Vidas e lutas na diáspora africana nas Américas

enviado por, Amauri Mendes Pereira*

“Será que permiti à luta de Zumbi

Se atolar no escarro do marasmo,

Cuspido em nossos pés?”

CUTI

 

“Pedra, pau, espinho e grade são na vida um desafio,

de quem banha a vida toda no ungüento da coragem.”

CONCEIÇÃO EVARISTO

 

Ao reler O PODER NEGRO de Carmichael, “chorando com os olhos secos” (como queria Agostinho Neto), penso na responsabilidade que pesa sobre a militância do Movimento Negro Brasileiro!

PODER NEGRO (cujo principal arauto foi Carmichael) tornou-se a principal palavra de ordem após o assassinato de Martin Luther King e a derrocada da não-violência entre as hostes negras norte-americanas nos últimos anos da década de 60. Sua melhor encarnação foi o pensamento e ação do Partido dos Panteras Negras, cujos 50 anos da fundação celebramos em 2016. O Black Phanter Party (no qual Carmichael foi responsável pelas Relações Internacionais) se constituiu num fenômeno excepcional de protagonismo histórico coletivo, capaz de se tornar a vanguarda das lutas da grande maioria negra – além do enfrentamento armado contra a violência policial, criaram cooperativas de produtos alimentícios e outras, presidiram intervenções regulares em questões habitacionais e comunitárias em geral, organizaram e realizaram cursos de formação política, interviram em currículos e programas escolares, estruturaram esquemas de prevenção à saúde e de atendimento médico, etc. Mais que isso, sua militância se tornou durante vários anos a vanguarda das lutas libertárias nos Estados Unidos, hegemonizando idéias e práticas junto a indígenas e pobres daquele país… E NEGROS NORTEAMERICANOS ERAM 10% DA POPULAÇÃO (concentrada em algumas áreas e quase inexistentes em muitas localidades norte-americanas)!!!

NO BRASIL SOMOS A MAIORIA DA POPULAÇÃO:

– Estamos distribuídos por todo o território nacional, quase sempre nos “bolsões de pobreza”, amargando as heranças de desigualdades e a atualização de preconceitos e discriminação racial;

– Manifestações Culturais de matrizes africanas, resignificadas em cada região, constituem o “núcleo pesado” do que é visto como Cultura Popular, em todo o Brasil;

– Nas últimas décadas, além da vasta e exitosa difusão da idéia de Consciência Negra junto à grande maioria negra, o Movimento Negro Brasileiro conquistou incontáveis corações e mentes não negr@s, que assumem a Cultura de Consciência Negra;

– Temos memórias e exemplos de mobilizações e manifestações com UNIDADE NA DIVERSIDADE, que rendeu o protagonismo do Movimento Negro desde os anos 70 e 80 (só como exemplos: a criação do MNU-1978, a Campanha das Diretas-1984, as Marchas do Centenário da Abolição-1988, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras-1988, os Encontros estaduais e regionais do Movimento Negro ao longo dos anos 80 e 90, e o I Encontro Nacional de Entidades Negras-ENEN-SP-1991; a Marcha Zumbi dos Palmares-Contra o Racismo, pela cidadania e a Vida-Brasília-1995, Marcha Nacional de Mulheres Negras-Brasília-2015);

– Tantas, tão intensas e diversificadas formas de atuação conquistaram espaços institucionais e políticos, como nunca! Daí o acúmulo de lutas e vivências, de erros e acertos, ganhos e perdas, em partidos políticos, em outros Movimentos Sociais, em âmbito internacional, em órgãos de PIR-Promoção da Igualdade Racial, em muitos governos de todas as regiões;

– A ação do Movimento Negro Brasileiro tornou o racismo e a luta contra o racismo, hoje, pauta inarredável da agenda política nacional: campanhas contra o genocídio do povo negro e contra a redução da maioridade penal; intervenções na Educação, na Saúde, em todo tipo de mídia, na vida acadêmica, entre microempresários, entre movimentos artísticos…

JÁ NÃO FALAMOS APENAS DE NÓS-SOBRE NÓS-PARA NÓS MESM@S E SIM PARA TODA SOCIEDADE BRASILEIRA!

Estamos conscientes de que nos lançamos de vez à disputa das narrativas sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira? “JÁ ERA!” aquelas versões mais influentes, que vão amarelando em livros didáticos e em nosso imaginário social-histórico. Abundam trabalhos acadêmicos ou não – e não apenas de negr@s – questionando classissismos historiográficos, sociológicos, psicológicos, etc, e a colonialidade do poder e do saber euroetnocêntricos. Essas pesquisas mais recentes afirmam e fundamentam, através de reconceituações e novas epistemologias, teorizações e metodologias, que é insustentável qualquer narrativa que desconsidere a crucialidade da questão racial na vida social e na trajetória das lutas sociais no Brasil.

Evidente que, nesse momento (novembro de 2016), estamos no pior dos mundos: um desgoverno “Desinterino usurpador, que se esforça em cumprir seu ideário reacionário aceleradamente, tentando “quebrar” tudo que lembre o contexto dos governos anteriores. Não pelo que erraram – e erraram! Mas exatamente porque havia espaço para essas discussões e se acumulavam vivências importantes, capazes de operar mais e mais profundas transformações.

Se nesse momento há perplexidade, desgosto, desânimo, nas hostes progressistas em geral, há também muita atenção, esforços de “reavaliar tudo”, de “reprogramar o presente e reconstruir o futuro”; e é corrente a visão de que se esgotou um ciclo e será necessário reinventar teorias, estratégias e práticas de lutas.

QUAL O PAPEL DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NESSE CONTEXTO?

Seremos capazes de ultrapassar denúncias, revoltas e posturas afirmativas no “gueto”, e nos lançarmos, com tudo(!) e com tod@s que olham-nos-olhos das dificuldades,  conscientes de que

Lutar prá nós é um destino.

É uma ponte entre a descrença,

E a certeza de um mundo novo”.

?

De nos empenharmos, junt@s ao conjunto dos Movimentos Sociais, na re-educação nossa própria e das “esquerdas” em geral para que “desçamos do salto”? Estaremos pront@s para o desafio de re-analisarmos a longa trajetória de lutas políticas ao longo do século XX e reconhecer que estratégias efetivamente transformadoras implicam em diálogo e construção de referenciais de luta coletivos e compartilhados entre @s (que se veem) “politizad@s” e @s (que são vist@s) como “alienad@s”?  

Estarmos junt@s, “seduzir” e acumpliciar as forças progressistas é importante, mas nosso horizonte “é mais além”! Como estar junt@s às amplas maiorias negras e não negras, de sem teto, sem terra, sem instrução, sem saúde, sem “vida política e consciência política”, sem perspectivas… Será apenas uma questão política? Ou, mais profundamente, é uma questão política-cultural?

Como insistir em modelos de organização e ação políticas que em outros tempos e lugares cumpriram importante papel, mas se mostram inadequados perante os desafios atuais? É suficiente se requentar referenciais (históricos, simbólicos, estéticos) para analisar a formação, desenvolvimento e atualidade da sociedade brasileira? “Teorias sociais” cegas à cor (na verdade cegas à questão racial) e ao valor da diferença como motor de transformações? Isso suja a geração de estratégias para a ação consistente, face à correlação de forças sociais e políticas sempre instáveis e provisórias num mundo complexo e vertiginoso. Como aprofundar e aprimorar a crítica e auto-crítica sem a dinâmica de pensamento e ação junto à grande maioria de negr@s e da população em geral, sem nos banhar na pedagogia do oprimido que falava Paulo Freire?

É suficiente assistir e sofrentender que “tudo está desabando”: as instituições e as conquistas “democráticas” construídas com as melhores intenções, mas em terreno pantanoso – a democracia representativa sob hegemonia de um sistema de poder e valores que permanecia intacto reproduzindo exploração, opressões e todo tipo de desigualdades? O Movimento Negro Brasileiro traz a compreensão e práxis que aponta a questão racial como um fator decisivo para a perpetuação das desigualdades sociais.

Se o zelo pela institucionalidade habilmente conquistada e conduzida se mostrou insuficiente e incauto, como “olhar com óculos brasileiros a realidade brasileira”, e enxergar, por exemplo, as máscaras brancas em corpos de todas as cores? Como enfrentar os preconceitos e arrogância arraigados entre elites culturais de todas as cores e matizes políticos, e construir a interação efetiva e amorosa, verdadeira com os-as “condenad@s da terra”, assolad@s pela colonialidade do poder e dos saberes que @s estigmatizam e afastam? Como produzir práxis, teoria, estratégias e ações transformadoras sem essa interação com a pluriversidade da vida social?

O amplo e diverso Movimento Negro Brasileiro tem a oportunidade de se refazer com impulso e firmeza porque a “cultura negra” vem se transmutando e encharcando a vida social com a Consciência Negra. E também porque militantes negr@s vem incorporando (para o “bem” e para o “mal”) extraordinária riqueza de vivências: suas demandas foram parcialmente incorporadas em espaços políticos e institucionais – a militância negra teve oportunidade de aprender com vivências próximas de espaços de poder, mas precisou se contentar com um espaçozinho, um quase-orçamentozinho-um esqueminha… E houve, mesmo, aqueles e aquelas que “sucumbiram às tentações”!

Verdade que começaram a ser acolhidas as demandas de PIR-Promoção da Igualdade Racial. Salvas as sempre honrosas exceções, porém, o que prevalecia era o “politicamente correto” – presenças negr@s para atenuar consciências culpadas e o “flagrante racial” em governos e junto à institucionalidade hegemônica. Por que não a construção firme no terreno sólido da participação, da vivência crítica frente às armadilhas do poder, “jogando peso” no diálogo, no seio da vida social?

RECLAMAR, NO ENTANTO, TAMBÉM “JÁ ERA”!

Melhores estratégias e ações carecem de auto-crítica e amadurecimento no âmbito da Luta Contra o Racismo e de Promoção da Igualdade Racial, e junto ao amplo espectro de forças progressistas. A responsabilidade é de quem “toca o lado de cá do futuro”, quem vê e quer construir – reaprender e ensinar velhas e novas lições na e com a vida social ampla e plural.

Carmichael e o Partido d@s Panteras Negras entenderam que as lutas dos negros norte-americanos se identificavam com as lutas dos povos oprimidos do “terceiro mundo”, e que deviam estar juntos para fortalecimento de tod@s contra o poder racista e imperialista do Ocidente. Alguns setores da esquerda européia tentavam entender tais visões e por isso ele foi convidado para o Congresso Dialética da Libertação. Será difícil se estabelecer DIÁLOGO DE VERDADE entre o Movimento Negro e as forças progressistas? E entre nós tod@s e a grande maioria da sociedade brasileira?

Foi-se o tempo em que o Movimento Negro Brasileiro pregava quase sozinho. Se não chegarem junt@s: ainda que precisemos puxar, puxar, puxar… Vamos gritar, como Carlos de Assumpção desde os meados do século XX, em seu poema, PROTESTO:

Mesmo que voltem as costas às minhas palavras de fogo,

não pararei de gritar, não pararei, não pararei de gritar…

* Amauri Mendes Pereira. Foi diretor 1979-81 e presidente 1992-6, do IPCN-Instituto de Pesquisas das Culturas Negras-RJ. Foi diretor da ABPN-Assoc. Brasileira de Pesquisadores Negros. Doutor em Ciências Sociais-PPCIS-UERJ. Mestre em Educação-PPGEdu-UERJ. Especialista em História da África CEAA-UCAM. Foi pesquisador do CEAA e do CEAB-UCAM. Atualmente é Prof. Adjunto no DTPE-IE-UFRRJ e do PPGEDUC-UFRRJ. Responsável pelo Grupo de Pesquisas Conjuntura Nacional e Luta Contra o Racismo. [email protected]

 

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