As diásporas da b¡cha preta

A descoberta da sexualidade pelos homens negros, e aqui me refiro à sexualidade homoerótica como sendo também o lugar de onde falo, reintroduz na experiência subjetiva destes a sensação de diáspora. É próprio da negritude, com todas intersecções que a ela podemos relacionar, a sensação permanente de se estar fora de casa, fora da possibilidade de ser integrado plenamente e de ser genuinamente acolhido onde se vive. A subjetividade negra é diaspórica por trazer em sua memória corporal e genealógica a retirada violenta de seu lar, de seu espaço de segurança, de afirmação de si e da visão de mundo de seu povo.

Por Lucas Veiga Do Revista Fórum

Desde que fomos sequestrados de nossas origens, a relação do povo negro com a nova casa é a relação de um sequestrado com seu cativeiro. Isso se deu no século XVI, quando teve início o tráfico de escravizados de África para as Américas, e continua se dando no século XXI porque os efeitos desse sequestro e da subsequente escravização negra continuam presentes até hoje.

O povo negro vive, desde sua saída forçada de África, num ambiente anti-negro, racista, que opera com inúmeros dispositivos para exterminá-lo. Não há descanso e muito menos a possibilidade de se sentir de fato em casa, mesmo estando vivendo no Brasil há aproximadamente quinhentos anos.

No processo de desenvolvimento dos garotos negros está colocada, desde muito cedo, a possibilidade de afirmação e proteção de si via submissão ao modo de vida do sequestrador, no caso, do homem-branco-heterossexual. A masculinidade ocidental que sustenta a lógica violenta do patriarcado é branca. Como não é possível a um homem negro deixar de ser negro, ele negocia a autopreservação e o amor do sequestrador incorporando seus códigos morais e comportamentais transformando-se num macho-beta; posto que numa sociedade em que se defende, de inúmeras formas, a supremacia branca, o papel de macho-alfa pertence somente aos homens-brancos-heterossexuais que fundam e refundam ad infinitum esse sistema.

ALÉM DE PRETO É GAY?

A internalização da masculinidade branca pelos homens negros como tentativa de ser reconhecido como pessoa, como homem, como alguém digno de valor, se manifesta, por vezes, em comportamentos violentos para com aqueles do seu próprio povo que questionam e se deslocam desse padrão heteronormativo colonizador. Aqui, me refiro especificamente aos homossexuais negros como sendo esse alvo de violência, ainda que mulheres negras e pessoas trans negras também o sejam.

Diante da convocação da masculinidade para a heterossexualidade como única sexualidade aceitável e diante da recusa subjetiva dos garotos negros homossexuais a se submeterem inteiramente a ela – recusa essa que num primeiro momento se dá à sua própria revelia, posto que é comum homossexuais negarem ou camuflarem a sexualidade para se protegerem – os garotos negros homossexuais experimentam a diáspora uma segunda vez.

A descoberta da homossexualidade pelos garotos negros, que a partir deste momento do texto chamarei de bichas pretas, os faz experimentar uma segunda diáspora porque os retira novamente da possibilidade de serem integralmente e genuinamente acolhidos, mas de forma ainda mais nociva, posto que essa segunda barreira à aceitação se dá em seus próprios quilombos, ou seja, em suas famílias, em suas comunidades e até nos movimentos negros. Sendo assim, um impasse é colocado frente às bichas pretas: negar a própria sexualidade e aderir ao ideal de masculinidade estabelecido para se proteger e preservar o amor de seus pares ou afirmar a própria sexualidade e ficar desprotegido, correndo o risco de não ser aceito em seu próprio espaço familiar de pertencimento.

Qualquer uma dessas escolhas implica em sofrimento. Em ambas é o aconchego do lar, do lugar onde se sentem mais seguras, que está em jogo. Desde muito cedo as bichas pretas precisam enfrentar o próprio corpo e o próprio desejo como inimigos em potencial porque a descoberta do segundo pode vir a deixá-las ainda mais desamparadas, como se viver num país no qual a cada 23 minutos mata-se um jovem negro já não fosse terrível o suficiente.

“PRECISA TER MUITO MAIS. MUITO TALENTO”

Para as bichas pretas que optam por afirmar a sexualidade, além dos possíveis conflitos em sua casa, a experiência de refúgio e acolhimento que, por vezes, viviam na igreja, em especial nas igrejas protestantes, é interrompida devido à impossibilidade da maioria desses espaços acolherem a homossexualidade como um dom de Deus. Sair da igreja acaba sendo uma escolha não tão escolhida assim, posto que muitas bichas pretas não rompem com a igreja por não mais terem fé, mas porque a igreja força esse rompimento, as vezes de modo sutil, as vezes de modo violento. Elas, que costumam ser a Beyoncé do ministério de louvor ou a Viola Davis do grupo de teatro deixam o púlpito por terem sido desprezadas, agredidas pelos que se autoproclamam cristãos. A igreja perde.

As bichas pretas seguem pelo mundo em sua existência diaspórica e, felizmente, forjam novas modalidades de acolhimento e novos sensos de pertencimento. As religiões de matrizes africanas, para dar um exemplo, desempenham papel importante na reparação da diáspora que a heteronormatividade impôs à relação das bichas pretas com os demais pretos e com a espiritualidade.

No círculo familiar, elas costumam ser a figura masculina que mais acolhem as mulheres negras e o fazem com desenvoltura, talvez por não terem medo de acessar e explorar o feminino que as habita. O mergulho no feminino é ao mesmo tempo redenção e risco, mais um dentre os paradoxos que as bichas pretas precisam encarar para seguir a vida. Contudo, algumas não se permitem se aventurar muito pelo feminino por diversos motivos.

Por não poderem descansar, sob o risco de terem suas vidas ceifadas, as bichas pretas frequentemente desenvolvem sensibilidade e intuição singulares e, muito frequentemente, se destacam nos espaços por onde circulam. A força que lhes é exigida para perseverar na existência as leva a ter que negociar e conquistar espaços aonde bichas pretas geralmente não seriam bem-vindas.

Viver em diáspora não é uma experiência fácil para ninguém, viver numa dupla diáspora é ainda mais pesado e, por vezes, muito solitário. A solidão própria da diáspora tem um duplo peso nas vidas das bichas pretas, mas elas não são do tipo que se rendem. Elas criam entre – ou em – si maneiras de se acolher e de se fortalecer, seja nos seus coletivos, na amizade com as irmãs pretas, nas relações amorosas. Diante da dupla impossibilidade de serem plenamente aceitas na sociedade onde vivem, as bichas pretas constroem seus próprios quilombos, seus espaços de cuidado, suas fontes de força, prazer e segurança.

Eu poderia seguir abordando outros aspectos da diáspora da bicha preta, mas vou parar por aqui e retomar estes aspectos em textos futuros. Eu poderia também ter escrito o texto em primeira pessoa, mas optei por escrever em terceira para ampliar as possibilidades de análise. Há experiências minhas aqui, como também há de amigos, de pacientes, de bichas pretas que conheci por aí. Para mim, com toda nossa singularidade, a dupla diáspora é o que mais temos em comum.

Finalizo com uma exigência a todos aqueles que não são bichas pretas, mas que leram o texto até aqui:

RESPEITEM AS BICHAS PRETAS.

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