Um jornalismo que respeite Martinho da Vila

Enviado por / FonteECOA, por Mariana Belmont

Começo essa coluna dizendo que sou jornalista. Claro, talvez eu já tenha sido mais jornalista, mas hoje faço pontes e escrevo semanalmente nesta coluna. Não sou famosa, não tenho milhares de seguidores e nem aquele negocinho azul nos meus perfis. Não sou popular, assim como não fui popular na história da minha vida escolar ou acadêmica.

Eu escrevo desse jeito que vocês conhecem: penso e escrevo, leio e escrevo, ouço e escrevo, sempre respeitando o outro que fala ou escreve algo antes de mim. Respeito é tudo, né, amores?

Formada em jornalismo, com excelentes professores, que muito me ensinaram sobre a profissão, a técnica, sobre ouvir os lados, mas nada me ensinaram sobre ser comunicadora periférica e popular. Foi a vida no meu território que me ensinou, com meus amigos também comunicadores e parceiros da Rede Jornalista das Periferias. E é a proximidade com pessoas referências que me fazem querer escrever e refletir.

Fiquei alguns dias pensando sobre o que escrever, e acho que cabe bem falarmos aqui, e depois para fora daqui, sobre essa reflexão da profissão de jornalista. Essa semana uma situação um pouco constrangedora ocorreu, e até agora estou pensando sobre o meu papel, o dos meus colegas e da importância social e histórica que a gente tem no mundo.

Na última segunda (16), assistia feliz um programa na TV aberta com o grande Martinho da Vila, quando uma pergunta da apresentadora me atravessou o peito. Acho que o mesmo incômodo sentiram meus colegas, movimentos, comunidades de samba e de cultura pelo país. Para quem não viu, mas depois ficou sabendo, a coisa foi ruim, para dentro da gente e para fora.

– “Qual a relação entre as Escolas de Samba e a milícia carioca?”.

– “Não tenho notícia da milícia dirigindo uma escola de samba, miliciano dirigindo escola de samba. Na Vila Isabel, por exemplo, não tem esse problema”, respondeu Martinho da Vila à apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura.

Eu aprendi, lendo outros jornalistas e amigos do campo da comunicação, que é preciso apurar, ler, entender o contexto social e de importância do entrevistado. Acho que a lista de coisas que precisamos para entrevistar alguém pode ser maior e mais completa. Mas algo que me chama atenção, principalmente em jornalistas da alta classe, é que as perguntas são, muitas vezes, carregadas de preconceito e racismo, e trazem em si a preponderância de uma base social sobre a outra — ou seja, perguntas enviesadas e, sobretudo, classistas.

Bons jornalistas sabem que há riscos na apuração, seja durante a conversa com o entrevistado, seja depois da notícia ir ao ar. Principalmente em um país dominado por um governo cruel e que carrega sérias investigações envolvendo a milícia. Entrevistar as pessoas é, portanto, uma responsabilidade.

Mas é claro, concordo que o jornalista pode perguntar o que quiser, mas desde que perceba seu lugar de segurança e privilégio antes da pergunta. Por segurança de si, por honestidade intelectual e respeito ao entrevistado.

Uma coisa que eu aprendi, antes do jornalismo, é que se respeita a história de quem veio antes, pessoas que construíram o chão que pisamos, seja das artes, da literatura, do movimento popular e tantos outros que fizeram você ter o direito que tem hoje. Se respeita quem construiu a cultura desse país com o corpo, sangue e inteligência. Se respeita a história para entender onde pisaremos no futuro.

Martinho da Vila é patrimônio máximo, cultura da cabeça aos pés, de todas as pontas desse país, sorriso inteiro tentando salvar o mundo. Imenso e gigante. Nosso mestre, mais velho e que resiste. Escreve suas letras com cuidado e atenção aos momentos políticos do país, sobre o povo desse país. Não admitimos desrespeito ou falta de conhecimento histórico sobre uma história como essa.

É mais um privilégio para nós brancos poder entrevistar Martinho da Vila. Aliás, seria meu sonho ouvir como se conduz uma história de vida e arte que se mistura com a história do Brasil. Aos 83 anos, Martinho não parou: continua lançando livros e músicas, sobrevivendo ao país racista e violento que é o que vivemos. Ele não pode ser usado para enaltecer a conduta de um jornalismo branco que se acha justiceiro.

Antes as universidades desse país tivessem em sua grade curricular a história do Brasil contada pela imprensa negra, pelas principais referências teóricas do movimento negro e periférico desse país.

E não preciso dizer que temos nomes brilhantes no jornalismo nacional que fazem um trabalho de excelência, não vou listar aqui, mas posso fazer um texto só sobre eles.

Aproveito para agradecer. Obrigada, seu Martinho da Vila, pela contribuição nas nossas vidas. É uma oportunidade luxuosa demais te ouvir falar e cantar. E que música espetacular com Djonga, hein? Vale demais ouvir e ler a letra de “Era de aquarius”.

“Quando a era de Aquarius surgir

Quando a era de Aquarius chegar

Quando a era de Aquarius surgir

Quando a era de Aquarius chegar

O mundo não terá mais pandemia

E ninguém com síndrome de pânico

As diferenças sociais vão encolher

E os preconceitos se diluirão

Quando a Era de Aquarius chegar

Quando a Era de Aquarius surgir…”

Martinho Da Vila, Djonga – Era de Aquarius

Aos amigos e colegas jornalistas, peço que leiam toda obra produzida, e que ainda virá, do professor Edson Cardoso, doutor em educação pela USP e coordenador do Irohin – Centro de Documentação e Memória Afro-brasileira. Militante histórico do movimento negro brasileiro e referência importante para a nossa história, sempre aponta reflexões urgentes sobre a nossa imprensa. Abaixo deixo um trecho de uma fala dele para um encontro organizado pelo Instituto Ibirapitanga, em 2018, que virou publicação e pode ser conferida na íntegra aqui. No link, você encontra ainda falas de Sueli Carneiro, Bianca Santana, Márcia Lima, Cida Bento, Douglas Belchior, Winnie Bueno, Thula Pires e de tantas outras.

“Claro que a história da imprensa brasileira – e eu fiz mestrado em Comunicação Social -, e o que se discute nas faculdades de Comunicação seriam diferentes se a história da imprensa negra fosse também vista como parte da história da imprensa brasileira. Ajudaria a mudar muita coisa. Mas isso fica à parte, segregado e distante da discussão e da formação dos estudantes. Seria uma diferença enorme se tomássemos consciência desse jornal feito por negros em 1876, afirmando a igualdade de todos os seres humanos. Claro que ajudaria a compreender o real papel da imprensa. Se recuarmos mais no tempo, para outro momento de construção de um grande pacto, temos as ambiguidades de José Bonifácio, na nossa primeira Constituinte, em que ele alerta que era necessário pensar, que era cedo pra fazer a libertação dos escravos, mas que era preciso considerar urgentemente essas possibilidades. Existe essa ambiguidade. Mas, ao mesmo tempo, José Bonifácio dá a notícia de algo que é a existência de uma marca que ele afirma ser “indelével”: a pele como um elemento que diminui a população negra em relação à população branca. Isso está no nosso primeiro pacto. Fica claro que há, para além da escravidão, para além de o escravo ser inferior ao amo, há algo que inferioriza as pessoas de pele escura em relação à pele clara, porque ela é o estigma que reduz essas pessoas, isso é fato. E José Bonifácio constata isso já em 1823. Isso é 1823. Não é preciso o tal racismo científico: em 1823, está clara a ideia de estigmatização para um constituinte como o Bonifácio.”

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