A gota d’água pelo simples direito de respirar aqui e lá

“Vidas negras importam”. A onda de protestos  que se espraia pelas cidades estadunidenses confirma a complexidade do racismo, pois ter melhorias individuais das  condições materiais de existência, típicas de uma sociedade de consumo, mostra que mesmo sendo popstars na música, nos esportes,  na literatura, na mídia,  intelectuais e até Presidente, mantém os homens negros e mulheres negras, como ‘negros”, em sociedades racistas e classistas.[3]  O projeto neoliberal não inclui o de emancipação do povo negro. Nesse sentido, é importante citar um trecho da entrevista de Bakari Sellers[4], autor do livro de memórias “ No meu país de fuga”, ao site democracynow.org /:

Esse é o país em que vivemos. E o que você está vendo hoje não é apenas sobre George Floyd. Não quero que ninguém pense isso. O que estamos vendo hoje é sobre injustiça sistêmica e racismo sistêmico que atormentam este país há 400 anos. ( tradução livre)[5]  

Portanto, não há saídas individuais contra o racismo, as saídas são coletivas, e demanda mudanças simples, cotidianas, mas acima de tudo estruturais nas sociedades. 

A comparação entre os movimentos civis de negros/as estadunidenses e brasileiros é tentadora, e já se faz a inquietante pergunta por que os negros brasileiros não reagem da mesma forma? Por que não tomam as ruas? Sinalizam com essa pergunta para uma possível ” passividade”, uma pretensa docilidade que esteve sempre presente no discurso racista há muito tempo.

Sinalizo para a complexidade do fenômeno do racismo, seu caráter mutante e mutagênico, pluralidade e as especificidades que envolvem o caso brasileiro e o mito da democracia racial.  

Falar de uma possível passividade ou inação diante das crescentes e diárias violações dos direitos que atingem as pessoas negras, agravadas pelo recorte de gênero, classe e geração, é antes de mais nada, querer desacreditar a luta do povo negro, minimizar suas conquistas e ocultar o grande poder de resistência do nosso povo.

Assumir a tese da passividade do povo negro brasileiro, contrastada com realidade dos EUA, é uma primeira reação que captura apenas a superficialidade dos fatos, pois as nossas realidades em certa medida convergentes, são também muito distintas. O tamanho e o  posicionamento social  das nossas populações,  bem como as  estratégias, as táticas, as alianças que levaram a vitórias contra a escravidão racial (aqui e acolá), e as expressões do racismo, e disposição da sociedade como um tido para enfrentá-lo, como um exercício de política  e de poder que   segue, por toda Diáspora, nos eliminando física e mentalmente, também diferem muito.

Superamos a condição de escravizados, mas continuamos negros. E esse não seria um problema, caso as sociedades herdeiras da escravidão não seguissem sendo estruturadas pelo racismo e suas manifestações, num saudosismo eterno, que busca meio de preservação.

Não olhem para os EUA como uma fotografia, e sim como um filme da luta por justiça social, que ainda não chegou ao “the end”. Ele está repleto de avanços e reveses, lembre-se que negros/as já chegaram até à presidência. Como bem disse o ativista e intelectual Cornel West, o sistema não muda, o movimento vidas negras importam, nasceu durante o governo Obama. Os casos de violência policial contra a população afroamericana, em particular contra os homens negros, se multiplicaram. ” no justice, no peace”. “Não diga ao meu povo para ir para casa, não peça paz, até você também estar pedindo justiça. A justiça tem que se tornar um verbo neste país, não apenas um substantivo.” Bukari Sellers [6] 

E nós? Estamos parados? Não mesmo! Reagimos da mesma nossa forma. Temos estratégias parecidas e convergentes. O mundo diaspórico negro aprendeu e aprende muito com a experiência dos afroamericanos, é importante reconhecermos que é uma relação biunívoca, mesmo sabendo que eles estão na barriga da besta.

Posso elencar um número infinito de ações que dignificam a nossa luta como povo negro. Certamente, as conquistas não ocorrem na velocidade que desejamos, pois queremos parar a morte dos jovens negros, ao mesmo tempo que ampliamos direitos civis e sociais. Entretanto, vale ressaltar que o caminho para a tão almejada justiça social e igualdade racial, não está livre, tem barreiras individuais, coletivas, institucionais, psíquicas, religiosas, inclusive no simples ato de respirar, enfim o nosso direito de ser simplesmente um ser humano.

Reconhecer esses meandros/ nuances/dificuldades/ reveses/ e o inimigo que ultimamente se vale até de pessoas negras, a ex. do presidente da Fundação Cultural Palmares, para atacar nossas conquistas, numa tentativa desesperada de nos paralisar. 

Isso é uma forma de mensurar o quanto a Onda Negra brasileira por direitos tem avançado. Não conseguirão nos fazer parar!

Se a suposição de inércia do povo negro fosse verdadeira: por que seguiriam nos eliminando fisicamente?  Por que continuariam atacando nossas crianças e adolescentes nas redes sociais e nas escolas?  O caso mais recente de Adriel, nosso Drii, adolescente de 12 anos que posta resenha dos livros que lê, para que outros como se interessem pela leitura. Nossos inimigos, os racistas, não poupam nada, nem ninguém. 

Sentem que perdem terreno, e que nós reconhecemos que estamos em guerra, e vamos reagindo de diversas formas.

O Tempo, senhor dos destinos, segue em marcha inevitável, e está a nosso favor.

Façamos um exercício breve: você hoje que é um cinquentão ou cinquentona quando jovem tinha o nível de consciência negra que tem muitos jovens negros e negras hoje?

Não tínhamos, com raríssimas exceções, apenas iniciávamos nossa formação. Portanto, ver Drii e tantas outras crianças e jovens, se autoafirmando é   sinal de que avançamos. 

Ainda somos poucos a fazer o trabalho de muitos? Sim, somos, há muito que já enchemos as calçadas, a marcha Zumbi 300 anos(1998), a Marcha das mulheres negras contra o racismo e a violência e pelo bem viver(2015), os recentes desfiles das escolas de samba no RJ, a exemplo da Mangueira,  a  recentíssima, titulação do Quilombo Rio dos Macacos. Não podemos deixar de referenciar os trabalhos ogunianos ( teoria e práxis) de Abdias Nascimento ( o Quilombismo), Lélia Gonzalez(Amefricanidade), Virgínia Bicudo[7]… .   É luta  do povo negro! Tudo conquistado. Nada dado.

O caminho é árduo, a vitória é certa. Não podemos perder de vista, que somos como água do rio, correndo para o mar. Ora esculpindo pedra a pedra, ora tormentosa passando por cima de tudo, ora desviando dos obstáculos tranquilamente.

Importante, certamente, é não perder o sentido da luta, avaliando os erros e os acertos… nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, porém, mais do que tudo, aprendendo a jogar. E nesse jogo local e global, a nossa solidariedade transnacional negra é peça chave, para tanto temos que encontrar os “nossos jeitos” para juntos ultrapassarmos as barreiras impostas pelas línguas coloniais. A luta continua!


[1]* Larissa Souza, ativista e graduanda em Pedagogia.

[2] Fundador, Presidente de Honra do Instituto Cultural Steve, professor de economia DCIS/UEFS, Vereador de Salvador/Psb 

[3] “…os negros americanos constituem menos de 13% da população, mas representam 27% de todas as mortes (mais que o dobro da proporção da população). Em maio de 2020, o Laboratório de Pesquisa APM[…] constatou que “a taxa de mortalidade para negros americanos é 2,2 vezes maior que a dos latinos, 2,3 vezes maior que a dos asiáticos e 2,6 vezes maior que a dos brancos”.  Dr. Elizabeth Hordge-Freeman e Michel Chagas, Covid 19 e o seu impacto nas comunidades negras nos Estados e no Brasil in https://www.stevebiko.org.br/single-post/2020/05/22/COVID-19-e-seu-impacto-nas-comunidades-negras-nos-Estados-Unidos-e-no-Brasil , acessado em 02.06.2020.

[4]  Em 2006, foi o mais jovem deputado estadual afro-americano do país, eleito para o estado da Carolina do Sul.

[5]  www.democracynow.org/2020/6/, acessado em 02.06.2020.

[6]  www.democracynow.org/2020/6/ acessado em 02.06.2020 .

[7]  https://www.geledes.org.br/virginia-bicudo-a-brasileira-pioneira-em-estudos-raciais-na-psicanalise, acessado em 02.06.2020.


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