Dia internacional da Mulher: as lições de uma militante de 95 anos

Maria dos Santos Soares participou da versão carioca da performance feminista “Um violador em teu caminho”. Em vídeo, ela fala sobre o racismo que já sofreu e conta como superou seus próprios preconceitos para abraçar as causas feminista e LGBT

Por Carla Nascimento, do O Globo

Maria Soares, a Dona Santinha, ativista de 95 anos que inspira a luta de feministas mais jovens por direitos (Foto: Fernando Lemos)

Dezenas de mulheres cantavam contra o estupro em um ato na Cinelândia, Centro do Rio, na noite de 3 de dezembro 2019. “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”, diziam, em uníssono. Em meio ao coro, no entanto, um rosto chamava atenção: Maria dos Santos Soares, a Dona Santinha, como é chamada pela família. Aos 95 anos, ela entoava a letra e executava a coreografia que aprendera horas antes ao lado de pelo menos outras quatro gerações de mulheres.

Seu rosto se tornou símbolo de resistência durante as manifestações por justiça após a morte de Marielle Franco, em 2018, quando subiu no caminhão usado por manifestantes, na mesma Cinelândia, e disse: “Eu sei quem matou Marielle. Quem matou Marielle foi o sistema. Alguém que armou a mão daquele atirador para calar uma voz que defendia minorias”. Embora Santinha já militasse nos encontros políticos e manifestações desde 1984, foi a partir daí que se tornou uma influencer do mundo real, celebrada e parada para selfies em passeatas. O reconhecimento nas ruas também ganhou caráter oficial com homenagens, entre elas a Medalha de Honra ao Mérito Desembargadora Ivone Caetano, concedida pela OAB-RJ, e a Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A próxima já tem data marcada: no dia 21 de maio, Maria Soares voltará a subir as escadarias da Alerj, que já foi palco de tantos protestos, para receber a Medalha Tiradentes.

Maria está em tantas manifestações quanto pode, desde as de movimentos feministas, antirracistas e LGBTQ+ a mobilizações contra remoções e privatizações. Certa vez (ela conta, sem citar o ano), em um protesto na Cedae, lembra-se de ouvir a multidão cantando “E se assinarem o pacotão, nós paramos a nação” e pensar “Não para nada. Tem que parar todo mundo para parar a nação. Um grupo só não consegue”. Talvez o pensamento no coletivo ajude a explicar o hábito da enfermeira aposentada de sair da própria bolha para abraçar tantas causas. Mas o ponto de partida na sua trajetória de militância, no entanto, foi uma tragédia pessoal: a morte do irmão.

Filiado ao Partido Comunista, perseguido e preso inúmeras vezes durante a ditadura militar, o irmão de Santinha morreu em 1984, antes de ver a democracia ser restabelecida no Brasil.

— Estava no hospital trabalhando e o acompanhando à noite. Quando ele morreu, segurei na mão dele e disse: vou seguir a sua luta. Então eu procurei a célula do PC do B, mas achei muito rígido, e eu gosto de ser livre. Fui ao MDB e não sei o que houve, mas não me inscrevi. O terceiro partido que procurei foi o PDT, na época do Brizola. Peguei o estatuto para ler e tinha a quarta cláusula, que era pelos negros. Pensei “esse é meu partido” e me inscrevi — narra a militante, que passou a ir às ruas para além da política partidária, como forma de expiar o que chama de seu “início de preconceito”.

Maria Soares nasceu em 19 de abril de 1924 em Além Paraíba, Minas Gerais, terra onde passou boa parte da infância. Ficava sabendo das notícias por meio do jornal “O lar católico”, que o pai, analfabeto, comprava para informar a família. Cresceu sem ouvir falar em feminismo — as mulheres só passariam a ter direito ao voto em 32, quando ela tinha 8 anos — e menos ainda de racismo, embora as desigualdades sempre a tivessem incomodado. “Deixa Deus com seu mundo”, ouvia de sua mãe, em uma tentativa de apaziguar a mente questionadora da filha. Com o tempo, afastou-se da religião. “Não concordo com esse Deus que me ensinaram”, afirma.

— Não sei se é porque meu início foi de preconceito, agora acho que tenho a obrigação de me redimir e ajudar outras pessoas. Por exemplo, a comunidade LGBT. Como religiosa, a gente abominava, era contra. Agora estou de mãos dadas com eles — conta ela.

‘O feminismo é um movimento necessário’

Quando chegou a vez de o Rio, no fim do ano passado, reproduzir os protestos contra o estupro que começaram no Chile e tomaram conta do mundo, dona Santinha não hesitou. Ela tinha acabado de ler sobre o número de vítimas de abuso sexual em São Paulo e, motivada, sentiu que deveria agir. Uma parte da manifestação, no entanto, a deixou desconfortável:

— Foi um ato muito bonito, mas eu não sou muito moderna… É porque eu não gosto de ofender ninguém. Então tinha uma cena que dizia “O estuprador era você”, aí parecia que era para um daqueles que estavam ali. Mesmo assim, achei o ato bonito — diz Maria, que vai completar 96 anos em abril.

Para ela, o movimento feminista é uma resposta necessária diante do aumento de casos de violência contra a mulher.

— O que fazem com as mulheres não é justo. Fico pensando o que leva os homens a matarem tanto as mulheres, estuprarem. Isso acaba com a vida da pessoa. Não sei se antigamente não vinha à tona, se o pessoal não denunciava, mas agora está demais — completa a enfermeira.

Maria não sabe explicar de onde vem tanta disposição para protestar, mas tem certeza que “não adianta nada falar mal do governo” do sofá de casa e que o carinho recebido nas ruas a mantém em movimento.

— Eu continuo indo, acho que a gente tem que ir, tem que fazer algo. Tem dia que estou muito fraca, mas me animo porque já vi tanta gente dizer que vai por minha causa. Uma moça me disse que veio de Belo Horizonte, que nunca tinha militado antes. Acho que alguma coisa vale o sacrifício —, conta a militante que, nesses 36 anos de luta, enfrenta também o próprio medo de protestar:

— Eu me exponho muito e isso incomoda, né? Mas faço isso porque acho que alguém tem que falar. E uma pessoa de 95 anos não faz muita falta se levar um tirinho na testa. Triste é essa mortandade de jovens todo dia, que podem dar muito ainda. Eu, indo agora, vou tranquila. Acho que fiz o que podia, o que acho certo. Errando, acertando, caindo, levantando — completa.

‘Parei de ver TV porque só tinha branco’

Há 10 anos Maria não tem aparelho de TV. Ela cansou de esperar para se ver representada na tela e, apesar de sentir que houve melhora na quantidade de pessoas negras em postos de trabalho e posições de destaque, ainda não é o que espera da programação de um país de maioria negra e parda.

— Às vezes, eu esperava 30, 40 minutos, mas só tinha branco na televisão. Isso quando a maioria da população é negra. Por que isso? Mesmo assim já melhorou. Antigamente, eu andava 10, 20 farmácias e não encontrava um preto. Para comprar boneca, andava em 50 lojas e não tinha. Agora tem uma bonequinha preta. Fazer o quê? O mundo está nas mãos dos brancos — diz ela, que perdeu a conta de quantas vezes foi vítima de racismo:

— Já fui do tempo de chegar em uma loja ali no Centro, cujo nome esqueci, onde me disseram “Senhora, aqui a gente não atende negro”. Hoje pode até não querer, mas não dizem mais isso. Alguma coisa mudou — reflete ela, que completa: — Eu acho que são os sistemas, não são as pessoas que comungam com essa desigualdade.

No final da entrevista, o fotógrafo Fernando Lemos, um homem branco, perguntou se podia se despedir de Maria Soares com um beijo. Ela consentiu, colocou a mão no rosto dele, e afirmou: “Veja que coisa mais bonita. Precisamos estar separados?”.

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