A tendência feminista tradicional é dizer que Sororidade é uma prática comum a todas as mulheres. Para as mulheres negras que eu tenho contato, sororidade é comum a toda e qualquer mulher porque este é um princípio da subsistência, inclusive as mulheres que nos maltratam, as mulheres que por qualquer circunstância nos fazem mal. O que seria isso? Loucura? Auto-flagelo? Não. Sustentabilidade. O que nós estamos dizendo é: esse mundo não existiria caso nós não fossemos assim. Senão vejamos: no período da escravidão, em que mulheres negras frente ao seus algozes eram capazes de dar seus leites para nutrição dos filhos de suas sinhás, contribuindo para o surgimento das figuras das Bás e amas de leite, que no futuro vão se transformar nas babás, nos coloca frente uma realidade, em que, para cuidar de seus próprios filhos em paz, essa mulher negra deveria primeiro garantir o bem-estar dos filhos dos seus opressores. Mesmo num contexto nefasto como a escravidão, a sororidade estava ali presente porque esta mesma Bá cuidava do parto, da saúde, e inclusive das outras gestações de sua sinhá. E, ali se desenhava também, mesmo que de forma desequilibrada, uma relação de afetividade entre duas mulheres.
por via Guest Post para o Portal Geledés
Atualizo aqui o conceito de sororidade de forma empírica, a partir da convivência com as herdeiras deste modelo de sororidade, ou seja mulheres negras de periferia, e, de candomblé. Me inspiro no pensamento da intelectual e feminista negra Patrícia Hill Collins sobre interseccionalidade e identidade. Patrícia vai dizer que “A interseccionalidade nos oferece uma lente pela qual se vê raça, classe, gênero, sexualidade como processos que se constituem mutuamente se apresentando materialmente na vida cotidiana das pessoas de maneiras complexas, como configurações muitas vezes contraditórias, que se sobrepõem, interagem e interseccionam”. As mulheres com quem convivo dizem: sororidade é uma maneira de garantir que estaremos vivas no futuro. Analisando estas duas perspectivas, para mim complementares, eu pergunto: qual é o conceito de sororidade atual para mulheres brasileiras? Semanticamente, sororidade é irmandade feminina. Um termo equivalente à fraternidade. Mas, como eu poderia transpôr a frase: Ela precisa de um acolhimento fraterno? Seria um acolhimento sorelo? Ou, acolhimento “sororo”? A questão aqui também é ao atualizar, nomear a manifestação desta prática tão inerente ao nosso jeito de ser.
A proposta deste texto é pensar que a prática de sororidade floresceu, por exemplo no contexto citado da escravidão, entre as populações mais pobres e mais violentadas do país. Nos quilombos, aldeias e terreiros, onde mulheres eram capazes de depois de levar 100 chicotadas cuidar da pele, cabelo e filhos de mulheres brancas causadoras de suas mazelas. Tente imaginar uma mulher que é estuprada pelo senhor de Engenho à noite servindo seu leite pela manhã para o filho de seu agressor. O que é isso? Resiliência? Espirito de sobrevivência? Não só isso. Por mais grotesco que possa ser imaginar, no contato com a criança também se estabelecia uma relação de afetividade – não por um “instinto maternal” que aflorava “naturalmente” neste processo, mas pela necessidade de enfrentar o cativeiro e a desumanidade sem deixar de viver. E sem deixar de sentir.
Baseado neste contexto que produziu tanto aviltamento formal, sedimentam-se minhas crenças sobre esta potente maneira de sobreviver no decorrer dos séculos – um modelo de sororidade unilateral? Sim. Por isso, é necessário atualizá-lo – mais e sempre. Quero romper com essa lógica em que mulheres negras são apenas fornecedoras. Ainda hoje podemos constatar que o poder da mulher branca “bem-sucedida” está condicionada a exclusão de uma outra mulher: a negra. Ou não é assim que hegemonicamente as brancas tem tratado as empregadas domésticas? Não me diga que ajudou sua empregada a voltar para escola ou doou roupas usadas de seu filho para ela. Falo aqui de sororidade de verdade. Esta começa por admitir que tem privilégios.
Acredito, portanto, que na experiência do Brasil são as mulheres indígenas e negras aquelas capazes de transpôr a dor, fazendo o exercício profundo de amar a figura que aos longos dos tempos reproduz práticas que reforçam seu lugar de subalternidade. Que só foram capazes de ser a base desta real sororidade por justamente atravessar um deserto de solidão abraçada a semelhanças de conseguir reconhecer entre si e na outra lutas diante de diferenças pintadas como intransponíveis, através do carinho que desenvolviam pelos filhos de seus captores e pelo vínculo estabelecido com as mulheres brancas donas da Casa Grande.
Diante de tudo exposto, sororidade para mim é encontrar um caminho – um caminho para sobrevivência, um caminho para realização pessoal, e, um caminho para o bem viver. Como me ensinou a doutora Jurema Wernek: “A solução terá que passar por nós mulheres negras, senão, não poderá ser chamada de solução”.
* Agradeço Samadar Kintê, Júlio Sandes e Carla Akotirene pela luz nesse meu exercício de escrevinhação.