Existo, Resisto, Persisto

Costumo sempre dizer que o feminismo é um caminho sem volta; que uma vez feminista, para sempre feminista.

Mas por quê? A resposta é bem simples. É muito improvável que quando você desperte para toda a sorte de opressões a respeito do que é ser mulher, você nunca mais queira parar de lutar para o fim delas. E não se trata aqui de luta armada, mas sim, de luta amada, luta por reconhecimento, por justiça, por igualdade, por respeito; enfim, a luta nossa de cada dia, a luta por cada conquista, a luta por cada espaço.

Ser mulher é sentir dor diariamente, é sentir medo, é ser diminuída, é ser objetificada, é se mutilar para encaixar nos padrões.

Nós vivemos diariamente em teste perante à sociedade, que nos coloca em cheque todos os dias, ao nos cobrar, dia a dia, aprovação pelo fito popular (em especial pelo masculino). Além disto, temos que ser bem comportadas, educadas, cordatas. Mulher não fala alto, mulher não fala palavrão, mulher não senta de perna aberta, mulher tem que estar sempre de unha feita, mulher tem que retocar a raiz, mulher tem que usar cinta modeladora, mulher tem que se equilibrar em salto agulha, mulher tem que fazer depilação (afinal pelos são vistos como masculinos), mulher tem que ser magra, mulher tem que ser cheirosa, mulher tem que usar saia, mulher tem que saber cozinhar (e bem), mulher tem que arrumar a casa, mulher tem, mulher tem, mulher tem…

É uma série de deveres impostos diariamente para sermos aceitas na sociedade. Mas aí eu te pergunto, para qual sociedade? Para a sociedade patriarcal que continuamos dia após dia valorizando com os nossos atos; para aquela sociedade que, em pleno século XXI, ainda seguimos tentando ser mulheres modelos, sem conseguirmos nos desprender da mulher do século XIX, mas que, ao mesmo tempo, paralelamente a isso, acrescentou diversos deveres e responsabilidades em nossas vidas.

Neste sentido, além de tudo o que foi dito acima, nós ainda temos que administrar uma carreira profissional, sermos bem remuneradas, bem como equilibrarmos a difícil equação de sermos mulheres bonitas, boas profissionais, boas esposas, boas mães, boas filhas…

Não é à toa que os consultórios de psicanálise estão lotados de mulheres em crise, que a depressão cada vez mais vem se alastrando na sociedade e já é tida como um dos males do século. E o porquê é simples: não damos conta, não tem como dar conta de tudo. E precisamos entender que está tudo bem em não darmos conta, que é normal!

A imagem da mulher maravilha precisa ser desmistificada. Precisamos ser mulheres reais, empoderadas sim, mas reais! Não podemos achar que desempenhar mil papéis é normal, não podemos aceitar a cobrança de sermos perfeitas, pois é muito simples, não somos!

Somos seres humanos como qualquer outro. Não damos conta de tudo e temos que gritar isso. Temos que angariar o respeito por sermos simplesmente humanas, lutar pelos nossos ideais e desempenhar os nossos papéis, mas lembrando sempre que eles não são só nossos, pois os homens precisam ser chamados à realidade. Filhos e casa não são responsabilidades apenas da mulher, e o companheiro, aqui, tem que entender que divisão de tarefas não é auxílio, é corresponsabilidade!

Ok. Você me diz e me pergunta: Mas onde o feminismo entra nisso aí?

E eu te respondo em tudo. O feminismo nos faz perceber o quanto vivemos padrões impostos por uma sociedade patriarcal, uma sociedade que objetifica, coisifica as mulheres, uma sociedade que impõe diariamente códigos de postura, de vestimenta, uma sociedade que ainda hoje nos coloca na posição do segundo sexo, de um sexo menor, de um ser humano menor, com capacidades menores, com intelecto menor. E o feminismo, ao longo dos anos, vem brigando para que possamos nos soltar dessas amarras, para que possamos ser seres humanos de primeiro escalão, para que possamos ter direitos básicos e termos direitos de escolha!

Temos que lembrar que ainda hoje fazemos parte de uma sociedade que diz que o lugar da mulher é dentro de casa. Um bom exemplo desta realidade está no fato de que em 2016, uma das principais revistas do Brasil fez um editorial intitulado “bela, recatada e do lar”, em que claramente objetifica a mulher, a colocando como feita para a esfera interior, como se desbravar o mundo fosse papel unicamente masculino, cabendo à mulher o papel exclusivamente doméstico, o da dona de casa, mãe e mulher arrumada para o marido (e aqui eu abro um parêntese, nada contra se essa for a opção da mulher, mas tem que ser uma das opções, e não a única, pois aí é obrigação. E o feminismo existe para isso para que possamos ter escolhas!).

É preciso dizer que, ainda hoje, sofremos diversos preconceitos por sermos mulheres, eis que somos minoradas em determinadas profissões, temos nossa capacidade cognitiva colocada em questão e vemos homens tentando nos explicar o que acabamos de dizer apenas porque foi dito por uma mulher…e por aí vai. O mercado de trabalho ainda nos questiona diariamente por questões meramente de gênero, e os nossos questionamentos são muito maiores do que os feitos aos homens. Sem contar que a nossa capacidade está sempre sendo questionada, razão pela qual temos que provar, diariamente, que somos tão boas quanto os homens. Um erro nosso muitas vezes é imperdoável, já os masculinos, na maioria das vezes, são tratados como pequenos deslizes.

As mulheres, em pleno 2020, ainda recebem salários menores, ocupam menos cargos de chefias e lideranças e deixam de ser contratadas, porque poderão engravidar, porque possuem filhos, porque precisam cuidar da casa, porque poderão tirar a concentração masculina no ambiente de trabalho (sim, essa desculpa ainda existe).

Vivemos uma época em que as mulheres possuem mais qualificações do que os homens, além de se dedicarem mais à vida acadêmica e, mesmo assim, continuam subordinadas aos homens na vida empresarial; afinal, mulher não tem tino para negócios, dizem eles.

Andamos pra frente em vários quesitos, como humanidade, no qual o homem está mandando um satélite para Marte, mas que, em contrapartida, as mulheres ainda não podem andar sozinhas nas ruas sem sofrerem o risco de serem estupradas e mortas! A humanidade está conquistando o espaço e nós, mulheres, nem alcançamos ainda aquele direitinho básico de ir e vir.

A verdade é que ainda hoje vivemos uma sociedade calcada no patriarcalismo, na ideia da mulher como inferior, na concepção de que a mulher não é capaz, na triste afirmação de que somos cidadãos de segunda categoria!

Eu poderia entrar em várias questões da teoria feminista aqui, mas esse não é o intuito. O meu intuito aqui é apenas te mostrar que ser mulher vai muito além de existir, ser mulher é resistir a todas essas adversidades e persistir na luta, na eterna luta pela igualdade!

Por isso eu digo: existo, resisto e persisto! Seguimos, pois nossa luta é longa. Vamos juntas?

 

 Bianca Prado – Delegada de Polícia
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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