M8 – Quando a Morte Socorre a Vida é o próximo filme do cineasta responsável pelo premiado drama Bróder e tem Corra! e Moonlight entre suas referências.
Por João Vitor Figueira, do Adoro Cinema
Em uma manhã de sol ameno na cidade do Rio de Janeiro, uma não tão numerosa, mas intensa equipe de filmagem se organiza na rua de uma comunidade no bairro de Curicica. Perto de uma larga bandeira do Flamengo ostentada em uma janela, um morador, solitário, observa a movimentação pela rua, situada na Zona Oeste da cidade. Em determinado momento, alguém da equipe identifica o odor de algo queimando e logo percebe que, ao contrário de sua impressão inicial, não havia nenhum equipamento em curto-circuito. O que houve foi que alguém na vizinhança deixou uma panela de feijão no fogão por mais tempo do que o necessário.
Perto dali fica localizado o Projac, com toda sua pompa e circunstância. Mas o set de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida, tem o que nenhum estúdio conseguiria replicar, que é a autenticidade de sua locação, que pulsa pela vida de quem ali habita. É o que um filme como este precisa, uma vez que o projeto trata de questões comuns a moradores de regiões menos favorecidas das grandes metrópoles.
Depois de explorar novas propostas narrativas no thriller com toques de terror em O Amuleto (2015) e visitar a comédia em Correndo Atrás (2018), o cineasta Jeferson De regressa ao campo do drama, gênero de seu trabalho em longa-metragem mais celebrado, o premiado Bróder (2011), laureado nos festivais de Gramado e Paulínia. “Me interessa muito como artista sair do lugar seguro, evitar a repetição”, afirmou o diretor em entrevista para o AdoroCinema, que passou um dia no set de filmagens do longa. “Agora eu volto para minha origem com um drama que tem uma dimensão do drama do jovem da periferia que se depara com um corpo jovem também, um cadáver, e é desse encontro que vai sair as reflexões desse menino”, comenta o cineasta.
A trama do filme é baseada em um livro de mesmo nome escrito por Salomão Polack. O elenco traz Juan Paiva (Malhação, Vendo ou Alugo, Correndo Atrás) no papel principal. Ele vive Maurício, um rapaz da periferia do Rio de Janeiro que cursa medicina na principal universidade federal da cidade, na qual ingressou pelo sistema de cotas. Ele é o único aluno negro de sua faculdade e, logo em sua primeira aula de anatomia, se depara com M8, um corpo que será objeto de estudo dele durante seu semestre inicial. A figura do cadáver causa um efeito intenso no rapaz, que enfrenta preconceitos por conta de sua classe social e sua cor de pele, por se tratar do único corpo negro que divide o espaço com ele na sala de aula. Destinado a saber mais sobre a identidade do cadáver sem nome, Maurício inicia uma jornada que envolve encarar suas angústias e mistérios sobrenaturais.
“Maurício é uma cara que se preocupa com o todo”, explica Juan, com uma voz que carrega uma serenidade quase zen, em uma entrevista realizada logo após o ator rodar uma cena. “Quando ele entra na sala de medicina e se depara com os corpos negros sendo estudados esse incômodo é só dele. Os outros alunos não sentem a mesma coisa.” O protagonista vai do incômodo à uma experiência espantosa quando começa a sentir que o cadáver M8 está tentando se comunicar com ele. “O Maurício fica se sentindo na obrigação de cumprir alguma missão”, diz o ator. “A princípio ele não sabe muito bem de onde vem a voz, depois ele passa a entender de onde ela vem e a entender qual é sua missão.”
Na jornada de Maurício para dar alguma dignidade para o corpo sem nome, o cadáver M8 é interpretado por Raphael Logam (#garotas – O Filme, Tô Ryca, 1 Contra Todos), que teve de lidar com uma questão inédita em sua carreira até então para atuar no papel. “Fazer esse personagem é um dos meus maiores desafios porque eu nunca fiquei nu na TV ou no cinema, então o primeiro desafio já foi aí, no físico, mas eu aceitei e vim amarradaço”, contou Logam, que também disse que sua espiritualidade pessoal o ajudou a encarar o lado sobrenatural da trama de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida.
“Esse personagem é importantíssimo porque ele transita sobre a vida do protagonista, o Maurício, então esse morto, o M8, é muito importante. Ele vai mostrando os caminhos e, de cara, o Maurício fica com muito medo, porque isso é estranho. Mas para quem mexe com uma certa religião, tem uma certa mediunidade — e eu tenho —, você não tem medo”, analisou Logam, que tem esse nome artístico por ser ogan, um sacerdote que, nas religiões de matriz africana como candomblé, é escolhido pelos orixás para ficar lúcido durante os trabalhos, sem entrar em transe, mas com uma forte conexão espiritual. Logam também disse que sempre quis trabalhar com Jeferson em um filme porque o cineasta é “o Spike Lee brasileiro”.
Em M8 – Quando a Morte Socorre a Vida, a religão tem uma função importante no resgate da ancestralidade de Maurício em um momento em que ele se sente tão deslocado de seus colegas de faculdade e tão imerso nos mistérios do cadáver que se comunica com ele. Para Jeferson, abordar a umbanda no filme — religião especialmente representada pela ligação de Cida, mãe de Maurício interpretada por Mariana Nunes, com a espiritualidade — é uma forma de resistência contra a intolerância e um comentário sobre a realidade cultural brasileira. “No nosso filme a gente trata da religiosidade ancestral para nós negros nesse espaço da Umbanda, que se dá muito em ambientes urbanos. A Umbanda é uma religião brasileira e a gente quis demonstrar também que ela existe, que ela está aí, que ela é forte, que é um ponto de resistência para muitas pessoas, de resgate da sua ancestralidade, principalmente para nosso protagonista que acabou de entrar na faculdade de medicina, então a gente procurou aonde que ele demonstraria religiosamente um ponto de resistência, de segurança, um porto seguro.”
Além de Paiva, Nunes e Logam, o elenco de M8 traz atores negros importantes do cinema brasileiro, como Zezé Motta, Léa Garcia, Lázaro Ramos e Ailton Graça. Jeferson contou que a escolha do elenco facilitou o processo de produção porque ele pôde contar com elenco que tem uma vivência da experiência negra no Brasil e “sabe exatamente do que eu quero falar”. “Eu acho que meu maior mérito na indústria cinematográfica é que todas as vezes que eu acertei foi porque eu escolhi o elenco exato para o filme”, avaliou Jeferson, que disse que ficou emocionado ao ver gigantes do cinema nacional como Zezé e Léa atuando no projeto: “São entidades que se manifestam na sua frente”.
Durante a visita ao set de M8, o AdoroCinema acompanhou a filmagem de uma cena na qual Maurício volta para casa e sente o peso de ser um calouro de origem pobre que sai da periferia para estudar com colegas abastados em uma região nobre do Rio. “Nessa cena o Maurício está totalmente desestimulado, sem vontade de ir para o curso porque ele já passou por todos os perrengues, todos os preconceitos, é uma realidade diferente da dele, então ele se sente… Ele está em um momento de fraqueza, meio depressivo, e daí ele diz para a mãe que não quer ir a aula, que ele está cansado”, explicou Juan.
Na situação em questão, Maurício tinha acabado de enfrentar uma situação de brutalidade policial nas mãos de forças de segurança que tipificam jovens negros e pobres como ameaças. No filme, o protagonista passa a madrugada na Zona Sul do Rio de Janeiro e é vítima de uma batida policial abusiva. Após o incidente, o rapaz volta para casa retraído. Na breve cena em questão, Cida tenta se comunicar com o filho, mas, ao perceber que ele não quer falar nada, não o sufoca atrás de respostas. “Nós espectadores sabemos o que aconteceu mas ele não conta para a mãe e isso gera um terceiro elemento ali na cena, que aí só vendo o filme mesmo”, contou Jeferson. “Ela sente que o filho está passando por dificuldades, imagina o que esteja acontecendo, mas durante boa parte do filme ele está tentando preservar a mãe”, avalia Mariana.
Mariana Nunes e Juan Paiva em imagem de divulgação de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida. (Foto: Vantoen Pereira Jr.)
Em outra cena cuja filmagem foi acompanhada pelo AdoroCinema, Cida entra no quarto de Maurício em um momento que o filho não está em casa para deixar sobre a cama do rapaz um jaleco branco meticulosamente lavado e passado. A cena também traz um plano detalhe da peça de vestuário que simboliza uma importante conquista para a família. “Ele faz medicina e vai ser um médico, um médico negro, e com isso ele está dando possibilidades para essas pessoas, dando possibilidade de levar uma vida diferente e melhor do que a mãe dele teve, do que a avó dele teve, do que o avô dele teve, do que os que vieram antes tiveram”, avalia Mariana.
Questões universais
“Jeferson De é um cineasta brasileiro afrodescendente”, diz o início da página sobre o diretor na Wikipedia. Por algum motivo desconhecido, o autor ou autora do texto optou por destacar a etnia do cineasta logo na primeira linha, o que jamais teria acontecido com um diretor branco — ou você acha que alguém descreveria Walter Salles primariamente como “um cineasta brasileiro caucasiano”?. De qualquer maneira, o cinema de Jeferson está ligado à defesa de uma representação honesta de pessoas negras na sétima arte nacional e com o lançamento de M8 nos cinemas, o filme será uma das raras produções nacionais a chegar ao circuito comercial com a direção e roteiro de uma pessoa negra.
É de Jeferson a autoria do “Manifesto Feijoada”, uma cartela propositiva e provocativa que inspirou muita reflexão quando foi apresentado ao público no ano 2000, quando o diretor ainda era um estudante de cinema. O manifesto aponta para a necessidade de um cinema capaz de apresentar as complexidades da experiência de ser negro no Brasil. O texto visa estimular a produção de filmes que tenham tais características: um protagonista negro, um diretor negro, a ênfase em personagens comuns, a fuga de estereótipos e um cronograma exequível.
No set de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida percebe-se que as ideias de Jeferson sobre representatividade vão muito além do discurso. Na prática, o que se vê são muitas pessoas negras não só no elenco, mas também nas funções técnicas, algo ainda raro no audiovisual brasileiro.
Para Mariana Nunes (Zama, Alemão, Febre do Rato) “isso é como um sonho”. A atriz contou que já fez mais de 10 filmes e que nunca viu tantas pessoas negras trabalhando em um set de um filme como em M8. “Nos festivais e nos debates a questão da representatividade vem sido muito discutida, e eu tenho sentido que as pessoas acham que resolvem esse problema apenas colocando um ator negro no elenco”, disse a atriz. “Quando eu tenho espaço eu sempre pergunto para o diretor ou para quem eu tenho acesso como é formada essa equipe do filme, porque não adianta só você mostrar na tela uma pessoa negra e sua equipe é toda branca.” Mariana ainda afirmou que é “gratificante” trabalhar no set do filme por poder se sentir à vontade enquanto uma pessoa negra sabendo que a composição da equipe reflete a diversidade racial brasileira.
Jeferson considera que para que mais sets sejam como o de M8 é necessário que mais profissionais negros tenham a chance de tomar decisões na produção de um filme. “Para nós negros o que falta muitas vezes é a oportunidade, porque o talento a gente tem de sobra”, avalia. Foi com essa postura de criar oportunidades que Jeferson “alçou” outros profissionais negros para funções de destaque que costumeiramente são ocupadas por homens brancos. Cristiano Conceição, que atuou como assistente de câmera em produções como Tropa de Elite e Cidade de Deus, assina a direção de fotografia de M8 e teve sua primeira experiência no cargo depois de ser incentivado por Jeferson a assumir a tarefa em Correndo Atrás. Conceição contou que em sua primeira experiência como diretor de fotografia sentiu o peso da insegurança, mas que “passou anos esperando” por uma oportunidade como essa.
Jeferson De e Cristiano Conceição durante as filmagens de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (2018). (Foto: Vantoen Pereira Jr.)
“A princípio me assustei um pouco com o convite porque a gente sempre acha que está maduro o suficiente para fazer o projeto mas quando o projeto aparece você realmente percebe que a maturidade não está toda ali, que ainda falta uma série de coisas, mas eu aceitei e fizemos o filme”, contou Conceição sobre sua experiência em Correndo Atrás. “Hoje eu me sinto mais maduro. Claro que eu ainda não sei tudo, mas acho que na fotografia, como qualquer outra função dentro de um set de produção, no princípio a gente está sempre inseguro.”
Conceição também comentou que a identidade visual de M8 – Quando a Morte Socorre a Vida nasce de um diálogo estético com as artes plásticas a partir das pinturas do artista americano Kerry James Marshall. “Ele é um pintor negro que pinta pessoas negras em um fundo negro, e para que você consiga enxergar o que está pintando você realmente tem que se fixar ao quadro e ficar um bom período olhando até que sua pupila abra e você consiga definir o que é exatamente. E nós trouxemos isso para determinadas cenas desse filme.”
Quando o assunto são as referências, Jeferson conta que filmes importantes do cenário estadunidense impactaram de alguma maneira a produção de M8. “Corra!, do Jordan Peele, me interessa muito, até porque eu venho de um filme de suspense [O Amuleto]. Tem também o Moonlight, nessa questão do claro e escuro, da luz da lua, isso é algo que nos interessa muito no filme, essa delicadeza de trabalhar com a pele negra em ambientes escuros, então para além do Kerry James Marshall tem a referência do Barry Jenkins, e um pouco de Intocáveis, o filme francês que tem um humor interessante que eu adoro também. Eu falei dessas influências mais novas, mas para mim é sempre muito cara a referência do Spike Lee, do Scorsese, do Mathieu Kassovitz, são referências que sempre estão comigo.”
Para além das questões estéticas, Jeferson também contou que o mais importante neste projeto é que ele não seja reduzido a um “filme para negros”, uma vez que trata de angústias e afetos universais.
“Nós temos um filme produzido por uma mulher, a Iafa Britz, dirigido por um negro, fotografado por um negro, com protagonistas em sua grande maioria negros, mas contando histórias para brasileiros, aí sim a gente contempla a diversidade, não é um filme para negros, é um filme para brasileiros, e sobretudo uma história de mãe e filho, algo que é uma questão universal e é isso que a gente quer trazer, o quão importante é estar do lado do seu filho.”
Filmado em julho deste ano, M8 – Quando a Morte Socorre a Vida estreia nos cinemas brasileiros no primeiro semestre de 2019.