O feminismo não é uma luta nova, em que pese sua atual evidência. Muito embora tenha se consolidado como movimento há relativamente pouco tempo (primeira onda em 1913, segunda onda em 1960), é certo que os desafios enfrentados pelas mulheres para o alcance da igualdade de gênero não encontram um fim. E talvez nunca o encontrem.
Entretanto, com o advento das mídias sociais, o feminismo e o ideal de igualdade de gênero tornaram-se acessíveis, evidenciando a urgência de uma mudança de postura e reestruturação social.
A influência das linguagens artísticas na formação cultural e educação da sociedade não só salta aos olhos como é fundamental para a construção social. Não só a arte imita a vida. A vida imita a arte, certamente. E o cinema, desde seu surgimento, vem espelhando e influenciando décadas e tempos.
De tal premissa, abordemos, brevemente, a representatividade feminina no cinema e a influência que tal representatividade (ou a falta dela) exerceu e exerce na sociedade ocidental, tomando como base os livros “A Mística Feminina” e “O Mito da Beleza”, aventando, ainda, como o cinema auxilia no processo de educação cultural e formação de pensamento crítico.
O livro “A Mística Feminina”, de Betty Friedan foi publicado em 1963, e se tornou um marco para a segunda onda feminista ocorrida na década de 60. O livro refletiu um complexo estudo feito pela autora sobre mulheres das décadas de 40, 50 e 60, num contexto pós 2ª Guerra Mundial. Havia um incentivo de reestruturação econômica e levante capitalista que retirou as mulheres do mercado de trabalho para ceder espaço aos homens sobreviventes do conflito, para alocá-las no ambiente privativo do lar, sendo amplamente disseminada e vendida a ideia de que a mulher pertencia ao lar, e que seu objetivo de vida consistiria em casar-se, cuidar do lar, ter filhos e zelar pela família.
No ambiente restrito do lar, às mulheres foi incutida, ainda, a ideia do consumismo, em resposta necessária à onda de novos eletrodomésticos e itens para o lar, especialmente no ramo de limpeza e cozinha. Adstritas ao lar e ao consumo, a autora constatou nas mulheres estudadas um aumento significativo de casos de depressão e doenças mentais, e buscou, através de seu estudo, descobrir as origens de tal problemática, a chamada “mística feminina” ou “problema sem nome” que parecia perseguir silenciosamente o feminino da época.
O dito “problema sem nome”, em linhas muito simples, consistia em um sentimento de vazio e angústia que as mulheres da época silenciosamente compartilhavam, e que a autora, em seus estudos, conclui estar atrelado à falta de objetivo de vida e da ausência de um papel social feminino fora dos lares.
Nesse contexto, o cinema exerceu grande influência na reprodução da figura feminina como pertencente ao lar e ao âmbito doméstico, o que colaborou para o conformismo e aceitação das mulheres ante tal imposta situação. Tratava-se, de fato, de uma imposição velada e implícita. Vendia-se a imagem da mulher ideal tal como a mística feminina exigia, ideia que só passou a ser reformulada e repensada a partir da publicação do livro de Betty Friedan, em união a outros fatores.
Importante considerar que Hollywood cresceu e foi construída sob uma ótica masculina, branca, heterossexual e de classe média. Dessa forma, consoante determinava a Mística Feminina, as mulheres retratadas no cinema buscavam rememorar os papéis tradicionais femininos na sociedade, como mães, esposas e cuidadoras do lar, estereótipo que ainda persegue as mulheres de hoje, e que continua sendo reforçado em algumas obras cinematográficas mais descuidadas.
Antes mesmo das denúncias de Betty Friedan, o cinema principalmente dominado pelas grandes produtoras vem formando estereótipos femininos que a sociedade tem dificuldade de se desvincular. Personagens femininas possuíam, em rápida análise, basicamente dois tipos de papéis: o papel feminino casto, a mulher feita para o casamento e que busca o casamento, submissa e passiva e cujo único objetivo é transformar a vida do homem, e o papel feminino sexual, o papel da amante, da mulher objeto de desejo e cujo único objetivo é desvirtuar o homem e afastá-lo do âmbito familiar.
O cinema acompanhou a obra literária, não necessariamente sob influência um do outro, mas em concomitância a partir da necessidade de mudança. No fim da década de 50, figuras como Marilyn Monroe e Audrey Hepburn surgiram como inauguração de uma revolução feminina, e principalmente, de libertação sexual e social dos padrões da mística.
Filmes como “Bonequinha de Luxo”, com Audrey Hepburn e ” O Pecado Mora ao Lado”, com Marylin Monroe, inseriram a imagem da mulher não atrelada ao lar, mas livre e que opta por não se casar e por não ter filhos. Tais obras foram responsáveis pela chamada “revolução sexual” da época, libertando as mulheres também nesse sentido, e representando-as como figuras com escolhas e desejos próprios.
Não há de ser ignorado, entretanto, o quão problemática foi a concepção de tal revolução e suas consequências na criação da imagem da mulher erótica, tida como objeto de contemplação e propriedade masculina. Entretanto, a partir de uma sociedade em que as mulheres foram relegadas ao lar, o fato de ser permitido à mulher mostrar-se como ser dotado de individualidade e sexualidade próprios sem que isso a tornasse uma vilã pode ser tomado como um grande avanço.
Décadas depois, em 1990, a obra literária “O Mito da Beleza”, de Naomi Wolf trouxe uma nova revolução através das denúncias contidas em sua obra, sobre o constante e silencioso aprisionamento da mulher através das exigências atribuídas socialmente à sua aparência, em que pese os esforços dos movimentos feministas ancestrais. Naomi Wolf denuncia, ainda, as influências estruturais a que as mulheres estão sujeitas, e a forma como a sociedade constantemente busca, de alguma forma, tornar as mulheres submissas, ainda que imperceptivelmente, ao patriarcado. Na medida em que direitos femininos são conquistados, mulheres são aprisionadas por outros meios – a exigência de um padrão de beleza inalcançável.
Sua obra surgiu após um conceito de antifeminismo da década de 80. Nessa época, a reflexão desse movimento no cinema trouxe a imagem de personagens submissas e passíveis de aceitação da violência sexual. Veja-se, por exemplo, em obras famosas como “Grease – Nos Tempos da Brilhantina” e ainda, em “De Volta para o Futuro”, em que a mudança física em prol das vontades e desejos masculinos e o estupro ocorrem de forma naturalizada. Esse fenômeno é perceptível, ainda, na arte musical. Videoclipes e letras da época representavam com naturalidade e frequência mulheres sendo perseguidas e violentadas sexualmente (Ex. Thriller– Michael Jackson, Rag Doll – Aerosmith, Used do Love Her e Pretty Tied Up – Guns n’ Roses). O antifeminismo de tal período nos parece ter colaborado para o surgimento da cultura de estupro enfrentada pela mulher atualmente.
O cinema é um retrato de seu tempo, sendo também responsável por ditar as regras de seu tempo. Dessa forma, a denúncia de Naomi Wolf é uma crítica direta ao padrão de beleza ditado pelas telas. A representatividade feminina no cinema, além de já encontrar barreiras no protagonismo masculino majoritário, mostra-se problemática pela falta de diversidade de raça, cor e padrões de beleza reais.
Em seu aprofundado estudo, Naomi Wolf traz, dentre outros fatores, culpabilidade pelo aprisionamento feminino ao “mito da beleza” e à busca por um padrão de beleza inatingível às indústrias farmacêuticas e de cosméticos e à indústria de cirurgias plásticas. E se faz notória a influência e colaboração das mídias em geral para o cultivo desse aprisionamento inconsciente. Revistas e propagandas vendem promessas de uma pele perfeita (geralmente branca), de um cabelo perfeito (majoritariamente liso), de um rosto desprovido de rugas, de uma magreza desproporcional ao corpo da maioria das mulheres.
E o cinema cumpriu (e ainda cumpre, mas com mudanças progressivas) seu papel como perpetuador do mito, trazendo atrizes portadoras de uma beleza irreal, majoritariamente magras, jovens e brancas, que não representam, nem de longe, mulheres da vida real, mas que nelas exerce uma influência absurda.
Exige-se que a mulher real copie e almeje ser aquela figura inatingível feminina representada no cinema. Tal imposto objetivo acarreta não somente uma constante ansiedade e insegurança à mulher real, mas faz com que essa consuma de forma constante os produtos vendidos por tais indústrias, únicas beneficiadas pelo aprisionamento da beleza.
Há, na obra em comento, um extenso capítulo dedicado às cirurgias plásticas a que se submetem as mulheres com guisa a alcançar o inalcançável. É muito chocante constatar que a sociedade passou a adotar como normal que a mulher arrisque sua vida em prol da beleza. É plenamente aceitável que uma mulher se torne bulímica e adoeça em prol da magreza.
Além disso, é inegável que o cinema associa a beleza feminina à juventude. De fato, as atrizes parecem possuir um prazo de validade menor que ao atribuído aos atores no que se refere à idade – mulheres acima dos 40 anos possuem notoriamente menos falas nos filmes, e representam personagens geralmente muito restritos (por ex., uma figura materna, mulheres desprovidas de vida sexual).
Por outro lado, fora e bem longe de Hollywood, existe representatividade feminina já há muito.
A título de exemplo, as animações japonesas produzidas pelos estúdios Ghibli trazem bons exemplos de representatividade feminina. Os filmes de Hayao Miyazaki, por exemplo, costumam, em sua maioria, trazer não só protagonistas femininas, mas protagonistas femininas que possuem jornadas próprias e interessantes por si, independentes do universo masculino (A Viagem de Chihiro, Princesa Mononoke, Castelo Animado, O Conto da Princesa Kaguya). Nos parece que o cinema popular de Hollywood contemporâneo está começando a compreender a necessidade e urgência de seguir exemplos como os dos estúdios Ghibli, auxiliando na construção de uma consciência coletiva, de refletir representatividade feminina e trazer empoderamento. Trata-se de um questionamento necessário, e que detém grande poderio de mudança social e estrutural, de forma a tornar inaceitável a ausência de representatividade de todos os públicos no cinema, e combater estereótipos.
Impossível não falar em representatividade feminina sem mencionar o ‘Teste de Bechdel”. Idealizado pela cartunista Alison Bechdel em 1985 através de uma tirinha crítica e irônica aos filmes hollywoodianos, o teste, embora não seja absoluto e mostre-se simples, se preza à reflexão e ao questionamento. As regras são simples. Para aprovação no teste de representatividade feminina, é necessário o cumprimento de três requisitos concomitantes: 1. O filme possui duas ou mais personagens femininas com nomes? 2. Elas conversam entre si? 3. O assunto da conversa é algo que não seja homem ou qualquer assunto relacionado a romance?
Os requisitos são singelos. Entretanto, é fácil perceber que a maioria gritante dos filmes que já assistimos, e inclusive, obras que apreciamos, não passam pelo teste, principalmente porque os papéis femininos geralmente são desprovidos de jornadas próprias ou ainda porque dependem majoritariamente de um personagem masculino para o desenvolvimento de suas tramas.
Há um site colaborativo (https://bechdeltest.com/) que traz uma lista imensa de filmes que cumprem ou não com os requisitos sugeridos por Bechdel.
É interessante notar como filmes, inclusive, com protagonistas femininas, não passam no teste: Gravidade, Corra Lola Corra, Bonequinha de Luxo são alguns exemplos. Longas extremamente populares como Avatar, Star Wars (saga original), O Senhor dos Anéis e Os Vingadores são outros exemplos que não passam no teste.
Há, obviamente, obras hollywoodianas maravilhosas de épocas diversas que atendem aos requisitos do teste, e que merecem aqui ser mencionadas: Orgulho e Preconceito, A Chegada, As Horas, A Noviça Rebelde, Adoráveis Mulheres (2019) e Nós devem ser recordadas, dentre tantas outras.
O cinema francês também vem trazendo, não de hoje, importante representatividade feminina. Contemporaneamente, o melhor e mais aclamado exemplo encontramos em “O Retrato de Uma Jovem em Chamas”, dirigido por Céline Sciamma.
O longa é uma verdadeira homenagem à feminilidade. Quase não há personagens masculinos, e os existentes jamais são de fato destacados, passando, inclusive, despercebidos na tela. A trama não se volta e nem gira em torno de qualquer homem.
Destaca-se, ainda, que o relacionamento entre as protagonistas, embora erótico, jamais é sexualizado de forma desrespeitosa às atrizes. Não há exposição de seus corpos de forma a objetificá-las, mas sim uma delicadeza em puramente reproduzir o sentimento entre as personagens.
O cinema sabe bem das marcas que deixou e as mulheres que ajudou a destruir. A indústria cinematográfica principalmente americana foi responsável, e muito, por reforçar estereótipos femininos de acordo com o que era esperado socialmente à sua época. Não é o cinema em si o único culpado pelos fantasmas que ainda perseguem. A obra de Naomi Wolf, “O Mito da Beleza”, aborda com maestria as inúmeras faces das amarras que aprisionam as mulheres, tão difíceis de ser desatadas. Trata-se de uma complexidade de elementos cuja origem é de difícil percepção, mas que básica e simploriamente refletem quase sempre um interesse de mercado e de proteção de privilégios.
Há, atualmente, um esforço considerável das indústrias cinematográficas em prol de uma mudança positiva de paradigma na representatividade feminina. As mídias sociais, ainda que entre muitos pecados, colaboraram sobremaneira para a democratização da discussão de temas sociais como a igualdade de gênero, ultrapassando as barreiras acadêmicas e se tornando temas populares amplamente discutidos. O cinema encontra-se cada vez mais presente dentro das casas por meios das plataformas de streaming, tornando-se um meio artístico popular e de fácil acesso.
Nesta esteira, a democratização da arte faz surgir o debate. E do debate, decorre a conscientização. A sociedade vem tolerando cada vez menos a falta de representatividade nos cinemas não somente no âmbito de gênero. E assim como se prezou para o negativo, o cinema se preza também ao positivo, trazendo atualmente filmes hollywoodianos como Frozen, Moana, Divertida Mente, e Zootopia, com forte representatividade feminina infantil (seriamente deficiente em tempos mais remotos), e ainda, longas como Mad Max, Aves de Rapina, Aniquilação, dentre outros, em reflexo de uma sociedade feminina que quer ser vista sem estereótipos e independentemente do universo masculino.
A reflexão e a conscientização da precariedade estrutural em que a sociedade vem sendo construída e seu reflexo no meio cinematográfico é urgente e necessário, e importante meio de reconhecimento de mecanismos de manipulação a que diariamente somos expostos, e que devem ser, portanto, diariamente enfrentados. Não para nos afastar do cinema, de forma alguma, mas usá-lo, para além do entretenimento, como instrumento de olhar crítico e abrangente, como objeto de estudo a nos engrandecer e nos tornar positivamente exigentes.
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