Uma vida inteira pelo fim da violência contra a mulher: A luta de Jacira Melo

Diretora do Instituto Patrícia Galvão defende acesso à informação para reduzir violência doméstica.

por Ana Ignacio no HuffPost

Caroline Lima:Especial para o HuffPost Brasil

A luta é antiga e objetivo é claro. São cerca de 40 anos de atuação profissional na área, desde uma época em que o assunto ainda não era tão debatido como hoje. Jacira Melo, 61 anos, diretora do Instituto Patrícia Galvão, organização que atua pelos direitos das mulheres, começou a se envolver com o feminismo ainda na faculdade, antes dos anos 80. Na época, ela participou da criação de um grupo chamado 8 de Março e lembra que até a data, o Dia Internacional da Mulher, não era tão conhecido ainda. E foi nessa época que começou sua atuação feminista. Estudante de filosofia, Jacira participou de encontros importantes para o movimento no Brasil e logo começou a trabalhar com violência contra a mulher. “Eu e outras parcerias feministas vimos que era importante ter um espaço de atenção à violência contra as mulheres e criamos o SOS Mulher, em São Paulo, em 1980 e a grande contribuição foi dar visibilidade à violência contra as mulheres”.

Mas, na verdade, suas primeiras descobertas nesse quesito ocorreram ainda mais cedo. Observou em sua casa, no comportamento do pai, “um homem militar, nascido em Alagoas”, algo que sabia que podia – e tinha que – combater. Estava naturalizado no discurso do pai: Jacira e as outras três irmãs poderiam estudar apenas até concluir o Ensino Fundamental II que já seria suficiente. Curso superior era apenas para o irmão. “Ele foi um pai muito presente, muito dedicado, mas dizia que com esse estudo nós [mulheres] já estaríamos preparadas para a vida de casadas. E com a minha mãe era um companheiro nada solidário e ela sonhava em trabalhar, ter uma vida própria e isso era impossível e acima de tudo era um parceiro que cometia a violência psicológica, sempre desqualificando minha mãe”.

É uma luta apaixonante.

Quando tinha dez anos, começou a enfrentar o pai porque não queria que ele falasse com a mãe do jeito que falava. Comprou muita briga até que o pai chegou a ameaçar deixar de pagar sua escola se a filha insistisse em se intrometer na relação dos dois. Foi quando Jacira decidiu então, já com 14 anos, que ia trabalhar para pagar o colégio. “Sempre tive uma relação afetiva forte com meu pai e enfrentá-lo foi importante para o meu amadurecimento como mulher, para encontrar o meu lugar de mulher no mundo e minha mãe não merecia passar por aquela situação, ela merecia uma vida sem violência”.

Levou essa máxima para todo o seu futuro. E também o aprendizado de que a violência começa sempre dentro do ambiente doméstico e de que não se trata de casos de fórum íntimo. “A violência que acontece dentro de casa é a primeira linguagem de violência que as crianças aprendem, é o primeiro momento onde se resolve os conflitos na base da violência e se naturaliza isso no espaço público. Isso é muito grave e ainda está muito profundo na visão das sociedades de que a violência contra as mulheres é um problema de fórum íntimo e ele não é. É social e exige a reação de cada uma de nós”.

A violência que acontece dentro de casa é a primeira linguagem de violência que as crianças aprendem.

Assim, quando entrou na faculdade, continuou fazendo a sua parte, com a criação do SOS Mulher. Jacira conta que a iniciativa chamou atenção e o grupo foi a diversos programas de televisão na época e conseguiu uma boa atenção da mídia. “A cada programa que a gente ia, no dia seguinte tinha 300 mulheres na porta desse pequeno espaço buscando atendimento, orientação, querendo pedir ajuda. Criamos o SOS com umas 10 mulheres e em dois meses tínhamos 60 voluntárias conosco, foi de grande impacto e acho que foi a grande contribuição. Não se falava tanto ainda disso”. A demanda de trabalho era tão grande ali que Jacira chegou a trancar os estudos na faculdade para se dedicar a isso.

De lá para cá, seu trabalho nessa área só aumentou. Virou documentarista sobre o tema, acompanhou evoluções na criação de políticas públicas, o crescimento do debate e as mudanças de percepção sobre o assunto. “Nesses últimos 40 anos, o Brasil avançou muito, podemos dizer que há um avanço institucional muito importante, há encontros de pessoas que trabalham no sistema de Justiça fazendo avançar o enfrentamento no combate à violência contra a mulher e o estado brasileiro aprovou marcos legais que reconhecem o direito da mulher a uma vida sem violência.” Entre os marcos, Jacira destaca a criação de delegacias da mulher, a aprovação e aplicação da Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e a Lei de Importunação Sexual, bastante aplicada em casos de abusos no transporte público.

É o tema social que não sai mais do noticiário, mas porque é um problema seríssimo.

Comemora os resultados. Acredita que o assunto é um dos mais consolidados na agenda social do país, mas está alerta para garantir que continue assim. “Podemos dizer com certeza que a violência contra a mulher tornou-se um dos problemas públicos de maior visibilidade social e política no país. É o tema social que não sai mais do noticiário, mas porque é um problema seríssimo”.

Tanto que os dados de violência contra a mulher no País continuam muito altos, o que indica os próximos passos dessa luta. “Houve a conquista de marcos legais importantes, e a expectativa era de que esses marcos seriam um freio e fossem intimidar as violências, e isso, pelos números, não aconteceu de forma tão intensa e densa como é de se esperar, então temos ainda um desafio enorme para lidar com a questão de desconstruções culturais”.

Muitas vezes se fala que é um crime de ciúmes (…) na verdade especialistas nos dizem que é um crime de ódio.

Entre as questões está enxergar a real motivação desse tipo de crime. “Muitas vezes se fala que é um crime de ciúmes porque esse parceiro está impactado com a separação e na verdade os especialistas nos dizem que é um crime de ódio, porque quando tem arma de fogo é com vários tiros no rosto, no peito dessa mulher. Se é com facada são muitas facadas. Isso não é um crime de ciúmes e de tristeza, é para destruir o outro porque esse outro não tem o direito a desenhar o seu destino e de viver uma vida sem violência”.

Para lidar com isso, o caminho que Jacira sempre buscou foi a informação e o debate. É assim que nasceu, em 2002, o Instituto Patrícia Galvão. A principal frente de trabalho da organização é trabalhar com informações, dados e notícias sobre violência contra as mulheres no Brasil. A ideia é dar cada vez mais visibilidade ao tema e ajudar a construir uma discussão construtiva e consistente sobre o assunto. “As mulheres hoje denunciam, tem medida protetiva, prisão de agressores e esses homens não se sentem intimidados na dimensão que é de se esperar. Então precisamos ter um trabalho de desconstrução cultural muito intenso e forte em todos os espaços com a máxima de que as mulheres têm direito a uma vida não violenta”.

Os homens [que praticam violência] não se sentem intimidados.

Caroline Lima:Especial para o HuffPost Brasil5

Outro ponto importante para o futuro é dar atenção para isso nas escolas, desde cedo. ”É importante a lei Maria da Penha nas escolas para que a gente desconstrua essa relação cultural de que os meninos podem tudo e as meninas podem muito menos. Temos que mostrar para as meninas que quando seu namorado começa a dizer que ‘namorada dele não pinta unha’, não usa tais roupas, não sai sozinha com as amigas isso não é porque ele está super apaixonado, isso é controle, é dominação”.

E está aí a causa que Jacira abraça. ”É uma luta apaixonante, você entra e não sai mais porque tem a ver com a liberdade de ser, o direito de viver uma vida sem violência desde pequena”. Talvez por isso tenha comprado essa briga tão cedo. E tem certeza de que é para sempre: “Espero até meus últimos dias falar com sensibilidade, sem ódio, mas dizendo que a sociedade vai ser muito melhor se as mulheres forem respeitadas. Dá para chegar lá”.

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