Nelson Mandela já nos ensinou que “Ninguém nasce odiando o outro pela cor de sua pele, ou por sua origem ou religião. Para odiar as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar”.
Na década de 1980, época em que eu nasci, a programação infantil da televisão era dominada por programas como Xou da Xuxa, Os Trapalhões e Sítio do Picapau Amarelo, só para citar alguns. Não tínhamos grandes referências, se é que tínhamos alguma, de pessoas negras.
Cresci, como milhares de crianças, sob a influência do racismo estrutural, institucional (ALMEIDA, 2019) e recreativo (MOREIRA, 2019) disseminado pela TV, que nos faziam acreditar que o padrão de beleza, inteligência e superioridade era branco, cis e heteronormativo, em uma época que essas expressões nem eram tão conhecidas.
Quantos meninas (eu me incluo) não sofreram por não serem brancas, loiras e de cabeços lisos, características que as tornariam elegíveis ao posto de paquita da Rainha dos Baixinhos? A mesma “rainha” (dos branquinhos), que em março deste ano sugeriu testar medicamentos em presos, conforme matéria publicada no site Uol.
A programação de domingo da família brasileira era assistir o quarteto trapalhão, formado por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Quem não ria das trapalhadas do personagem Mussum, único representante negro do quarteto. Como muito bem explicou o professor Adilson Moreira, em seu livro Racismo Recreativo, Mussum foi um dos personagens humorísticos mais populares da televisão brasileira.
Mussum era a mais singular representação do malandro, um dos principais estereótipos associados a pretos e pobres. O personagem estava sempre bêbado, em bares ou com garrafas de bebida nas mãos. Andava sempre cambaleando e com trejeitos de uma pessoa dominada pelo álcool. E eram essas características, sempre em tom muito exagerado, que arrancavam gargalhadas do grande público. “Ele era um exemplo do tipo de humor construído em torno da premissa da superioridade do homem branco em relação ao homem negro…” (MOREIRA, 2019, p. 105).
E o que falar do popular Sítio do Picapau Amarelo? Um clássico da literatura infantil, celebrado e defendido por diversos autores e digno de vários episódios na TV aberta brasileira? Quantas expressões racistas foram utilizadas (e ensinadas) pela boneca Emília, que eu inclusive tive uma, contra a personagem da Tia Nastácia, a cozinheira negra do sítio. No livro “Reinações de Narizinho” (1931), Monteiro Lobato escreveu: “Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo”.
De março de 1977 a 1986, foram exibidos mais de 1.500 episódios do programa infantil, de segunda a sexta-feira na grade da TV Globo.
As obras do paulistano Monteiro Lobato, carregadas de racismo e ideais eugenistas, até 2014 eram largamente utilizadas pelas escolas, até que foi levado ao Supremo Tribunal Federal um mandado de segurança no qual se discutia a retirada do livro Caçadas de Pedrinho da lista de leitura obrigatória em escolas públicas.
Lobato jamais escondeu seu racismo e sua aversão pelo que chamava de “petralhada inextinguível” e “mulatismo que traz dessoramento ao caráter” (SODRÉ, 2015, p. 265).
A partir de agora daremos um salto de 40 anos, chegando ao ano de 2021, para enfim alcançarmos o fato que me motivou a escrever este artigo. Já adianto logo, que ainda hoje não é difícil encontrar discursos que tentem justificar as obras racistas da década de 1980, e seus autores, alegando que a época era outra, que questionar o conteúdo das obras é censura prévia e que hoje tudo é mimimi.
Eu tenho um filho de seis anos e me preocupo muito com o tipo de conteúdo que ele consome. Entendo que, às vezes, a televisão faz o papel dos pais, principalmente em tempos de pandemia, onde precisamos trabalhar de casa, organizar o ambiente doméstico e educar, tudo ao mesmo tempo. Mas atentar-se a faixa etária da programação, às narrativas e, principalmente, à diversidade dos personagens e suas histórias é o mínimo que devemos fazer para proteger as infâncias. Por aqui, desenhos que privilegiam personagens brancos ficam fora da nossa lista. Bem como programas que não tragam conteúdo educativo ou que incentivem a violência e incitem ao ódio, também não estão liberados.
Ainda assim, apesar de todos os cuidados, esta semana me deparei com uma situação que me motivou a escrever esse texto. Durante um desenho de um canal infantil da TV por assinatura, que conta a história de um ursinho que foi adotado, este (o urso) planeja fazer uma festa surpresa e aprende a tocar violino. Uma outra personagem, uma menininha amiga do urso, faz aulas de violino contra sua vontade, pois seu desejo mesmo era estudar bateria. Para não ir a aula, ela inventa uma mentira para sua professora e diz para seu amigo urso que inventou uma mentirinha leve, inofensiva, uma mentira branca.
Na mesma hora meu filho veio me perguntar o que era uma mentira branca, pois o que é mentira ele já sabe. É consenso que mentir é algo ruim, condenável. Ensinamos nossas crianças a não mentirem. Mas quando os pequenos ouvem em um desenho animado que uma mentira branca não é algo tão ruim, temos dois problemas: o primeiro de naturalizar a mentira e o segundo de que a ideia do branco é associada a algo positivo. Logo, como as crianças aprendem muito por associação, se o branco é bom o preto é ruim.
O professor Adilson Moreira reflete sobre a importância da televisão na construção de significados sobre negros.
“A televisão tem sido um dos meios mais importantes na criação de significações culturais sobre grupos minoritários, um lugar de divulgação de representações cotidianas da negritude em nossa cultura. As imagens exibidas na televisão são exemplos de política cultural porque veiculam ideias que permitem a transformação da branquitude como um tipo de capital cultural, e a negritude como elemento de inferioridade moral” (2019, p. 98-99).
O episódio deste desenho, passado em 2021, apenas reforça que o projeto racista, eugenista e etnocida que fundou o Brasil, está mais vivo do que nunca. Nossas crianças negras ainda têm suas histórias roubadas e deturpadas, enquanto as elites claras e hegemônicas seguem atualizando seus discursos racistas em rede nacional.
[…] programas de radiodifusão, textos jornalísticos, pronunciamentos parlamentares etc. – desempenham um papel central tanto na produção quanto na reprodução do preconceito e do racismo. Desses discursos provêm modelos cognitivos e atitudes relativos às minorias de qualquer natureza, especialmente os negros na sociedade “clara” do Ocidente (SODRÉ, 2015, p. 276).
Mandela nos alertou que precisamos ensinar a amar e não a odiar. O combate ao racismo é um dever de todos, principalmente da branquitude, que foi quem inventou o racismo.
Em 2010 a UNICEF Brasil lançou a campanha “Por uma infância sem racismo”, alertando sobre os impactos do racismo na vida de milhões de crianças e adolescentes brasileiros e convidando cada um a fazer uma ação por uma infância e adolescência sem racismo. A iniciativa foi reativada em 2020 e lista dez maneiras de contribuir para uma infância sem racismo. Para conhecer de forma detalhada essas ações, acesse o site da UNICEF Brasil.
No mais, cabe a nós, população que foi e é secularmente odiada pela sociedade eugenista, proteger nossas crianças, acolhendo e ensinando-lhes o que é o amor.
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¹ Trecho retirado da autobiografia “Nelson Mandela – Longa caminhada até a liberdade”, 1994.
² Matéria publicada no site Uol, no dia 27 de março de 2021. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2021/03/xuxa-sugere-usar-presos-para-testes-de-remedios-que-sirvam-para-alguma-coisa.shtml
³ Informação retirada do site Uol sob o título: Com racismo e assassinato, Sítio do Picapau estreava há 40 anos. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/com-racismo-assassinato-sitio-do-picapau-estreava-ha-40-anos–14380
⁴ Site da UNICEF Brasil: https://www.unicef.org/brazil/por-uma-infancia-sem-racismo