Aos 76, artista trans veterana relembra camarins separados para negros

Enviado por / FonteUniversa, por André Aram

Divina Aloma rejeita a linguagem atual, prefere ser chamada de travesti e mulata (atualmente, prefere-se o termo pardo ou negro). Aos 76 anos, sendo 57 de carreira, ela possui uma trajetória de sucesso nos palcos, quando os shows nos teatros eram estilo Broadway.

De sem-teto a musa do pintor Di Cavalcanti, ela brilhou nos espetáculos ainda nos anos 1960, quando os camarins para artistas trans negras eram separados, e chamados de ‘navio negreiro’ pelas ‘loiras’, segundo ela. Nada disso abalou sua determinação, e ela sobreviveu a tudo isso sendo considerada atualmente a artista trans mais longeva em atividade. Atualmente, ela vive em Salvador. A Universa, ela conta sua história:

“Aos oito anos, já sabia o que queria ser, mas não queria envergonhar minha família. Então, aos nove, deixei Salvador e vim sozinha para o Rio de Janeiro enfrentar a vida. Na rodoviária pedi a uma senhora que me trouxesse, porque uma criança não poderia viajar só, mas ao chegar no Rio, tive medo que ela me raptasse, e fui para a praia do Flamengo.

Minha casa era uma caixa de papelão. Pouco tempo depois, fui ‘adotada’ por um casal de moradores de rua, o caixote era a nossa mesa, onde eles me traziam comida, mas após quatro anos decidi seguir meu caminho e fui para Copacabana.

Na praia, à noite, fazia um buraco na areia, cobria com jornais e ali era a minha cama. De manhã, ia às feiras carregar as compras das senhoras por alguns trocados para comprar comida e assim fui levando. Depois fui para a região central e minha nova casa era um banco de praça e ali passava o dia observando as pessoas; até que certa vez uma mulher me abordou, conversamos bastante e ela me levou para a casa dela.

Quando vi seu ateliê, fiquei encantada, então ela me ensinou a costurar e me deu o nome de Lili, que confesso não gostei. Ela trabalhava numa peça no teatro Carlos Gomes chamada ‘Eles são Elas’, e passei a auxiliá-la vestindo as artistas do show.

Camarins separados para artistas negras

Vieram outros espetáculos, até que em uma ocasião uma das estrelas faltou, e eu a substituí. Após isso fui para outro teatro, onde a Rogéria [1943-2017] me pôs no palco para desbancar outra, então saí dos bastidores para ser uma artista, assim como elas, em 1967.

Mas elas não aceitaram bem a ideia, afinal, eu era aquela que as ajudava com o figurino. Nossos camarins eram separados, havia um para as brancas e outro só para as negras, tanto que elas chamavam o nosso de ‘navio negreiro’. Elas não se misturavam conosco, éramos cinco negras.

Essa divisão era uma coisa delas, porque a maioria era de loiras, Rogéria, Jane di Castro [1947-2020] etc, todas loiras, e nós, as ‘mulatas’, ficávamos em outro camarim. Mas o preconceito nunca me incomodou, ignorava quando ouvia ‘essa negrinha’, apenas pensava ‘essa negrinha um dia será igual, ou melhor, que vocês’.

Fazíamos tanto sucesso quanto elas. Éramos tão contentes com a vida, existia tanta coisa boa, nem me importava com isso. Fazia os shows lá e também nos cabarés de Copacabana. Em 1974, fui para São Paulo para trabalhar na boate Medieval com exclusividade e carteira assinada.

Racismo no concurso

O nome Divina veio de uma reportagem de 1975 na Folha de S.Paulo, do Nelson Rubens, que me viu no Medieval e no título estava ‘A divina gay’. Imagine, sair em um jornal de família, uma página inteira. O Aloma foi dado pela Eloína [dos Leopardos, 1ª rainha de bateria do Brasil].

Naquele mesmo ano, participei do Miss Brasil Gay no Rio, a campeã seria eu, escolhida por unanimidade pelo júri, tanto que a Miss Brasil anterior foi até o camarim e me contou ‘a faixa é sua, todos te deram 10’. Mas a Rogéria era a presidente do júri e falou: ‘por que dar o título para uma negra se tem uma branca melhor?’. Ela me tirou o título, eu estava linda, vestida pelo Clodovil com um vestido de strass, e fiquei em segundo lugar.

Em 1979, me mudei para a Europa, fiz shows em vários países, morei na Itália, e fui casada por dez anos. Em 1992, voltei para o Brasil, amo meu país, porque lá fora você sempre será um estrangeiro. Dois anos depois, o Falabella [ator] me convidou para ir com os amigos dele ao Baile do Pão de Açúcar [famoso evento realizado no ponto turístico carioca]. Várias celebridades estavam lá, entre elas o cineasta Francis Ford Coppola e o ator Robert De Niro. Só ouvia aquele burburinho ‘De Niro ali, olha ele’.

Logo depois, o Coppola acenou com o braço me chamando para a mesa deles, e fui. Ele não tirava os olhos das minhas pernas, ficou encantado por mim, mas o pessoal estava jogando a Roberta Close pra ele, mas o De Niro gosta de quê? Negras, né.

Lembro ter dito ao Coppola que não falava inglês, ele então disse ‘não importa, você fala italiano?’ Respondi ‘sì’, e começamos a conversar. Ele [De Niro] me convidou para sair de lá de helicóptero para o hotel dele, mas recusei, não achei justo sair com ele e deixar as pessoas que me levaram ao baile.

Ele sabia que eu era trans, o que mais tinha era travesti naquele baile. Se naquela época tivesse saído com ele, seria mundialmente conhecida, mas sempre fui muito discreta na minha vida, então perdi essa oportunidade.

“Anos 70, os melhores da minha vida”

Nos anos 1970, trabalhei também em ‘shows de mulatas’ no Canecão [extinta casa de espetáculos no Rio]. Lembro de uma amiga ter me questionado sobre se eles descobrissem que eu não era mulher, e respondi ‘tudo bem, me mandem embora’.

E isso de fato aconteceu, após seis meses, uma pessoa me dedurou e o dono veio conversar comigo dizendo que a censura não permitia que travesti trabalhasse com mulheres. Fui musa do pintor Di Cavalcanti [1897-1976], pena não ter ficado com o quadro, porque ele queria me dar, mas naquela época eu só queria viver, curtir, ir à praia, fazer meus shows nas boates, não tinha a vivência que tenho hoje, nós éramos felizes e não sabíamos.

Sempre escutei das pessoas: ‘ali você não pode entrar porque não aceitam travestis, lá também não porque não aceitam negras’, e onde dizia que eu não entrava, era ali que ia pra fazer os testes.

Posso dizer que não sofri transfobia no Brasil, era convidada para as melhores festas, com Jaguar (cartunista), Ziraldo, Jô Soares [1938-2022], Danuza Leão [1933-2022], essas eram as pessoas com quem andava, eles faziam questão da minha presença, a cantora Wanderléa e Grande Otelo [1915-1993] eram meus amigos, conheci até Ursula Andress [atriz suíça].

Na época nós nos comportávamos como mulheres, me vestia como uma mulher, tanto que naquele tempo diziam que travesti era luxo, você chegava nos lugares e as pessoas falavam ‘não pode ser homem, é muito feminina’. Aliás, sobre discriminação, me recordo de uma situação, certa vez desfilei de noiva para o estilista Markito [1952-1983], e aí sofri críticas das mulheres que reclamaram: ‘como assim você põe uma travesti pra usar vestido de noiva?’, e ele disse: ‘o desfile é meu, o modelo é meu e eu quero que ela desfile pra mim’.

Gosto de ser chamada de travesti porque sou da época que éramos atores transformistas, apesar de viver como mulher 24 horas, nunca botei na minha cabeça ser uma, sou uma artista, uma pessoa como qualquer outra.

Olhando para a minha trajetória só tenho uma coisa a dizer: vitória, minha vida é uma vitória, por tudo que passei. Sabe por que o preconceito nunca me abalou? Sempre segui um conselho da minha avó que dizia: ‘ou você se dá com pessoas iguais a você ou melhores que você’. E foi isso que busquei sempre, a lidar com pessoas melhores ou iguais a mim.”

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