Virgínia Bicudo, a brasileira pioneira em estudos raciais na psicanálise

Neta de uma escrava alforriada, a cientista também foi um dos primeiros nomes a falar sobre o campo clínico da psique infantil no país

Por Camilla Venosa, da Revista Claudia

(SBSSP/Reprodução)

Uma das figuras mais importantes na disseminação da psicanálise no Brasil, Virgínia Leone Bicudo foi pioneira no debate de estudos raciais no campo clínico da psique humana. Com uma vida marcada pelo racismo, ela encontrou na ciência um local de debates para os preconceitos que enfrentou, tornando-se uma das principais referências nos estudos das relações raciais na ciência.

Nascida em 1910, na cidade de São Paulo, Virgínia é filha de uma imigrante pobre de origem italiana e de um descendente de escravo. Mais velha de seis irmãos, a família foi grande incentivadora do seu percurso acadêmico. Em 1930, formou-se na Escola Normal Caetano de Campos, considerada um marco na renovação da educação do país, onde também estudaram personalidades como Cecília Meireles e Mario de Andrade.

(SBSSP/Reprodução)

Depois, exerceu o magistério como professora substituta permanente nos Grupos Escolares Carandiru e Consolação. Mas, ao ser chamada para lecionar em Ubatuba, decidiu seguir outro destino ingressando no Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo, o que a conduziu a um cargo de funcionária da Diretoria do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação para dar aulas de higiene. Em 1936, ao se interessar por sociologia, Bicudo entrou para o curso de graduação em Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Durante as aulas da faculdade, Virgínia manifestou interesse pela psicanálise e pelas ideias de Freud. Foi lá na ELSP que Bicudo conheceu Durval Marcondes, fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise, dando início a um trabalho de difusão do campo clínico e de investigação dessa área de estudo.

Sociologia é relação de gente com gente. Mas as pessoas não se dão bem. Então, é preciso uma ciência para ajudar as pessoas a se darem melhor. Isto foi a Escola de Sociologia e Política. Quer dizer, socializar indivíduos.
Virgínia Leone Bicudo

Ela se formou em 1938, tornando-se a única mulher do curso a obter o título de bacharel naquele ano. Mais tarde, na mesma instituição, começou a dar aulas ao lado de Durval nas disciplinas de Higiene Mental e Psicanálise. Em 1942, ainda na ELSP, ingressou no mestrado, onde começou a trazer discussões sobre racismo, baseadas em experiências pessoais, para os estudos de psicanálise. Com a dissertação “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, primeiro estudo sobre o tema defendido no país, ela debateu a existência do preconceito racial mesmo com a diminuição de diferenças sociais.

(SBSSP/Reprodução)

Com seu trabalho, em 1944, fundou o Grupo Psicanalítico de São Paulo, precursor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Um ano depois, em 1945, Bicudo conquistou o cargo de professora assistente de higiene mental na Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Seus estudos lhe renderam um convite para integrar o Projeto Unesco em São Paulo, um conjunto de pesquisas feito por professoras de diversas instituições sobre as relações raciais.

Devido à prática clínica e a suas iniciativas de promover a psicanálise pelo intermédio de artigos jornalísticos, Bicudo foi publicamente acusada de exercer medicina ilegalmente, durante o I Congresso Latino Americano de Saúde Mental, em 1954 – a profissão de psicólogo só foi regulamentada em 1962.

Analista didata eu já era. Mas eu tinha consciência de que precisava estudar para fazer jus ao nome.
Virgínia Leone Bicudo

Em 1955, mudou-se para Londres, onde permaneceu por cinco anos estudando sobre psicanálise infantil. Ao retornar ao Brasil, assumiu a direção do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, onde atuou por 14 anos. Na década de 1970, Virgínia também figurou como uma das fundadoras da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Virginia deu continuidade ao seu trabalho clínico até três anos antes de sua morte. A pesquisadora morreu em 2003, aos 93 anos. Apesar do seu pioneirismo, Bicudo é pouco reconhecida no Brasil. Sua tese de mestrado, por exemplo, só foi publicada 65 anos mais tarde.

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