Um dilema chamado Caster Semenya

É “uma bomba-relógio”, titulava o jornal britânico The Guardian em Julho. No Rio de Janeiro, nada parece travar a corrida da sul-africana Caster Semenya rumo ao ouro olímpico nos 800 metros, cuja final feminina está marcada para a noite de sábado para domingo. Esta quarta-feira, garantiu um lugar nas meias-finais com 1m59,31s. Não foi a mais rápida das eliminatórias (foi a sexta), mas o que impressionou uma vez mais foi a passada de joggingcom que facilmente cumpriu a distância. A atleta está num pico de forma, tendo melhorado em seis segundos o seu registo em apenas um ano, e o derrube do recorde mundial (1m53,28s, Jarmila Kratochvilova, 1983) e da melhor marca olímpica (1m53,43s, Nadezhda Olizarenko, 1980) não parece estar fora de alcance.

Por Pedro Guerreiro Do Publico

E é “uma bomba-relógio” porque o triunfo é tão certo quanto o regresso de um debate que existe antes e além da sul-africana de 25 anos, mas que acabou por sequestrar o seu nome e a carreira. Em causa está a discussão sobre se uma mulher com hiperandrogenismo (um excesso de produção natural de hormonas masculinas) deve ou não competir com outras atletas. A dúvida, que já é antiga mas que regressou em força com o surpreendente título mundial de Semenya em 2009, é se esta condição rara pode constituir uma vantagem competitiva face à esmagadora maioria das mulheres atletas. Para quem defende que sim, a recente progressão de Semenya é a derradeira prova.

Voltemos então a 2009. Com apenas 18 anos, Semenya pulveriza a concorrência nos mundiais de atletismo de Berlim. Dá nas vistas pela marca (1m55,45s) e não só: a aparência invulgarmente musculada, as ancas estreitas, o maxilar largo e a pose de peito aberto leva as adversárias a insinuarem que não estiveram a competir com uma mulher. “Olhem só para ela”, disse na altura a russa Maria Savinova. “Ela é um homem”, foi mais longe a italiana Elisa Cusma.

Na véspera da sul-africana ter conquistado o título mundial nos 800 metros, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF, na sigla inglesa) tinha revelado que a atleta tinha sido sujeita a uma verificação de género, tentando afastar daquela forma as suspeitas de doping que pairavam sobre a progressão já então invulgar de Semenya, que em meses retirou vários segundos aos seus recordes pessoais nos 400, 800 e 1500 metros. A dita verificação não só não dissipou as suspeitas das rivais como levou à condenação da IAAF por parte do governo sul-africano, que acusou a organização de ter uma atitude preconceituosa em relação à atleta negra.

Semanas depois dos campeonatos em que a sul-africana aparecia com um estrondo nos grandes palcos do atletismo mundial, o jornal britânico Daily Telegraph indicava que Semenya teria sido submetida a exames clínicos e os seus níveis de testosterona eram três vezes superiores ao valor médio feminino. A notícia nunca foi confirmada pela IAAF e no ano seguinte a organização arrumava a questão: Semenya tinha sido examinada de forma exaustiva e definitivamente autorizada a competir, e os relatórios médicos eram e continuariam a ser confidenciais.

Em 2011, porém, a IAAF aprova um regulamento que determina que “uma mulher com hiperandrogenismo, que seja reconhecida legalmente como uma mulher, é elegível para competições femininas em atletismo desde que tenha níveis de andrógenos inferiores ao patamar masculino”. Os valores médios de testosterona, citados pela Sports Illustrated num artigo recente sobre Semenya, são de 0,5 a 3 nmol/L (nanomoles por litro) para mulheres e de 10 a 30 nmol/L para homens.

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De acordo com o regulamento de 2011, uma atleta com valores acima próximos dos números masculinos teria de reduzir os seus níveis de testosterona. Isso pode ser feito de duas formas: através de uma terapia medicamentosa de supressão hormonal ou pela remoção cirúrgica dos testículos (se estes estiverem presentes, como no caso de pessoas intersexuais).

Oficialmente, e porque não são conhecidos os relatórios médicos de Semenya, não se sabe se a sul-africana se submeteu uma medicamentação de supressão hormonal. Mas conhecem-se os números da atleta em pista, e estes pioraram de forma dramática desde que a IAAF aprovou as referidas regras. De 1m56,35s em 2011, Semenya caiu para 2m03,28s em 2015. Nesse ano, não chegou sequer à final dos mundiais de Pequim. À data, o seu treinador justificou o rendimento menos bom com uma série de lesões.

Mas Semenya regressou entretanto a um pico de forma, e a recuperação coincide temporalmente com uma reviravolta nas leis do atletismo. No ano passado, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS, na sigla francesa) deu razão a Dutee Chand, uma atleta indiana afastada dos Jogos da Commonwealth em 2014 devido ao seu hiperandrogenismo, e revogou o regulamento de 2011. O tribunal sediado na Suíça concluiu que as regras da IAAF não estavam cientificamente fundamentadas de forma cabal. Agora, o organismo internacional do atletismo tem dois anos para apresentar provas científicas de que o hiperandrogenismo resulta numa vantagem competitiva.

O que se passou nos últimos meses veio reforçar as suspeitas. Desde o início deste vazio legal, Semenya melhorou a sua marca nos 800 metros em seis segundos, dando força à teoria de que estaria efectivamente a tomar medicação de supressão hormonal, e que o fim da terapia e a consequente subida dos níveis de testosterona teve um efeito explosivo no seu rendimento desportivo. Em Abril, conseguiu um feito invulgar, conquistando no mesmo dia, no intervalo de apenas quatro horas, os títulos sul-africanos dos 400, 800 e 1500 metros. Meses depois, no Mónaco, estabeleceu um novo recorde pessoal e nacional nos 800 metros: 1m55,33s.

Agora, e com o previsível triunfo da sul-africana nos Jogos Olímpicos, o debate regressa. Na New Yorker, o jornalista Malcolm Gladwell (autor deOutliers – Fora de Série) defende a exclusão de Semenya das provas femininas: “Isto é uma questão competitiva, não é uma questão de direitos humanos”.

“Semenya possui uma vantagem genética extraordinária e anómala. (…) Temos uma situação em que uma mulher nascida com o equivalente biológico de um turbocompressor é autorizada a competir com 99% das mulheres que não têm essa vantagem”, afirma Gladwell.

Na Sports Illustrated, Joanna Harper, consultora médica do Comité Olímpico Internacional e mulher transgénero, defende que nenhuma decisão será inteiramente justa, mas que há que optar pelo mal menor.

“Estamos a tentar ser justos a relação a quem? A milhares de milhões de potenciais atletas femininas? Ou a uma minoria muito pequena de pessoas que vive de facto uma existência verdadeiramente marginalizada? É difícil. Na minha opinião, a solução menos injusta é a que, se queremos ser uma atleta feminina, a chave está na testosterona”, diz Harper.

Do outro lado da barricada está Semenya, uma ainda jovem e tímida mulher de origens humildes que carrega sobre os ombros o peso de um debate em que não pediu para entrar. Daniel Mothowagae, jornalista sul-africano e amigo da atleta, disse ao Guardian que Semenya “vai sofrer” com a nova tempestade mediática que se aproxima do Rio de Janeiro: “Sabemos que vai ser novamente insultada. Ela já tinha sofrido esta tortura psicológica mas isto está a adensar-se a um nível inédito”.

Jean Verster, o actual treinador de Semenya, descreve ao jornal britânico uma atleta totalmente focada na competição e desligada do que se escreve nos jornais e nas redes sociais: “Vamos mantê-la afastada de tudo”. Até à final de sábado, que a sul-africana quase de certeza vencerá.

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