Construímos ao longo da nossa formação humana e acadêmica a compreensão de que as crianças são sujeitos em processo formativo e/ou de certo modo ainda lidamos com resíduos de percepções românticas acerca da criança “angelical”. Além disso, há tempos tem-se, investido e esperançado na ideia de que as crianças representam uma possibilidade melhorada de futuro.
Neste sentido, esse artigo pode trazer algum tipo de conflito com leitoras/es, ao pautarmos que as crianças brancas são racistas. Tão logo, a afirmação de que as crianças brancas que compreendem seu privilégio racial e utilizam deste para subalternizar crianças negras, nos esvazia como sujeitos que projetam uma sociedade mais igualitária.
Das contestações mais comuns que temos ouvido quando afirmamos isso, destacamos:
I. As crianças estão em processo formativo;
II. Crianças não podem ser racistas;
III. As crianças apenas reproduzem o racismo;
IV. Racismo é crime, não podemos verbalizar isso desse modo.
Temos acordo com a primeira contestação, mas, problematizamos e rejeitamos as demais.
Será mesmo que as crianças não podem ser racistas? Será que as crianças apenas reproduzem o racismo? Sim, também concordamos que racismo é crime, mas, por que não podemos verbalizar isso às crianças? Será que admitir que as crianças brancas compreendem e acionam o racismo para desfrutar de privilégios raciais, significa assumir as falhas e limites da educação e da sociedade?
Pesquisa realizada por Pamela Cristina dos Santos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (2017-2019), orientada pela Profª Drª Joana Célia dos Passos, acompanhou crianças negras e brancas em processos de socialização dentro e fora do espaço escolar e evidenciou que o racismo não só está nas relações sociais estabelecidas entre as crianças, como ele é acionado para subalternizar as crianças negras.
Em uma sociedade em que o racismo é estrutural (ALMEIDA, 2018), as crianças negras não escapam das armadilhas racistas dentro dos espaços e instituições em que vivenciam as relações sócio-raciais. Ainda, as crianças brancas no processo de constituição dessas relações apresentam comportamentos e atitudes racistas para com crianças negras, demonstrando compreensão das normas sociais que instituem processos de hierarquização e subalternização racial. Elas parecem compreender o privilégio social que a branquitude lhes proporciona e na dinâmica das relações podem ou não acioná-la.
Sinalizamos aqui que não é nosso papel aqui expor as crianças brancas e/ou culpabilizá-las pelo racismo, caindo na ideia de racismo individual, onde existe a marcação da imagem de um sujeito como propagador do racismo e que leva a ilusão de que se agirmos sobre esse sujeito damos fim ao problema. Como já destacado acima, entendemos que o racismo é estrutural e estruturante das relações sociais. Ao mesmo tempo, situações corriqueiras como as destacadas abaixo, parecem confirmar nossa hipótese:
No recreio, os meninos Vinicius (branco), Iuri (negro) e Otávio (negro) jogam cartinhas como de costume, eu e Antonia (negra) observamos, mas sem interagir. Num dado momento, Iuri solta a seguinte pergunta:
Situação Exemplo 1.
– Será que alguém me compraria hoje (pausa) se ainda existisse escravidão?
A pergunta chega aos meus ouvidos como um golpe, mas não intervenho, só me aproximo lentamente para ouvir melhor. Otávio responde:
– A gente não vai ser vendido, cara, relaxa.
– Mas quanto será que pagariam pela gente?
O menino (Vinicius) fala em tom mais tranquilo, meio que em deboche. E continua …
– Han. Han. Eu acho que uns cinquentinha.
Os meninos riem. E o jogo segue. (Registro de Campo, setembro de 2018)
Situação Exemplo 2.
[ÚLTIMA AULA] Fui à sala do terceiro ano e as crianças estavam realizando atividade de leitura com outra professora (branca) que desconheço. Faltando poucos minutos para o horário da saída, a professora começou a fazer perguntas sobre a tabuada para cada criança. Chegada a vez da Dani (negra), a professora diz:
– 4×5, Danieli?
A menina brincava com um guarda-chuva e, nesse momento, os meninos (brancos) começaram a gritar paralelamente:
– Pula ela!
– Ela nem sabe.
– Meu Deus, responde logo ou passa, minha filha.
Dani, ainda brincando com o guarda-chuva responde:
– Só para vocês saberem, eu sei, eu sou inteligente e por isso eu vou responder. É 20, professora.
A professora passa para a criança seguinte, e a sala continua gritando, infelizmente pude entender pouca coisa, pois eram muitas vozes juntas. Mas Dani seguia repetindo:
– Eu sou inteligente!
As situações ilustradas são alguns exemplos coletados durante a pesquisa que deu origem a dissertação intitulada: “Saravá as Cartinhas: Relações Sócio-raciais entre crianças negras e brancas na escola e no terreiro”. Através do recorte de situações como essas é que a pesquisadora concluiu que as crianças brancas reconhecem seu privilégio racial e utilizam desse para subalternizar crianças negras nos cotidianos das relações sociais.
Não é nosso interesse levar essa discussão para um pessimismo latente, vejamos que as crianças brancas desenvolvem práticas racistas e estão também em processo formativo, e por esse motivo necessitam ser confrontadas com práticas antirracistas. O que acontece nesse momento é que as crianças negras estão falando, estão sentindo e vivenciando o racismo nos mais diversos espaços.
Elas resistem? Resistem, vide a situação exemplo 2, da menina que resiste a toda a situação que tenta subalternizá-la (nesse caso específico pelas categorias de raça e gênero).
Mas as perguntas que nos ficam é: Enaltecer a resistência das crianças negras diante de situações racistas não seria naturalizar o racismo entre crianças? Ou ainda, será que ao precisarem resistir cotidianamente, as crianças negras não estariam sendo privadas de direitos?
O fato é que o racismo não passa despercebido pelas infâncias negras e brancas! E nós, adultos/as, professoras/es o que fazemos com isso?
Referências
SANTOS, Pamela Cristina dos. Saravá as cartinhas: relações sócio-raciais entre crianças negras e brancas no terreiro e na escola. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação).
Centro de Educação, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina
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