Uma sociedade nascida estamental sempre será estamental?

É um acinte à democracia o desrespeito com a figura presidencial de Luís Inácio Lula da Silva.  A requisição judicial de presentes recebidos pelo político, no exercício da Presidência da República, depositados no Instituto Lula, é quase inacreditável. É a dignidade presidencial do ex-chefe de estado que basicamente se busca atingir. Como nas antigas sociedades estamentais, onde as pessoas eram consideradas diferentes em dignidade e direitos, às vésperas do dia do trabalho, o presidente operário, com dezenas de titulo de doutor honoris causa de universidades de todo o mundo, não parece merecer o mesmo respeito que seus antecessores da justiça do país que governou.

POR HEBE MATTOS, do Conversa de Historiadoras

No estado nacional brasileiro, que desde a sua primeira constituição reconheceu formalmente a igualdade de todos os cidadãos perante à lei, o padrão de comportamento é antigo e remonta mais uma vez aos tempos do chamado “Regresso” (1837). O movimento político garantiu a  centralização política e a generalização do tráfico ilegal de africanos escravizados no Brasil imperial, acionando a velha lógica estamental na nova ordem formalmente liberal.

Na derrota das insurreições federalistas que marcaram o chamado período regencial, lideranças políticas populares foram sistematicamente criminalizadas ou associadas à condição escrava, enquanto opositores de elite eram anistiados. Um comportamento judicial tão injusto quanto atual. Lembremos da condenação recente e absolutamente escandalosa de Rafael Braga. Uma sociedade nascida estamental sempre será estamental?

O país dos elegantes continua atado ao século 19. O STF liberou o teto salarial da alta burocracia federal na mesma semana em que o congresso nacional, quase todo acusado de corrupção, aprovou a retirada de direitos trabalhistas da maioria da população. E isso só foi noticiado como escândalo no New York Times.

A atual mobilização dos trabalhadores brasileiros combate bem mais do que uma pauta neoliberal de reformas econômicas. Os trabalhadores brasileiros lutam pelo direito ao século 20, por seus direitos políticos, civis, sociais e culturais, garantidos na Constituição de 1988.

A truculência ilegal da repressão às manifestações ocorridas durante a greve geral de 28 de abril ameaça os mais básicos direitos civis. A unidade de narrativas da grande mídia, negando os fatos e a palavra greve, aprofunda o ataque, golpeando, a um só tempo, direitos civis e direitos sociais. O escândalo de um governo não eleito aprovando a toque de caixa uma pauta de reformas derrotada nas urnas coloca em cheque a garantia dos direitos políticos e a soberania do sufrágio popular. Um dia antes da greve geral de 28 de abril, povos indígenas em luta pela demarcação de suas terras e pelo direito à diversidade cultural tiveram a entrada barrada no Congresso Nacional.

A exclusão simbólica dos indígenas do mundo da política e o ataque à dignidade do presidente operário são gestos complementares da pauta estamental do golpe de 2016.

Dizem que a jabuticaba é uma fruta que só existe no Brasil. A prevalência da linguagem dos direitos está em cheque em todo mundo, não apenas no Brasil, mas o país cultiva algumas “jabuticabas” podres difíceis de engolir.

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