Uma “noite dos cristais” como a que aconteceu na Alemanha em 1938 e marcou a ascensão do nazismo se prenuncia no horizonte da cultura brasileira
Por Jandira Feghali, no Brasil 247
A guerra cultural preconizada nas declarações do presidente da República e sua equipe, no tocante às políticas públicas de cultura, está começando efetivamente agora. A nomeação, pelo ultraconservador Secretário Nacional de Cultura, da sua equipe de Secretários nacionais e presidentes de entidades vinculadas deixa evidente que o que eram até agora declarações agressivas ao setor cultural irão se tornar práticas destrutivas, persecutórias e violentas. Um presidente da Fundação Palmares que nega a existência do racismo no Brasil, ou um presidente da Funarte que associa o rock ao satanismo são um escárnio ao nosso país e ao nosso povo, e representam um ataque direto às políticas de ampliação de direitos culturais que marcaram as primeiras décadas do Século XXI no Brasil.
Uma “noite dos cristais” como a que aconteceu na Alemanha em 1938 e marcou a ascensão do nazismo se prenuncia no horizonte da cultura brasileira. Da retórica ofensiva passar-se- à para a ação, agressão e intimidação. O que vem por aí é pior do que tudo que já se viu nas políticas culturais no Brasil. O governo Temer, pressionado pelas ruas, recuou na extinção do Ministério da Cultura, apesar de torná-lo quase irrelevante. Já o governo Bolsonaro coloca a cultura no centro de sua estratégia, mas a serviço de sua máquina de guerra permanente contra as instituições, às artes, à educação, à ciência e ao livre exercício do pensamento e da criação.
Mesmo a ditadura militar, que prendeu, perseguiu, censurou e exilou artistas e intelectuais, além da perseguição aos povos indígenas e minorias sociais, buscou, por outro lado, desenvolver um projeto nacional para a cultura, criando instituições importantes como a Embrafilme, a Funarte, o Conselho Federal de Cultura, e criando as condições para a implantação de uma indústria cultural no Brasil.
Já o governo Bolsonaro alia a postura autoritária e regressiva em relação aos costumes e à liberdade de expressão a uma adesão acrítica a um modelo neoliberal, onde a cultura volta a ser vista apenas como “um bom negócio”. A migração da Secretaria Nacional de Cultura do Ministério da Cidadania para o do Turismo é exemplo desta visão menor da cultura, que não leva em conta as suas dimensões simbólica, econômica e cidadã, que orientaram nas últimas décadas nossas políticas culturais.
Agressões contra o setor e o fazer cultural, que já estavam em curso, tendem a se intensificar e a de materializar. A invasão e a chacina na favela de Paraisópolis em SP tem também a sua dimensão de guerra cultural, legitimada pelo discurso de ódio das elites paulistanas contra os “pancadões”. Se intensificarão as sanções econômicas ao setor, como foi feito na iniciativa da equipe econômica de extinguir diversas profissões e serviços vinculados à atividade cultural do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), precarizando ainda mais as trabalhadoras e trabalhadores da cultura e das artes. Já são considerados “normais” os cortes de orçamento, cancelamento de contratos, extinção de programas e projetos em andamento. Perseguição a gestores, produtores culturais e artistas em uma prática de “caça às bruxas” através de processos administrativos e mesmo judiciais. Os “pogroms” do bolsonarismo podem chegar inclusive às vias de fato, incitando milícias virtuais e reais à invasão e uso de violência física contra espetáculos teatrais, exibições de filmes, saraus, exposições, lançamentos de livros.
O setor cultural foi capaz, em outros momentos de nossa história, de transbordar para as ruas e desequilibrar o jogo a favor da democracia e da civilização. Foi assim na luta contra a ditadura, na redemocratização, em eleições presidenciais e no episódio da extinção do MinC em 2016. Talvez esta reação nunca tenha sido tão necessária e urgente como agora.