Filme de Viviane Ferreira mescla humor e questões sociais com família negra

Filme de Viviane Ferreira mescla humor e questões sociais com família negra

Num conjunto habitacional barulhento em São Paulo vive uma família que se ancora na matriarca. Ela é o sustento financeiro, cuida das filhas, do marido e faz as tarefas domésticas que recaem sobre as mulheres, como bem se sabe.

Esse cenário é o ponto de partida de “Família de Sorte”, nova comédia de Viviane Ferreira, que dirigiu “Ó Paí, Ó 2” e é presidente da Spcine.

A trama, escrita por Maria Shu, acompanha o desenvolvimento do casal Jennifer, interpretada por Micheli Machado, e Maicon, papel de Robson Nunes. Ela trabalha em uma clínica pediátrica e ele era segurança de um galpão até ser demitido, o que o faz querer se inscrever para um reality show.

Mas sua mulher, sem saber, também é inscrita pelo irmão, Cleitinho, é selecionada e deixa Maicon a cargo da casa e das duas filhas, Riana e Bionce —uma homenagem às divas pop.

A família é composta por pessoas negras, assim como grande parte do elenco, mas não se fala muito sobre isso. O filme retrata o cotidiano de uma família brasileira parecida com a maioria da população, que se identifica como preto ou pardo de acordo com o IBGE.

O filme surge em um momento cujo desafio, segundo Ferreira, é fazer o público se apaixonar novamente pela experiência de ir ao cinema. Para isso, ela acredita que eles precisam se enxergar nas telas.

Ela lembra filmes como “Nosso Sonho”, que retrata a dupla de funk Claudinho e Buchecha e foi sucesso de crítica, “Mussum, O Filmis”, cinebiografia do humorista Mussum, que estreou com a maior bilheteria do ano passado e foi o vencedor da 51ª edição do Festival de Cinema de Gramado, e o próprio “Ó Paí, Ó 2”.

“O que esses três filmes têm em comum, para além de serem filmes lançados pós-pandemia, é que se debruçam sobre trajetórias e experiências de personalidades que são facilmente identificadas por 56% da população brasileira. São protagonismos e personalidades negras”, diz.

Segundo a diretora, há uma lacuna no cinema brasileiro que não retrata essa população. “O nosso filme chega para dialogar exatamente com essa audiência.” A expectativa de Viviane Ferreira, que também é presidente da Spcine, é atrair muita gente para o cinema quando o filme for lançado —com previsão para o segundo semestre deste ano.

Ainda que os personagens não sejam alheios ao seu pertencimento racial, eles não falam o tempo inteiro sobre racismo. No reality criado no filme, todos os participantes são negros, mas isso não é um tópico verbalizado.

“A maneira estereotipada como as pessoas negras têm sido historicamente retratadas no nosso audiovisual faz com que todas as vezes que a gente pense em um elenco negro, a gente o coloque automaticamente agindo contra o racismo e não simplesmente vivendo”, afirma. “A gente merece viver, sonhar, se emocionar e pensar uma vida em plenitude.”

Essa ideia surge desde a concepção do projeto da produtora Gullane. “Nós precisamos criar um imaginário brasileiro, considerando que o país é majoritariamente afrodescendente, com histórias positivas de um cotidiano menos de exceção, não ligado à marginalidade”, diz Caio Gullane, produtor do filme, que é coproduzido pela Warner Bros. O longa também recebe fomento do governo do estado de São Paulo, com incentivo do fundo setorial apoiado pela Ancine.

O filme trata de assuntos sérios, assim como os trabalhos de Viviane Ferreira, voltados para um audiovisual identitário, mas ainda assim é uma comédia. Ela conta que só aceitou dirigir o projeto sob uma condição —rir com as pessoas negras e não rir das pessoas negras.

Para isso, Robson Nunes e Micheli Machado, que também são um casal na vida real, emprestaram seu humor, química e experiência para os personagens. Eles estão juntos há 21 anos e fazem um espetáculo de stand-up comedy pelo Brasil chamado “Roupa Suja se Lava no Palco”. Essa é a primeira vez que contracenam juntos em um filme.

Nunes diz que algumas vezes relembra experiências que viveu como pai de menina e que o humor, para ele, também está em ver o desespero de um pai de uma adolescente. “Tem hora que dá desespero e tem algumas cenas que eu volto no tempo”.

Não só o casal traz vivacidade para as cenas, mas as locações também. O caminho que Jennifer faz no ônibus para ir ao trabalho mostra a cidade, além de cenas típicas do cotidiano brasileiro no conjunto habitacional que a reportagem acompanhou —um espaço vivo e colaborativo, com crianças correndo de um lado para o outro e vizinhos curiosos.

Na casa há detalhes que dão vida à trama, como fotos e desenhos das crianças na geladeira e um altar religioso. Ferreira, a diretora, diz que a religiosidade e a fé estão presentes na vida desses personagens sem nenhum ritual específico.

“O filme dialoga com aquilo que o brasileiro tem de melhor dentro de si, a fé”, diz. “Chega um momento em que todo brasileiro bota seu joelho no milho e reza para ter sorte, para alguma coisa cair do céu e mudar de vida.”

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