Desde de criança acreditei ser branca, mesmo não possuindo características, como boca e nariz finos e cabelo liso. Pelo contrário, tenho grandes lábios, nariz de batata e o meu cabelo é crespo tipo 4b. Porém minha pele é clara.
Na minha certidão de nascimento está escrito: “branca”, todos os meus documentos estão escritos a palavra “branca”.
Aos 7 anos iniciei o processo de relaxamento dos cabelos, pois sempre ouvia comentários ofensivos a respeito do meu cabelo crespo: “cabelo pixaim, bombril de ariar panela, ninho de passarinho…” Mais tarde comecei a progressiva, me convencendo mais ainda a respeito da minha branquitude.
Parte da minha família é negra, incluindo meus avós paterno e meu avô materno. Minha avó materna era branca, sem nenhuma dúvida. A minha mãe saiu com a pele clara e cabelo cacheado, meu pai, com os dois pais negros saiu o chamado “pardo”. Aliás, detesto essa classificação.
Em nenhum momento fui chamada de negra durante todo esse processo e nem ouvi meu pai ou mãe se identificarem como tal. Até a minha vó se dizia parda.
Com o movimento feminista e muita leitura a respeito do racismo institucional e das políticas de branqueamento veio a aceitação do meu cabelo natural, então eu decidi fazer o chamado Big Chop, há um ano. Ainda neste momento eu não me via como negra.
Lembro-me que assim que cortei o cabelo e deixei meu crespo livre uma amiga feminista da faculdade me falou: “Cá, você não se considera negra né? Porque você não é negra, você é não branca.” Esse diálogo foi o que iniciou essa minha dúvida e tentativa de me identificar com algo, com alguma cultura, com algum movimento. Ser considerada não branca não era o que eu esperava, porque com essa classificação parecia que eu ficava no limbo social. Com essa classificação parecia que eu não tinha história, não tinha passado, não tinha ancestrais.
Então passei a pesquisar, a ler, a tentar entender o que era tudo isso, e finalmente me deparei com o tema do colorismo. Li tanto sobre o colorismo para saber se eu me encaixava no grupo dos negros divididos em tom de pele, ou se eu realmente eu pertencia à classificação do “não branca”.
Em meio a tudo isso, um fato peculiar aconteceu, me deixando ainda mais com dúvida. Num evento de música Soul realizado no Parque do Ibirapuera, encontrei um grupo de negros que convidou minha cunhada, namorado e eu para nos juntarmos a eles. Um deles nos disse que tinha muito branco num evento negro e que não gostava disso. Eu falei: “Mas eu sou branca…” Ele retrucou: “Como assim? Olha esse cabelo, olha essa boca, nariz! Você é negra!” Então eu falei: “Mas eu não sofro racismo”, ele me disse:
“O racismo que você sofre é muito mais difícil de se perceber, porque ele é muito velado. Você já ouviu falar do colorismo?”
Voltei pra casa com a cabeça a mil. Como nunca me disseram que eu era negra? Como eu consegui me camuflar tanto, eu pensava.
Nessa mesma época eu iniciei um estágio num Hospital em São Paulo. Lá havia uma profissional negra que me chamava de negra branca. Um dia ela me parou e falou: “Sabe por que algumas pessoas aqui te tratam mal? Porque você é preta. Você não percebe, mas eu vejo.”
Como eu pude passar tanto tempo da minha vida acreditando ser algo que eu não era? Negando minha ancestralidade, meu passado, minhas raízes? Como o racismo pode ser tão cruel a ponto de negar o que de mais precioso temos que é a nossa história. Negar nossa identidade?
Hoje eu me enxergo como negra e passei a perceber atitudes que antes eram para mim apenas birra, mal educação ou grosseria, mas que na verdade é a expressão do racismo velado.
Mesmo me identificando e reivindicando a minha negritude, sinto muita resistência por parte da minha família, principalmente, em me aceitar deste modo, sempre usando piadas para dizer que eu não sou negra.
As vezes me sinto boba, com medo de também estar representando algo que eu não sou. Por vezes me pego observando pessoas negras com tons de pele mais escuros que o meu e me comparo. As vezes volta a dúvida: “será que eu sou como a minha amiga falou, será que eu sou não branca? Será que eu estou fazendo papel de boba reivindicando algo que não me pertence?”
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