Virgínia Quaresma: negra e lésbica, a primeira jornalista de Portugal e do Brasil

O número de mulheres jornalistas aumentou significativamente nas últimas décadas. De acordo com uma pesquisa feita pela Universidade Federal de Santa Catarina, intitulada  “Perfil dos Jornalistas Brasileiros (2021)”, que contou com a participação de mais de 7 mil respondentes, as mulheres são maioria na profissão. O estudo aponta que 58% dos profissionais são do sexo feminino, sendo 68% pessoas brancas. O número de pessoas negras também aumentou, contabilizando 30% dos entrevistados. 

Embora preponderante atualmente, durante muitos anos, a atuação de mulheres no jornalismo brasileiro era praticamente inexistente, sendo o ofício quase exclusivamente masculino. As próprias empresas jornalísticas, inclusive, eram estruturadas para receber apenas homens, beirando ao absurdo de sequer sanitários femininos existirem nas instalações besuntadas por tabaco. Mulheres redatoras, repórteres, editoras? Nem pensar! Nem pisar no santuário redacional elas podiam; acesso negado. 

A profissionalização das mulheres era alvo de preconceitos, disseminados em diferentes setores da sociedade. Esse cenário começa a mudar na segunda metade do século XIX, quando elas cruzam a fronteira que interditava suas vozes e fundam alguns periódicos, dirigidos exclusivamente por mulheres, sobretudo na chamada “imprensa independente”.

O primeiro periódico brasileiro feminino foi lançado em 1852, deixando explícito destinatário e chefia: Jornal das Senhoras. Criado por Joana Paula Manso de Noronha, argentina radicada no Rio de Janeiro, circulou por três anos. O editorial de estreia, publicado em 1 de janeiro, quinta-feira de réveillon, estampava a linha jornalística: “o jornal das Senhoras […] tem a vontade e o desejo de propagar, e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento social e para a emancipação moral da mulher”. Embora dirigido por “senhoras”, os repórteres e redatores eram todos homens.

A primeira mulher a trabalhar como repórter e redatora seria conhecida seis décadas depois, no primeiro quartel do século XX, e seu nome era Virgínia Sofia Guerra Quaresma. Foi ela quem destrancou os portões do jornalismo por onde passaram milhares de outras mulheres, primeiro em Portugal e depois no Brasil. É sobre sua trajetória que nos deteremos a partir de agora. 

Nascida em 1882, na cidade portuguesa de Elvas, região do Alentejo, há registros escassos sobre seus primeiros anos de vida. Filha de Ana de Conceição Guerra e Júlio César Ferreira Quaresma, tinha duas margens do Atlântico em seu DNA: africana (lado materno) e europeia (lado paterno). Rigoroso no trato, Júlio Quaresma era oficial de cavalaria do exército português, posto que galgou devido aos serviços prestados à monarquia constitucional lusitana. O empenho do patriarca renderia, anos depois, o posto de general e comandante militar das tropas açorianas. Ana Guerra dedicou a vida ao lar, equilibrando afazeres domésticos e compromisso com os filhos. Nascida na mesma cidade de Elvas, descendia de africanos traficados para Portugal pelo comércio de escravizados.

Embora nascida num país regido pela batuta monarquista, Virgínia Quaresma aprendeu desde a adolescência as notas republicanas tocadas abertamente em sua casa. Seus dois irmãos, também militares, eram inimigos do regime instituído, tinham fortes convicções contrárias ao império, participando frequentemente de agitações anti-realeza. Esse ambiente doméstico temperou o caldeirão ideológico em que Virgínia decidiu se alimentar. Mirando o alvo onde apontaria sua artilharia, Virgínia empenhou-se na luta pelo direito de voto feminino, pela erradicação da discriminação de gênero e pela extinção de barreiras jurídicas e sociais que bloqueavam a emancipalçao da mulher na sociedade portuguesa da virada do século passado. 

Ao completar 21 anos, formada num dos principais colégios da Península, ingressou no Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa, cujas salas de aula, refeitórios e corredores eram majoritariamente masculinos. Dinamitando interditos desde muito cedo, seu nome figura entre as primeiras mulheres bacharéis em Letras não apenas na renomada Universidade, mas em Portugal. Saiu da faculdade para alfabetizar crianças nas aldeias lusitanas, ofício exercido com dedicação e dificuldades por anos a fio.

Desgastada pelas agruras materiais impostas pelo magistério, Virgínia decidiu enveredar pelo jornalismo. Desde os tempos da Faculdade de Letras, mobilizava intelecto tanto para tarefas estudantis como para publicar textos em periódicos locais. Conhecendo as corredeiras do professorado, decidiu navegar em outra canoa: seria jornalista; aliás, a primeira mulher a exercer essa profissão em território lusitano.

Virgínia tinha a verve da escrita, fazia da pena e da tinta instrumentos cirúrgicos para perscrutar as entranhas da sociedade portuguesa. Seus textos eram ácidos, polidos, didáticos visando atingir o maior número de pessoas possíveis num país mergulhado no analfabetismo. A potência de seus artigos, paulatinamente, começaram a ganhar destaque, espalhando-se pelos diferentes rincões do país. Ela soube explorar meticulosamente a projeção que gozava, amealhando prestígio, recursos e reconhecimento que a catapultariam para o primeiro plano do cenário nacional. 

A carreira como jornalista profissional começou em 1906, quando Virgínia aceitou uma proposta para trabalhar como repórter no Jornal da Mulher. Nele, escrevia sobre diferentes temas, mas o ingrediente principal que temperava suas ideias eram os artigos de opinião. Ela afiava a pena em busca de palavras adequadas e exemplos empíricos que justificassem cabalmente a urgência da elaboração de uma lei que regulamentasse o divórcio, a necessidade do voto feminino, a importância da equiparação salarial e das leis trabalhistas entre homens e mulheres, bem como diferentes demandas da mulher. Foi no Jornal da Mulher, inclusive, que ensaiou seus primeiros artigos sobre o vírus do racismo contaminando a corrente sanguínea da sociedade portuguesa.  As propostas de Virgínia invadiam escolas, repartições públicas, empresas privadas, bodegas e espaços outrora vedados pelos tapumes do conservadorismo. 

Dois anos depois da estreia no Jornal da Mulher, Virgínia Quaresma foi convidada a assumir o cargo de redatora-chefe da revista Alma Feminina dirigida pela aclamada poetisa portuguesa Albertina Paraíso. Rapidamente, foi escalonando funções e chegou ao prestigiado posto de secretária de redação. Nesse período, os textos de crítica social ampliaram o raio de circunferência abordando alcoolismo, violência infantil, desemprego, desigualdades sociais, etc. Em paralelo ao trabalho na Revista, Virgínia colaborava sazonalmente com outros veículos de comunicação de peso que lhe renderam notoriedade, mas também desavenças. O texto publicado pelo periódico Vanguarda, em 15 abril de 1908, foi uma granada lançada na sede da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Implacável, Virgínia acusava indiretamente as feministas da organização de terem visão míope, imprecisa e desarticulada da mulher portuguesa, estimulando as correligionárias a abandonar “exaltações ridículas, idéias prematuras, combates tão violentos” que seriam inúteis e  contraproducentes  na luta emancipatória feminina. O mal-estar gerado pelo furioso artigo azedou definitivamente a relação da articulista com uma das principais associações femininas locadas em Portugal.   

A ascensão da carreira jornalística de Virgínia foi meteórica. Seus textos estampavam diferentes jornais de projeção nacional, incluindo o influente O Século, em que não apenas escrevia semanalmente como ocupou a chefia de Informações Gerais e Reportagens Especiais. Ela se destacava tanto pelas matérias que produzia quanto pelo gênero – única mulher até então a exercer a profissão. 

Gozando de remuneração satisfatória , distinção entre os pares, transitando livremente entre as redações, redigindo notícias mornas e bombásticas, realizando entrevistas com personalidades influentes, escrevendo reportagens explorando o contraditório para melhor informar seus leitores, Virgínia Quaresma ganhou o epíteto de “única profissional feminina de imprensa”. Havia poucas mulheres escrevendo na imprensa, mormente circunscritas em revistas literárias, periódicos femininos, folhas de instrução e jornais de orientação republicana, mas essa presença não implicava pagamentos, nem vínculo profissional. Eram colaboradoras de nicho, designadas “publicistas” sem nenhum elo trabalhista. 

Em uma entrevista, quando interpelada por profissões exercidas por mulheres, Virgínia expressou o doce sabor que experimentava:  “Estou satisfeita com a carreira que escolhi, nem quero outra. Da vida do jornal é a reportagem a que prefiro. Agradam-me o movimento, a variedade, o imprevisto e, por isso, a reportagem tem, para mim, um atrativo muito especial, sobretudo quando ela oferece dificuldades a vencer”. Inquirida sobre os desafios da profissão, prossegue a entrevistada: “Os estratagemas, os artifícios, os disfarces de que às vezes é necessário lançar mão para conseguir o que desejamos saber ou obter, encantam-me. Gosto da dificuldade, creia, chego mesmo a ter por ela o culto. Além disso, a vida do jornal obriga-me a acompanhar a par e passo, o movimento político e social.” Categórica e sugestiva, guardou a cereja do bolo para o final: “As questões políticas e, sobretudo, as sociais, merecem-me todo o interesse. (…) A mulher, porém, que queira enveredar por este caminho tem que ter uma educação especial, tem de ser despida de certos preconceitos para poder suportar os preconceitos dos homens”. 

Culta e irreverente, Virgínia Quaresma geriu, durante décadas, sociabilidades contraditórias, viajou muito, em lazer e em serviço, cavou e explorou oportunidades em benefício próprio e de outros. Numa sociedade atolada no pântano da discriminação de gênero, conservadora e religiosa, precisou lutar por espaços devido a sua condição de mulher ao mesmo tempo em que ocultou sua orientação sexual e o desejo nutrido por parceiras do mesmo sexo. A sua homossexualidade era um assunto ocluso, tratado no foro privado, circunscrito a pessoas intímas, encoberto para amigos, colegas, leitores e, sobretudo, opinião pública.

Os relacionamentos homoafetivos encampados permaneceram nas sombras da discrição, borrados pela névoa do preconceito inclemente de uma sociedade que criminalizava os homossexuais e arquitetava muros intransponíveis àqueles que foram desclassificados de suas cidadanias. Somente em meados de 1920, aos 38 anos, que sua identidade sexual foi involuntária e publicamente conhecida após a revista Sempre Fixe, que vendia centenas de exemplares satirizando e discriminando homossexuais, destacar numa matéria que a “jornalista prodígio Virgínia Quaresma” mantinha relações conjugais com mulheres. 

Chegada ao Brasil 

Certa manhã, enquanto tomava café num restaurante parisiense, “sugeriu-me a ideia de atravessar o oceano e ir exercer a minha profissão até ao Brazil, cujos encantos alguem me acabára de descrever”, relatou Virgínia. Pesou na decisão  a pressão da sociedade portuguesa sobre condutas homossexuais, punidas com pena de prisão pela Lei da Mendicidade. Ademais, a crescente hostilidade contra monarquistas, muitas delas provindas de antigos amigos inconformados com a reorientação ideológica de Virgínia que decidiu abraçar os valores monárquicos e abandonar o republicanismo, empurraram a jornalista para um labirinto difuso e tempestuoso. 

Comprou os bilhetes, arrumou as malas e zarpou da metrópole francesa, onde passava férias, rumo à capital do Brasil. Em 16 de setembro de 1912, uma segunda-feira, aportou no cais do Rio de Janeiro o imponente navio Arlanza. Dele, efusivas e exaustas, ouvindo gritos e assobios da multidão afoita, desembarcaram centenas de pessoas, inclusive a respeitada jornalista Virgínia Quaresma lado a lado com Maria da Cunha, poetisa portuguesa com quem dividia a casa, os sonhos, a vida.

A notícia sobre a chegada da ilustre jornalista havia sido antecipada com certo alvoroço três meses antes. A presença daquela personalidade em território nacional despertava curiosidade e entusiasmo, sobretudo porque entre os correligionários brasileiros nenhuma figura feminina havia ocupado, até então, o posto de “mulher repórter”. Aliás, o próprio termo “mulher repórter” causava estranheza, embaraçava o vocabulário, por tratar-se de substantivo reservadamente masculino:  “D. Virginia Quaresma vem ser redactor ou reporter entre nós. Certo é a primeira vez que vamos ter nas salas das nossas redacções uma mulher jornalista, exclusivamente jornalista, fazendo “enquetes”, assaltando politicos para entrevistar, cavando activamente ‘furos’”, publicou a Gazeta de Notícias no dia 20 de julho de 1912. Açodados com a chegada, o jornal prossegue: “Ah! vae ser interessante uma mulher de lapis em punho e as tiras de papel, tomando notas nas delegacias, nos corredores da Camara, nos gabinetes dos politicos, nos passeios da Avenida… E depois, á noite, quando na sala iluminada das redacções palpitar, numa febril actividade, toda a energia de um dia de trabalho, entrar D. Virginia Quaresma e sentar-se na sua mesa para tomar parte nessa soberba eclosão”. 

 A passagem pelo Brasil foi promissora. Contratada pelo jornal A Época, o periódico sublinhou em primeira página a nova profissional da equipe de jornalistas que, vejam só, seria responsável por introduzir “uma nota de modernismo na imprensa carioca”. Doravante, a primeira repórter feminina assentada no Brasil, negra e lésbica, passaria a elaborar matérias que iam desde entrevistas políticas, reportagens sobre moda, artigos de opinião até crônicas sobre o Brasil e sua terra natal, ou seja, Portugal.

Os leitores brasileiros acolheram a repórter lusitana com certo receio, desconfiados da viabilidade daquele ineditismo. O passar do tempo, porém, desanuviou a paisagem com matérias interessantes, inteligentes e corajosas que passaram a ser aguardadas com desassossego. Nos três anos que permaneceu no Brasil, Quaresma foi disputadíssima e também trabalhou no Correio da Manhã e na Gazeta de Notícias, deixando um espólio de renovação vigente até o fechamento dos respectivos periódicos. 

Embora parte dos textos que escrevia fossem apócrifos, os leitores sabiam decifrar a mão que manuseava a pena para redigir missivas sapienciais. Foram vários furos e matérias memoráveis que inscreveram o nome de Virgínia no mural do pioneirismo jornalístico brasileiro. Entre essas matérias, sublinham-se a prisão de João Barreto, encarcerado após reportagem de Quaresma comprovar o feminicídio praticado pelo magano; o texto que escreveu encenando a fuga de um ladrão com dedo em riste e altivez destemida acusando policiais de terem surrupiado o dinheiro que ele, o larápio, havia roubado. Mas havia aquela que, segundo a autora, encantava seus olhos: a cobertura atenta e solidária à greve dos trabalhadores da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro. Cotidianamente, ombro a ombro com os grevistas, compreendendo suas demandas e necessidades, elaborou uma reportagem brilhante, fundamentada e irretocável. Findada a paralisação, recebeu aplausos copiosos e abraços fraternos dos trabalhadores que tiveram suas reivindicações atendidas, em parte, devido à visibilidade que as matérias jornalísticas deram ao caso. 

Ao retornar para Portugal em 1915, Virgínia continuou contribuindo com veículos brasileiros relatando episódios de interesse público ocorridos em território europeu- tornou-se correspondente dos jornais brasileiros. Tinha visão privilegiada dos acontecimentos devido aos vários contatos mantidos com peças influentes do tabuleiro político europeu. Assim, foi a primeira jornalista a noticiar que a Alemanha havia declarado guerra a Portugal em 9 de março de 1916, antes mesmo de o ministro da defesa de seu país anunciar aos lusitanos. Três anos depois, terminada a guerra, foi laureada com o Grande Oficialato da Ordem de Santiago – uma das maiores honrarias concedidas a civis em território português.

Durante os anos em que o estrondo de balas e canhões regiam as relações ambíguas entre lusos e alemães, Virgínia cerrou fileira em outro front. Municiada com o arsenal de sempre – a saber: pena, tinta e papel- escreveu textos exortando a paz, convocando compatriotas a serviços voluntários. No entanto, Virgínia não escapou ao chauvinismo encetado pela guerra, algo que fazia em demasia nas linhas nacionalistas que redigia com esmero e obstinação. Com os recursos derretendo na fogueira da guerra, ela inovou ao introduzir publicidades empresariais nos periódicos, escritas por jornalistas, e pagas por anunciantes.

Um golpe duro nocauteou Virgínia, que amargou a morte precoce de sua companheira Maria da Cunha em tratamento há anos contra uma grave doença degenerativa. Após o período de luto, decidiu seguir em frente impulsionada pelas várias causas que defendia. Em 1918, fundou um birô chamado Escritório de Publicidade Latino-Americano, responsável pelos anúncios publicitários de jornais portugueses, brasileiros e de outras paragens mundo afora. Um ano depois, ingressou nas engrenagens das agências de notícias tornando-se diretora da filial de Lisboa da brasileiríssima agência Americana. Fundada no Rio de Janeiro, a Americana tinha o objetivo de divulgar informações do Brasil e outros países da América Latina no continente europeu. O sucesso da empreitada foi tamanho que Virgínia decidiu fundar a própria agência, que viria a ser a primeira empresa de notícias internacionais exclusivamente portuguesa sediada em Lisboa. 

Os textos de Virgínia Quaresma viajavam pelo Atlântico, mas ela também transitava frequentemente entre Portugal e Brasil. Esse fluxo facilitado, inclusive, engendrou responsabilidades diplomáticas. Durante os preparativos para os festejos da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, celebrado em 7 de setembro de 1922, a empresa de Virgínia amealhou a feitura do catálogo do evento, a tecitura de contatos com a imprensa internacional, bem como a costura de contratos com duas centenas de jornalistas que lhe renderam ainda mais notoriedade num evento basilar e memorável da sociedade brasileira. 

Quando voltou ao Brasil para os preparativos da Exposição, foi tragada pelos assuntos que tanto embalavam sua jornada. Com agenda transbordando e compromissos diários, fez questão de colaborar ativamente no Congresso pelo Progresso Feminino, presidido pela feminista Bertha Luz, compondo o heterogêneo grupo de trabalho “Carreiras apropriadas à mulher”.

No retorno a Portugal, Virgínia conheceu a escritora e jornalista Maria Luiza Vallat da Silva Passos, que doravante seria sua companheira por duradouros 30 anos. Morando sob o mesmo teto, a relação entre ambas refletia a hierarquia marital característica daquela primeira metade do século XX. Maria Luiza, notável pelos seus poemas e matérias jornalísticas, paulatinamente abandona o ofício restringindo-se à esfera privada, cuidando exclusivamente de tarefas domésticas, cozinhando, passando e lavando roupas e dedicando-se à companheira. A influência que exercia em determinados círculos de poder e os jornais em que publicava ficaram borrados pelo nevoeiro espesso do relacionamento a qual estava imersa. A postura de Virgínia contribuiu, aliás, foi decisiva para o ofuscamento de sua cônjuge. Pari passu a sedimentação de sua carreira, cada vez mais distinta e reconhecida, gozando de apanágios assegurados aos homens, Virgínia incorporou a postura masculina como um passaporte de acesso às insígnias de poder daquela sociedade patriarcal. Ela não apenas assumiu postura, liderança e autoridade masculina, como passou a se vestir, trabalhar e se relacionar como faziam os homens daqueles tempos bicudos.

A masculinização de trejeitos, vestimenta e porte de Virgínia foram aspectos nevrálgicos que carimbaram sua aceitação em espaços exclusivamente ocupados por homens. Numa postura bem pouco feminista, ela acabou suplantando e subjugando sua própria companheira de vida, despersonalizando e inviabilizando a existência de outra mulher. Esse aspecto da trajetória da jornalista evidencia como o poder instala-se tacitamente em cada ser humano, vai dirimindo potenciais ameaças ao seu funcionamento e transforma o discurso rebelde em combustível para perpetuação de desigualdades – nesse caso, entre homens e mulheres.  

Outro elemento complexo na trajetória de Virgínia Quaresma foi seu ufanismo aguerrido e seu alinhamento irrestrito ao salazarismo. Captando a mudança dos ventos, resolveu navegar sob a bandeira do colonialismo abandonando plenamente os ideais republicanos propalados durante a adolescência e parte da vida adulta. 

Admiradora confessa do ditador António de Oliveira Salazar, ela ajudou a cimentar a estrada de horrores por onde trafegou a ditadura sanguinária de seu país. A antiga feminista, rebelde republicana, agora advogava os interesses de instituições conservadoras, nacionalistas e afinadas pelo diapasão do Estado Novo português.

Em meados de 1954, durante o processo de independência de Goa, na Índia, Virgínia escreve um artigo exacerbadamente patriótico e furioso explicando que a sublevação dos rebeldes indianos seria “uma brutal e covarde agressão contra o sagrado direito que assiste a Portugal, naquele pedaço da Ásia”, isso porque, para ela e seus conterrâneos portugueses, “aquela pequena nesga lusa na India, representa um luminoso marco da História”, páginas preciosas da “epopéia imortal” que Portugal teria escrito “para tôda a humanidade”. 

Virgínia Quaresma esculpiu a estátua de si mesma de maneira ímpar. Sua independência econômica, seu protagonismo jornalístico, bem como os círculos sociais e as relações de poder que teceu criaram um escudo contra determinadas discriminações sofridas aos magotes por milhares de outras mulheres (negras, lésbicas e pobres). Sua posição no topo da hierarquia social rendeu-lhe privilégios nunca antes desfrutados por suas congêneres.

Fotografia de Virgínia Quaresma tirada meses antes de falecer.

Virgínia faleceu no dia 26 de outubro de 1973, vitimada por um ataque cardíaco, com longevos 91 anos de idade, cabelos grisalhos, olhar sereno e a pele desgastada pela ação implacável do tempo. Morreu ao lado de suas irmãs, ambas viúvas, com quem compartilhava não apenas a moradia em Lisboa, mas sobretudo opiniões, reminiscências e afetos. Diversos periódicos noticiaram sua morte, homenageando àquela que havia sido mais que jornalista: foi a primeira.

Como mulher, negra, lésbica e jornalista deixou um legado potente, fascinante, ambíguo e ambivalente como o de qualquer outro ser humano. 


* Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor dos livros Ensaios Incendiários sobre um mundo normatizado (2021) e Texturas e Veredas (2022).


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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