A negligência intelectual dos racistas brancos esclarecidos

Mesmo ciente do debate sobre “cultura do cancelamento” meio vinculada à ideia de punição, e corrente, sobretudo, nas redes sociais, o mesmo não tem centralidade nesse texto. Seja para “corte ou costura”, prefiro uma elasticidade pedagógica, que pode, ou não, abrir diálogo, mas não pressupõe seu fechamento. Mas digo, de antemão, que como mulher negra me vejo na legítima e justa posição de rejeitar racistas como referências intelectuais, o que não quer dizer que eu possa fazê-lo integralmente, ou que tenha essa radicalidade como método, coisas que, dadas as circunstâncias históricas, não são nem técnica nem politicamente possíveis.

Contudo, não deixa de ser notável que o racismo dos brancos esclarecidos costumar ir da arrogância preliminar à uma autofragilização mediante um antiguíssimo recurso à “animalização” de quem reage ao seu racismo explícito, porém negado. Nesse percurso, os discursos reativos à reação vão tornando-se minguados e vazios e, à semelhança do reacionarismo mais básico, se vai nos levando da indignação à impaciência, mas as coisas não se encerram aí e seu desenrolar é importante.
Pois bem, os e as intelectuais brancos esclarecidos, porém racistas, são àqueles que mesmo defendendo justiça e transformação sociais, mesmo sendo conhecedores da história, não percebem o racismo como estrutura e nem se percebem nele como sujeitos. Certos de que sua visão é mais democrática e universal porque, em tese, prescinde de “identidade”, se descolam de sua própria realidade, e ei-los a simplificar complexidades que não tiveram a necessidade vital de se esforçar para compreender. Tamanha negligência não seria viável para pessoas negras com consciência racial, pois esse processo é alicerce de nossa própria emancipação cotidiana e intelectual, já que os modelos brancos nos estão historicamente impostos, atravessando brutalmente a nossa experiência dentro de circunstâncias manejadas por seus ancestrais e atualizadas por seus herdeiros.

Mas não nos furtamos a estudar as referências construídas pelos brancos, o que escolhemos foi “topar a parada” e peitar a ordem do racismo por toda parte desta sociedade e fazemos isso, inclusive, independentemente de qualquer forma teórica porque a violência nos abate e o ritmo da sobrevivência é mais acelerado do que o das conquistas teóricas e políticas. Então, é estudo e é luta política e social, vinculados à realidade da maior parte da população, e à história de um país de origens escravagistas e heranças escravocratas. Ora se tais intelectuais se colocam para analisar o mundo, formar opinião, dialogar politicamente e incidir na sociedade, é nesse âmbito que empareamos a disputa antirracista não somente por razões diletantes, mas porque exatamente esse âmbito recai sobre nossa vida cotidiana e política. O jogo é pesado, portanto, não “cola” teorizar desde bases racistas e recorrer ao senso comum quando chegam as reações.

O esclarecido racista perde muito em intelectualidade, e nem sequer falo em generosidade ou aliança de classe e raça, mas do necessário questionamento à sua coerência crítica, afirmando frente à mesma que: se é assim, ela não pode ser racista ou se conformar e navegar fagueira, alienada de sua branquitude. A deslegitimação do racismo é base mínima, com tudo que se tem que aprender por “dentro” dela. Desse ponto de vista, não se trata de concluir a morte do debate ou o cancelamento do sujeito, mas quer dizer que não se enfrenta o racismo sem questionar os racistas esclarecidos, que parecem imaginar, equivocadamente, que esse questionamento se reduz ao âmbito pessoal e individual, e passam a reivindicar um sofrimento, que é legítimo, mas em contrapartida aparentam enorme dificuldade em enxergar-se na profundidade do que é que estamos dizendo e o que efetivamente é a origem desse sofrimento.

De modo que, se é um tormento ver-se acuado pelas pressões de quem denuncia, talvez fosse importante para tais intelectuais repensar sobre o que os levam a ter como válido portar-se da forma tão desprezível que as reações dos e das ofendidas explicitam. Creio de modo sincero que nessa seara de conflitos é difícil uma equação conciliatória, mas nada mais inócuo e até mesmo ridículo nesse tema, do que cristalizar posicionamentos e atitudes, e relegar à suspeição os que indagam em dimensão tão vital para si, que é o racismo e a urgência de enfrentá-lo de forma sincera, e ainda esperar “leveza” no retorno. Não vai acontecer, especialmente, porque “a essa altura do campeonato” é difícil crer na inocência dos intelectuais, de tal forma que, sua ignorância e negligência revertem-se numa lastimável escolha racista.

Por isso não estamos no ponto da acolhida aos racistas esclarecidos: é exatamente o contrário, estamos num ponto de cobrança em profundidade prática, discursiva, política e metodológica, daí a revolta com o descompasso, e a impaciente e irritante sensação de “como você pode estar aí, depois de tudo?”. Mas o que é mesmo odioso e repugnante é o fato que que aquilo que pouco importa aos brancos e brancas, tortura e mata os negros e negras, e é nessa ferida que o racismo dos esclarecidos joga sal, mesmo se pondo ao lado da classe trabalhadora, em sua visão, desracializada. Embora se possa afirmar que “afinal, todo sofrer é sofrer” não há como situar os sofrimentos por fora das estruturas de desigualdades e injustiças e seus rebatimentos sobre os sujeitos. Se a reação negra ao racismo pode levar os brancos e brancas ao divã ou à busca “amarga e ressentida” pelo recrudescimento de seu comando e privilégios, o racismo nos leva individualmente, e em massa, à pobreza e à destituição, à tortura e à humilhação, aos cemitérios e prisões.

Ademais, é exaustivo gastar preciosas energias reagindo aos esclarecidos, os quais quer queira ou não, já dispõem de razoáveis subsídios no nível do conhecimento e da luta social. Felizmente, também não estamos à mercê de sua decifração e nem em subserviência aos seus caprichos, podemos dizer-lhes enfim: —Dessa vez você não fala só e nem para uma única e confortável plateia, ou: —Talvez não seja você que queiramos ouvir, ou: —Talvez fosse razoável você pedir licença antes de explicitar seus absurdos, e finalmente — Não aturo esses seus abusos, nem suporto seus absurdos , pois, nesse sufoco, não consigo respirar.

Pode ser que, na dinâmica da vida, se vislumbre aí uma penalização, mas, a não ser por circunstâncias muito excepcionais, o pleno conforto branco está tensionado, e isso é central como metodologia e resultado das lutas contra os privilégios, embora implique em rebordosas terríveis. O que não dá é para transferir as violências para as vítimas e obrigar os termos do diálogo à régua da branquitude, quando depois de tudo que temos visto e vivido, o deslocamento antirracista é o único giro para o diálogos e alianças, que ainda assim, não estarão “higienizados” ou isentos de conflitos.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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