As dores psíquicas e a morte de homens pretos: quando vão entender que o racismo é a causa-mor?

No final de um domingo tranquilo, o último de outubro, após um final de semana movimentado e festivo em que minha família celebrou a vida da integrante mais nova, veio a notícia que tirou toda a alegria que nos inundava. Meu primo falecera, aos 51 anos, em decorrência de um traumatismo. 

A causa aparente foi uma queda sofrida por alguém em estado de embriaguez. Sim, parte dos seus 51 anos foi de luta contra este mal que atravessa a vida de homens da família: o alcoolismo. Desde meu avô materno, gerações seguintes sofrem direta e indiretamente com os danos gerados pelo uso abusivo do álcool, os homens particularmente. Todos pretos e de baixa instrução para os quais a vida nunca fora um mar tranquilo.

Para mim piadas sobre bêbados, algo que está no DNA do humor brasileiro, nunca foram engraçadas pois desde cedo passei a enxergar isso que arranca risos e rotula pejorativamente os sujeitos como uma doença devastadora. Convivi com meu tio, que aos 84 anos chora pela morte do filho, acometido por esta mesma doença. Como era triste vê-lo desacreditado, julgado, humilhado devido ao descontrole com bebida alcoólica. A imagem do “cachaceiro” sem valor era a que lhe foi imposta, mas sabia que aquele homem em seus momentos de sobriedade era uma pessoa linda, dócil que jamais teria coragem de proferir os absurdos que a embriaguez o impulsionava a fazê-lo. Após a crise, vinha a culpa, o constrangimento, a promessa de que aquilo não mais iria se repetir. Compromisso quebrado com o porre seguinte. Assim, laços familiares foram arruinados e passou a viver como desvalido, sem porto seguro, fazendo bicos como pedreiro que, pelo descrédito causado pela bebida, perdia trabalhos.

Percebam: a herança maldita de pai para filho. Antes, meu avô materno também marcara negativamente a vida familiar pela violência desencadeada pela embriaguez. Minha mãe, aos 77 anos, possui marcas físicas e emocionais  do que sofreu com o pai alcoólatra, um homem que, segundo ela, era o pai mais carinhoso do mundo quando estava sóbrio. Dos 6 irmãos que ela teve, 4 desenvolveram a doença do alcoolismo. Homens pretos, de baixa instrução, que tinham nos ofícios de pedreiro e pequenos lavradores a forma de ganhar a vida. Cada um dos meus tios tiveram, ao menos, um dos filhos igualmente alcoólatras. 

Não. Isso não é mera coincidência tampouco problemas de caráter. 

Trata-se de mais uma das correntes do racismo. Estudos recentes trazem como dado científico algo que eu já constatava a partir da minha história familiar. A discriminação racial é um dos principais fatores que pode levar a população negra ao uso nocivo do álcool. Embora a análise tenha sido realizada com negros estadunidenses, podemos inferir que também no Brasil, cuja sociedade fora forjada a partir de critérios raciais e de propriedade, esta mesma discriminação seja um potencial estressor, que contribui para o surgimento de diversos problemas para a saúde física e mental, bem como comportamentos de risco associados ao consumo de álcool. Carregar o peso do preconceito devido a crenças, atitudes, arranjos institucionais e atos percebidos e/ou internalizados da comunidade negra provocam situações de estresse a esse grupo, levando muitos a buscar recursos de enfrentamento diversos, incluindo o uso do álcool, diz o estudo.

Há que se considerar também o adoecimento físico e psíquico decorrente do uso das drogas ilícitas, além da flagrante seletividade penal que encarcera jovens e adultos negros em massa, produto do que o Estado vem praticando em sua malograda política repressiva de combate às drogas expressa na lei 11.343/2006 que ao longo de todo esse tempo transferiu  grande poder nas mãos do agente policial contribuindo para a ocorrência de injustiças e para o aumento de prisões, mesmo que o indivíduo seja portador de pequenas quantidades de drogas ilícitas (BRAGA, 2017; CAMPOS, 2015). A mesma lei que agora mobiliza setores da sociedade, por intermédio de políticos da via conservadora à direita, a lutarem para que as coisas permaneçam desta forma ou endureçam ainda mais  porque os alvos não estão entre eles.

No Brasil a saúde mental e o marcador de raça ganhou muito recentemente atenção institucional, pois só em 2011 o Governo Federal, por meio do documento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de 2011, notificou a persistência da raça ou do racismo como fator importante na produção de desigualdades no campo da saúde. Isso significa o reconhecimento de que a violência racial impacta a construção da identidade, posto que esta surge do olhar do outro, o sujeito tende a se ver de acordo com a legitimação do olhar dos que o rodeiam (GOMES, 2005). Assim, o olhar da sociedade sobre o negro, carregado de discriminação, de rejeição e de estigmas da racialidade operacionalizados pelo grupo pretensa e visivelmente hegemônico, abala de forma significativa a construção identitária desse sujeito e, por isso, a sua autoestima.

O “bebum”, o “drogado” tem cor e gênero.

As causas aparentes da morte da população negra, especialmente os homens, são doenças cárdio vasculares, hipertensão, cirrose hepática. A depressão com desfecho suicídio tem sido a mais nova epidemia entre a comunidade negra.

 Para a maioria da sociedade todas estas causas ainda são descontextualizadas do marcador de raça. Porém quem é negro sabe o que é viver sob constante suspeição, descrédito e falta de oportunidades. Ao ascenderem socialmente, pessoas negras são alvos do ódio que não tem outra fundamentação que não seja o rebaixamento da humanidade considerada incompatível com o novo padrão econômico. Vide o caso do influencer baiano Rodrigo Amendoim, uma tragédia anunciada nas redes sociais, ele deu todos os sinais de que estava desistindo… 

 O racismo é a causa mor, a raiz de todos os males que atingem nosso corpo e psique ,a que chamamos de alma. Naturalizar a dor da perda de homens negros de forma precoce atrelada a estigmas tem se constituído em uma das violências simbólicas a que estamos expostos.


*Sobre a autora: Historiadora, Mestra em Educação, pesquisadora das relações raciais e de gênero e suas interseccionalidades, professora da Educação básica ( Sec- BA) @profjosisouza


Referências

BARBOSA Isabelle Ribeiro, MIRANDA Kezauyn Aiquoc, (org). Raça e saúde [recurso eletrônico] : múltiplos olhares sobre a saúde da população negra no Brasil / organizadores, 1 arquivo : 2.7 Mb). – Natal, RN : EDUFRN, 2021. 274 p.

BRAGA, G. M. O impacto da nova lei de drogas no sistema carcerário brasileiro. 2017. 60 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017

CAMPOS, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2015

GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Antirracista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 39-62

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Atlas da violência 2019. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2019.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

A carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra…

De que vale a luta? De que vale a...

A resiliência semeando sonhos

Um menino negro retinto, pobre da periferia de São...

Masculinidade do Homem Negro

Sabemos que a masculinidade hegemônica é branca, e nossos...

Pelo direito de não sermos monotemáticas: pessoas negras, racismo e redes sociais.

Imagine poder acordar, partilhar momentos do seu dia, não...

para lembrar

Reflexões de uma mãe preta sobre os dias das mães

Há 02 dias, Hakim, meu primeiro filho, completou 07...

Último dia

Nas encruzilhadas, em cada ponta eu me sinto doer,...

Marte Um: Nossa Negritude Reluzindo Cinema

Every Nigger is a Star, canta Boris Gardiner. Mas...

Cultura: como Batuku e Cordel destacam a participação de mulheres e jovens

Cada país possui suas próprias expressões culturais. O cordel...

O quarto de empregada e a morte de Miguel

No dia 02 de junho de 2020 ficamos todos em choque com a notícia da morte de uma criança negra de cinco anos que,...

Sociedade civil apresenta propostas para agenda de Comissão de Direitos Humanos

Plataforma de Direitos Humanos e organizações filiadas apresentaram temas prioritários Enviado por Rodnei Jericó via Guest Post para o Portal Geledés Organizações da sociedade civil de diversos segmentos participaram...

O que nós temos a receber da política?

2020 é o ano da Pandemia da Covid-19, que impactou o mundo como não tínhamos notícias neste século. 2020 também é ano eleitoral no...
-+=