“Vá e diga a todo mundo que eu tentei”: Ismael Ivo, construtor do impossível, bailarino do Universo!

Um jovial Ismael Ivo (1955-2021), entre o final de adolescência e começo da maioridade adulta identificou no teatro o caminho, para encontrar e construir o seu lugar no mundo, para encontrar-se e situar-se enquanto cidadão em busca de sua afirmação enquanto pessoa, de valorizar e fazer respeitar os valores, as ancestralidades e historicidades que se encontravam vivas e pulsantes dentro de seu ser. Uma busca inquieta, ávida em fazer por desestruturar as regras que negavam, maldiziam, desvalorizavam a sua existência tanto individual, quanto coletiva. Caminho de procura para encontrar o seu centro, um equilíbrio pessoal que possibilitaria traçar perspectivas e condições para transformar a mediocridade do mundo em infinitas e plurais possibilidades, para bem longe do arcaísmo e tempos cinzentos que reinavam em terras brasileiras de então. É no teatro que descobre as possibilidades de ser aquilo que bem quiser, sem deixar-se limitar por padrões de controle ou dominação social, o teatro enquanto arte emancipatória, revolucionária de se compreender, viver e transformar o mundo, fazendo crescer a sensação que sempre o inquietou de que o mundo deveria girar, girar, girar, para atingir a sua plena compreensão, desestruturando todas as ordens vigentes nesse processo.

Um processo de reconstrução identitária e reafirmação de humanidade a partir de sua percepção de que na sociedade brasileira as pessoas negras nunca são vistas ou compreendidas enquanto seres humanos, mas sim enquanto corpos animados, reféns das convicções e preconceitos daqueles que os definem enquanto tais, uma sociedade de alma e praticas sociais coloniais, eternizando uma hierarquização social excludente que cotidianamente, por séculos e séculos, animaliza e destitui de toda a condição humana à aqueles que julga enquanto inferiores. Sempre corpos, nunca humanos com sentimentos, anseios, lógicas, saberes, razões, potencialidades, mas sempre enquanto corpos tipificados e utilizados enquanto objetos.

Para romper a essa “lógica” perversa, toma a dança para si como a sua grande e maior parceira, a estudando, compreendendo-a em suas nuances e perspectivas, dando vazão a sua própria forma de expressão artística – mistura de teatro e dança – para a qual usará seu corpo não como fim, mas enquanto meio da expressão da sua potência, riqueza e vivência enquanto ser humano, não só seu, mas como a de seu grupo étnico-racial e social de pertença. Ismael Ivo decide gerar arte visando a desestruturação dessa normativa racista e social que violentava de corpo e alma, que matava aos seus de geração em geração a mais – até então – de quatro séculos.

[…]de um lado, eu estava infiltrado na arte da dança moderna, ou dança contemporânea de São Paulo. Como todos sabem, este é um espaço, normalmente reservado para a elite branca. Por outro lado, fui muito próximo de um grupo que funcionou como meus mentores. Refiro-me a pessoas como Abdias do Nascimento, Thereza Santos, Lélia Gonzales, Helena Teodoro, etc. me envolvi muito com eles e me fortaleci com as suas reflexões sobre o negro brasileiro. (IVO, 2021: s/p)

Será esse jovem negro, gay e periférico – oriundo da Vila Ema, Zona Leste paulistana – que se fará presente e constante as ocupações e circulações simbólicas e territoriais promovidas pelos diferentes coletivos negros nas áreas centrais da capital, fazendo com que as ruas, calçadas e praças tornassem-se palcos para a sua expressão artística de corporalidade e poesia, enquanto o seu libelo de afirmação política e existencial, como um ato libertário que reafirmava publicamente a sua experiência e potencialidade humana em uma sociedade historicamente estruturada e desenvolvida a partir de sua condição escravocrata, que hipocritamente nega a sua condição racista e discriminatória em nome do conceito falacioso de democracia racial, durante plena vigência do regime ditatorial-civil. Entre tantas particularidades que permeiam – por vezes quase esquecidas ou não devidamente lembradas – o processo histórico de constituição dos novos movimentos negros no Brasil ao final dos anos 1970 e a da sua afirmação enquanto representações políticas e culturais em meio ao cenário de redemocratização da sociedade brasileira, a constituição do conjunto artístico-político de Ismael Ivo é obra que merece ser melhor, pormenorizada em sua importância, influências e significados.

Ivo dá vazão a constituição de uma expressividade artística que incluiria os conceitos políticos e estéticos da negritude, dos ideais pan-africanistas que também chegavam de maneira mais orgânica e constante ao Brasil durante a década de setenta, uma forma de arte que de maneira continua sempre carregou e manifestava o perfil contestatório e revolucionário de seu autor, ao mesmo tempo que também fazia por expressar, de tornar pública não só esse aspecto de sua “fúria do mundo”, mas a beleza, as sutilezas, as poesias, a humanidade em pleno êxtase de uma população historicamente desprovida e dissociada das riquezas e complexidades de suas ancestralidades africanas, que faria por reabilitar e divulgar a cada momento de sua trajetória tanto artística-política, quanto intelectual.

Nesse sentido, e para todo sempre, a sua expressão artística era forma de louvação e reverência aos seus ancestrais e o seu compromisso firmado contra o racismo, assim como a qualquer forma de preconceitos, que faria por combater através de seu balé-teatro pelos mais diferentes e variados palcos do mundo, desde as ruas do centro velho de São Paulo, até os grandes teatros das maiores companhias de dança do mundo! Em Ismael Ivo, a corporalidade negra é ressignificada enquanto poética e simbolismo, ao reafirmar e demonstrar que as populações afro-brasileiras não podem e não devem ser reduzidas, rotuladas e significadas aos estereótipos negativos atrelados ao seu corpo, mas sim enquanto representação de saberes, potências questionadoras e transformadoras da realidade. Uma forma manifesta de (sobre)vivências e historicidades insurgentes que persistem em não se capitular ante aos eternos senhores da Casa Grande chamada Brasil.

Arte enquanto expressão libertária existencial de um ser humano que contra todas as possibilidades, contra todos os ritos de “bom comportamento”, de “bom cidadão”, “ordeiro” e “respeitoso” as normatividades sociais vigentes, ousou buscar a construção de uma nova existência, livre das amarras do racismo brasileiro. Que acabou por ganhar os caminhos do mundo, para fazer de sua obra um farol de esperança aos que buscam romper os limites impostos pelos cotidianos da nossa mediocridade institucional, elitista e conservadora. Sem nunca negar as suas origens e intenções políticas de sua arte, mas sempre com discurso pronto e afiado para contestar e desmascarar o racismo daqueles que buscavam inferiorizar a sua obra enquanto menor por sua condição de militância (IVO, 2020).

Nunca assim aceitando se deixar pautar ou ser classificado, pelo sistema que desde adolescente objetivou em combater e enfrentar, percorrendo metas não imaginadas, como que transformando o impossível em realidade. Ao incorporar em sua dança, e tornar enquanto sua base de expressão poética, uma fusão, uma transfiguração que tornava una, sem renegar ou anular as distintas características, as danças afro e afro-brasileiras, com o butô. Um vanguardista que após destacar-se em meio ao cenário cultural paulistano da década de 1970, inicia sua trajetória internacional ao estrear em 1983 como dançarino e coreógrafo, em meio a cena artística de New York, a convite do coreógrafo Alvin Ailey (1) [1931-1989], de onde partiria um ano depois para Viena, cidade em que fundou o que acabaria por tornar-se um dos maiores festivais de dança do mundo o “ImPulsTanz”, desenvolvendo-se enquanto curador, organizando e recebendo dançarinos das mais variadas partes do mundo que para lá dirigiam-se ávidos em enriquecer os seus referenciais artísticos. Carreira que baseada na Europa, o torna reconhecida por todo o mundo, num processo de admiração e reconhecimento internacional que nunca se fez interromper ou decair. Uma realidade de constante prestígio, sem o menor sinal de estagnação, que não apontava a sua escolha, chocante para muitos, em retornar a viver no Brasil, ao ser convidado para assumir a direção do “Balé da Cidade de São Paulo”, sediado ao Teatro Municipal (2) em 2017.

Decisão que demarcou um fechamento de ciclo e o início de outro, em sua volta ao país natal, a sua cidade de origem, aparentemente desprovida de qualquer sentido, mas que na verdade revela uma perfeita harmonia e consonância aos seus ideais enquanto artista política e socialmente consciente. Nesse contexto não se dando por acaso o seu aceite para essa nova empreitada, em que acabaria por ser a primeira pessoa negra a assumir tal função diretiva em um dos símbolos máximos do elitismo cultural e racismo estrutural brasileiro, com a firme convicção em diversificar e ampliar tanto o corpo do balé, quanto o acesso das populações negras e periféricas que sempre se viram “filtradas” em seus acessos e convivências a este espaço considerado de “alta cultura”(3). Desse modo estabelecendo um canal de interação e amplitude até então inédito a história do balé e do teatro. Constituindo espaços de convivências e trocas simbólicas, em que se davam visibilidades e destaques as expressões artísticas negras e LGBTQIA+ que fervilhavam em criatividades e diversidades nas periferias da grande paulicéia.

Mas um corpo negro, sempre será um corpo negro, numa sociedade singrada a ferro e fogo por um racismo estrutural que nos marca corpo e alma, de geração por geração de maneira ininterrupta por séculos. O que explica a denúncia de assédio moral que sofreu no segundo semestre de 2020 e que resultaria em sua demissão do cargo de diretor do balé, mesmo com as investigações terem demonstrado a sua inocência no caso. Acusações que ele sempre negou e contestou de maneira veemente:

Minha carreira artística e profissional é imaculada. No mundo todo, por onde passei, sempre respeitei e fui respeitado como ser humano e como artista. Manchar minha imagem tornou-se uma verdadeira obsessão. Tanto que mesmo após eu ter sido inocentado pela comissão especial continuo sendo atacado e impedido de retornar ao cargo que ocupava.” (IVO apud COUTO, 2021: s/p)

Uma situação tão absurda que levou a criação do movimento #justiçaparaismaelivo (JUSTIÇA PARA ISMAEL IVO, 2020), enquanto forma de expressão, de solidariedade e apoio a Ismael Ivo, como forma de reconhecimento a sua trajetória artística-política e enfrentamento ao sistema social brasileiro que sempre tem por premissa a destruição dos corpos negros que adentram os espaços a eles impedidos, que ousam não confinar-se aos seus “não lugares” historicamente e socialmente (pre)destinados/determinados. Para nossa elite atávica e ignorante em sua mediocridade moral, todas as conquistas, toda a trajetória artística e pessoal de Ivo, nunca foram nada além de um estorvo ao qual tinham por tolerar, ao terem que conviver e serem subordinados por quem representava – para eles – a imagem de tudo aquilo que consideravam enquanto inferior, servil e inumano. O sistema é racista, cruel e vingativo, não perdoa ou tolera as pessoas que ousam romper os seus grilhões e não importa quanto tempo passe, ele irá atrás de você, geralmente quando você menos esperar, ou através das situações, aparentemente, triviais. E esse processo acusatório ao qual foi submetido nada mais é do que a prova cabal disso. Mesmo inocentado, acabou na prática culpabilizado e punido por sua excelência e maestria! Foi culpado não pela pretensa ação de assédio moral, daquilo que poderia ter feito, mas por ter sido sempre um negro que não aceitava as regras da “Casa Grande”.

Uma situação que abateu o espírito revolucionário do grande artista, que já vinha debilitado pela sucessão de dois AVCs, mas não o destituiu de seu intuito primeiro, do seu fervor eternamente adolescente em não desistir de mudar o mundo, que não se deixou apagar, ante um sistema que parece existir para se alimentar e reproduzir das vidas e almas de suas populações afrodiaspóricas. Tendo sido contratado como diretor artístico da TV Cultura, almejava novos planos e metas para continuar o seu balé-teatro anti-sistêmico, em novas esferas e campos de atuação, com toda uma possibilidade de ações e impactos que nunca se farão por realizar devido ao seu falecimento pelo COVID-19 no último 08 de Abril. Obra que num primeiro momento pode parecer ter chegado ao seu fim, com a morte física de seu autor, mas que torna-se cada vez mais viva a cada momento em que se faz conhecer, em que se torna inspiração para tantas pessoas que procuram construir os próprios destinos.

O que é a vida? É muito curta! O que você pode fazer pra influenciar e deixar um legado, uma influência nas pessoas? Porque na realidade não é só sobre mim, é as pessoas que todas em várias funções se sentem inspiradas a contribuir com o seu melhor, não importa se você é o artista, se você é o figurinista, se você é o técnico de som, se você é a pessoa que tá limpando o linóleo. Cada um pode se complementar, se satisfazer dando o seu melhor! E se eu estou numa certa posição, eu posso – dentro dessa órbita – inspirar as pessoas, para mim sempre foi um objetivo. Então na realidade nós todos não queremos desaparecer, queremos deixar alguma coisa lá. E uma coisa que eu já falei em duas outras entrevistas, e eu repito: “Qual vai ser o seu legado?” Quando, né? Como todo mundo, um dia a gente vai… Desaparece… Eu falei, digam a todo mundo, que eu tentei, só isso…” (IVO, 2019)

Construtor de um legado inspirador, para infinitas pessoas não terem mais vergonhas de si mesmas e nem de desistirem de transformar seus sonhos em realidade. Sempre fiel aos seus ideais, de gerar e levar beleza a todos os cantos, para assim construir narrativas e caminhos de solidariedade, de comunhão, que levarão ao seu final a construção de um novo mundo. Em que a arte e vida de Ismael Ivo serão referências sempre vivas!

Que façamos do seu legado, e da sua obra, espetáculo que nunca acaba, com o artista bailando pelo Orum em eternidade, agora enquanto força ancestral que nos guia e protege!

Sem mais, nem menos, que não deixemos de contar que ao domar o impossível, Ismael Ivo foi aquele que tentou e conseguiu ser – maravilhosamente – Ismael Ivo!

Notas Explicativas:

(1) Alvin Ailey, coreógrafo, bailarino e ativista político afro-americano, é referendado como o artista que popularizou a “dança moderna. Fundou o “Alvin Ailey American Dance Theater” (AAADT) em 1958 na cidade de New York, para tornar-se um espaço de tornando-se uma referência e resistência artística negra e popular ante ao que considerava enquanto um elitismo e racismo do mundo das artes no Estados Unidos.

(2): Local simbólico para Ismael Ivo, pelo fato que enquanto jovem acompanhou, quando não performando, várias ocupações e assembleias políticas que resultaram na constituição do “Movimento Negro Contra a Erradicação de Preconceito Racial” na data de 1978)

(3) Uma postura pessoal, no mais amplo e belo sentido de ação política, de inserção e interação social, através do uso da cultura e das artes, que também exerceu durante sua vivência em mais de trinta anos na Europa, quando: “Atento em gerar oportunidades de estudos e experiências artísticas para jovens do Brasil, Ismael criou programas formação como o “Biblioteca do Corpo” (2014), sendo um grande facilitador no intuito de construir pontes para a inserção de bailarinos internacionalmente. Ali, ele selecionava bailarines emergentes do Brasil, que recebiam orientações e treinamentos no festival ImPulsTanz abrindo a possibilidade de criar uma nova geração de bailarinos coreógrafos para o futuro.” (COUTO, 2021: s/p)

Referências Bibliográficas:

COUTO, Flip. Ismael Ivo: Um legado na arte mundial [2021]. In: https://ponte.org/artigo-ismael-ivo-um-legado-na-arte-mundial/, acessado em 14/04/2021.

IVO, Ismael. Ismael Ivo – Série Cada Voz [2020]. In: https://www.youtube.com/watch?v=5Sr7tX65VMY, acessado em 14/04/2021.

IVO, Ismael. O que te inspira? [2019]. Revista INSPIRE-C. In: https://www.youtube.com/watch?v=RkJZSx_6YIg, acessado em 14/04/2021.

JUSTIÇA PARA ISMAEL IVO. Ismael Ivo – Por Quê? In: https://www.youtube.com/watch?v=ZrApe6s2lR8, acessado em 14/04/2021.

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Fuvest divulga datas do vestibular 2025

A Fuvest divulgou nesta segunda-feira (18) o calendário de...

Arte para manter viva a memória do colonialismo alemão

Espectadores se concentram em torno das obras de Cheryl...

Lideranças brancas têm responsabilidade na busca pela equidade racial

O Censo 2022 revelou um dado de extrema relevância histórica e...

para lembrar

spot_imgspot_img

Espelho, espelho meu… Na bolinha dos olhos, há alguém mais preto do que eu? O colorismo como elemento de divisão da negritude e da...

Ao menos nos últimos dez anos, ocorre um fenômeno em meio ao universo intelectual e militante do movimento negro brasileiro, que é a retomada...

“Seminário 20 anos sem Clóvis Moura” – Resgate da vida e obra de um intelectual mais vivo do que nunca!

Parafraseando certo livro de filosofia política alemã, afirmamos que um espectro ronda a Academia brasileira, o espectro de Clóvis Moura. Todas as potências da...

Ao seu, ao meu, ao nosso “amigo” que pensa ser antirracista, mas que na verdade… 25 tópicos para você deixar de ser um(a) perpetuador(a)...

Que se diz antirracista, ou pessoa em desconstrução ante “nosso” racismo estrutural, mas que diz, faz e defende cada barbaridade. Esta lista é para...
-+=