formas de opressão de supostos amigos. Sabe aquela sensação de deslocamento e não aceitação que eu tinha na infância? Pois é. É o que sinto hoje, cercada de amizades que curtem Felicianos e Bolsomitos.