Durante o regime ditatorial vigente no Brasil entre 1964 e 1985, havia por parte dos militares uma grande preocupação com o que chamavam de “propaganda negativa externa”. Tal apreensão tinha a ver com qualquer assunto que se relacionasse à nação, em especial o que viesse a “travar” as relações comerciais ou mesmo aquilo que “manchasse” a imagem do país, expondo opiniões diferentes do que era divulgado lá fora pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), pela diplomacia e pela elite brasileira.
Era o que classificavam como “campanhas de difamação contra o Brasil”. E, de fato, são muitos os documentos nos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI) dedicados à representação do país, mostrando que havia uma ostensiva inquietação com os chamados “artigos injuriosos sobre a realidade brasileira” publicados no exterior.
No que dizia respeito às relações raciais, havia um grande empenho em fortalecer e reafirmar a ideologia da democracia racial, visto que esta era um dos sustentáculos ideológicos do estado brasileiro. Neste sentido, o “desejo modernizador” que impulsionou o desenvolvimento econômico nos anos da ditadura acentuou o destaque à política externa e ampliou os contatos com o exterior mediante o reforço do discurso que vendia para fora “a paz das cores”.
Precedido pelo Serviço Federal de Informações e Contrainformação (SFICI, 1956- 1964), o SNI, criado para supervisionar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e no exterior, funcionou durante os governos militares (1964-1985) como órgão de espionagem da ditadura. Com efeito, os órgãos de vigilância coordenados pelo SNI passaram a monitorar não só o que ocorria internamente no país, mas também o que acontecia lá fora, o que possibilitou aos militares acompanhar de perto, através de documentos sigilosos, matérias de jornais, noticiários e programas de televisão… Enfim, tudo o que saía na mídia interna e externa sobre a luta pelos direitos civis nos EUA, a luta pela libertação dos países africanos, as questões em torno do apartheid na África do Sul e tudo o que dizia respeito as questões raciais mundo a fora.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2011-2014) aponta uma rede de espionagem montada pelo Ministério das Relações Exteriores durante a ditadura militar. Essa rede de informações, formada pelo Centro de Informações do Exterior (Ciex) e pela Divisão de Segurança e Informações (DSI), possibilitou que os militares buscassem, através dessas agências, informações sobre os fatos ocorridos no que diz respeito ao racismo em qualquer parte do mundo. Essas notícias chegavam pela mídia e também por telegramas e documentos de caráter sigilosos ou confidenciais, a partir das solicitações de informações do governo brasileiro, em especial nos países onde as tensões raciais eram evidentes.
Os militares, preocupados com os seus opositores, se ocupavam deles, ainda que estes estivessem no exterior. Dessa forma, todos os seus passos e ações deveriam ser vigiados. Os órgãos de vigilância solicitavam do Ministério das Relações Exteriores informações sobre ativistas e ações do movimento negro em diversos países: Angola, Nigéria, Portugal, Nicarágua, Inglaterra e onde mais houvesse discussões em torno do racismo e que, de alguma forma, o Brasil fosse citado e principalmente como estava sendo citado. Assim, eram trocados telegramas entre as embaixadas com diversos pedidos de esclarecimentos sobre os eventos, agências financiadoras, assuntos discutidos nas mesas, os convidados e as falas de cada um sempre devidamente registradas.
A preocupação dos militares com grupos e indivíduos brasileiros em oposição ao governo que tinham contatos com o exterior era grande. O MRE monitorava toda presença de brasileiros fora do país, principalmente, aqueles já visados internamente como era o caso de Abdias Nascimento, cuja atuação e contatos fora do país foram registrados em inúmeros documentos do SNI. Havia por parte do regime, uma preocupação, em especial nas relações de Abdias com os países africanos, posto que eram cada vez maiores os interesses comerciais daqui com esses países e Abdias em suas falas e palestras não se furtava às denúncias sobre o racismo em relação a população negra no Brasil.
O monitoramento sobre Abdias Nascimento chama-nos a atenção para o fato de que a política externa brasileira estava marcadamente comprometida com a imagem racial internacional do país, projetada pelo “Brasil oficial”. Acompanhando de perto as ações deste órgão, Abdias afirmou que o Ministério das Relações Exteriores seria um dos órgãos mais racistas do Estado brasileiro.
No “Brasil oficial”, toda formulação da política externa brasileira e suas relações diplomáticas com os organismos internacionais teriam como pressuposto um país livre do racismo e, portanto, sem conflitos raciais, na contramão do que ocorria nos EUA e na África do Sul. No entanto, a partir dos anos de 1970, com a insurgência do movimento negro no país, a questão racial tornou-se motivo de atenção especial dos militares, pois estavam preocupados com o olhar das nações estrangeiras sobre as questões internas. Os documentos apontam que a preocupação era que essas questões trazidas para o Brasil, sob pena de “acarretar perturbações de ordem política e social” poderiam causar possíveis “enfrentamentos raciais”, que, a partir de seus pressupostos, fugiam completamente da índole do povo brasileiro.
A negação do racismo na realidade nacional era uma constante entre a diplomacia brasileira e se fez cada vez mais necessária na medida em que não era só o governo brasileiro que buscava conhecer o que se passava mundo a fora sobre as relações raciais. Também “as lideranças do movimento negro da década de 1970 trataram de conhecer, muitos de forma ávida, tudo o que se produzia sobre as lutas dos negros em outras partes do mundo”, como observado por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira. As lutas e reivindicações do movimento negro brasileiro foram internacionalizadas por militantes, negras e negros que, fora do Brasil, denunciavam o racismo brasileiro e a falsa democracia racial.
Entre esses militantes, Abdias Nascimento foi, sem dúvida, um dos mais aguerridos, expondo as contradições do discurso dos militares no que dizia respeito às questões raciais no Brasil em espaços de bastante ressonância e legitimidade. Nesse cenário, a preocupação com a imagem do Brasil aumentava na mesma medida em que crescia a repercussão de denúncias de casos de racismo que eram veiculadas internacionalmente através de matérias jornalísticas que traziam em suas manchetes “A Questão Racial no Brasil”.
Ao mesmo tempo, o MRE recebia diversos informes acerca do racismo encaminhados desde as suas embaixadas onde o Brasil tinha representação, por vezes havendo até trocas de reportagens entre elas. Esse boom de matérias jornalísticas sobre o racismo no Brasil veio num crescente em meados dos anos de 1970, com um aumento ainda mais acentuado no ano de 1978, ano da criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR/ MNU), chegando aos anos de 1980.
Nos arquivos do SNI, deparamos com centenas de documentos, informes, informações, telegramas, trocados pelas agências de forma a possibilitar ao governo militar uma visão geral do movimento negro que avançava sob o olhar negacionista dos agentes da repressão e dos próprios militares. O MRE tanto recebia esses informes quanto ele próprio encaminhava para as suas embaixadas e representações notícias sobre as ações das organizações do movimento negro ocorridas por todo o Brasil, mantendo-as a par de todos os acontecimentos em torno dessa questão. Desta forma, por meio da sua DSI, o ministério também solicitava de suas embaixadas informações sobre empresas, universidades, grupos culturais, lideranças, qualquer indivíduo que viesse do exterior para o Brasil participar de eventos do movimento negro ou a pretexto dele.
A necessidade de os militares reafirmarem constantemente o Brasil como uma democracia racial tinha, além dos princípios ideológicos, muito a ver com sua imagem e a necessidade de garantir sua posição política e econômica junto aos países, num momento em que o racismo vinha sendo combatido através de estudos e ações políticas por todo o globo. Para os militares, era importante o Brasil ocupar o lugar de “maior democracia racial do mundo”, pois dava ao país um olhar diferenciado junto às nações, em especial junto aos recém-emancipados países africanos de língua portuguesa e a África do Sul, que despertavam os interesses comerciais do Estado brasileiro. Neste sentido, a orientação dos agentes do SNI era de que o governo “neutralizasse” qualquer ação do movimento negro que incentivasse o “antagonismo racial” no Brasil, em especial no que dizia respeito à “Campanha antibrasileira no exterior”.
Assista ao vídeo da historiadora Marize Conceição de Jesus no Cultne.TV sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI09 (9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais); EF09HI19 (9º ano: Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos); EF09HI20 (9º ano: Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar); EF09HI22 (9º ano: Discutir o papel da mobilização da sociedade brasileira do final do período ditatorial até a Constituição de 1988); EF09HI23 (9º ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo).
Ensino Médio: EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual); EM13CHS602 (Identificar, caracterizar e relacionar a presença do paternalismo, do autoritarismo e do populismo na política, na sociedade e nas culturas brasileira e latino-americana, em períodos ditatoriais e democráticos, com as formas de organização e de articulação das sociedades em defesa da autonomia, da liberdade, do diálogo e da promoção da cidadania).
Marize Conceição de Jesus – Doutoranda em História Social pelo PPGHS-FFP/UERJ e Mestre em Educação pelo PPGDUC-UFRRJ. Professora de História da rede pública estadual e municipal em Nova Iguaçu. E-mail: [email protected]; Instagram: @marizecon
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.