Capoeira e a violência de gênero; Homens e seus espaços de segurança

Estamos atravessando uma pandemia mundial, em que muitas coisas estão sendo realizadas por meio online. Trabalhos, aulas, terapia, encontros familiares. Para os capoeiristas não tem sido diferente, live, treino online, falas conversas, estudos.

Também aconteceram infelizmente, crescentes denúncias de vítimas de abuso, violações de direitos, fatos que sabemos não são tabu e nem segredo.

Não estou escrevendo sobre para agradar a ninguém, já passei da Idade de me importar com sorrisos falsos. Falo do meu lugar de mulher capoeirista que não comecei ontem, já vi e já fui vítima de violações, já fui desrespeitada enquanto mulher enquanto amiga enquanto capoeirista, na posição de aluna, na maioria das vezes só por ser mulher, grande maioria.

Quem vive essa condição de ser mulher em meio tão masculino e favorável a um gênero só, sabe.

Em alguns grupos não existem condições de diálogos, nem de pensar outros meios para que as violências sejam erradicadas.

Se está questionando o motivo de falar sobre isso? Afinal de contas a capoeira traz tanto benefício para quem dela se aproxima, é até terapia, psicologia, felicidade .Pois bem, não se pode tratar tudo o tempo todo com sorrisos, nem o tempo todo ser gratilux, isso é fortalecer os abusadores, jogar um lençol por cima, deixar rolar por lá, não sendo aqui no nosso clube social está tudo numa boa.

Nunca pensei a capoeira com uma divisão de Angola ou regional, pois todos estamos em todos os lugares, aprendi com o primeiro grupo que fiz parte, que tudo era capoeira, aprendi que na roda você nunca sabe o que está por vir, quem você vai encontrar, como vai ser o jogo. Só consegue fazer isso quem não joga na roda. Por isso estar sempre preparada para qualquer situação é importante, não controlamos o universo da capoeira, não existe entrar em seu condomínio avisar o porteiro que não é para subir ninguém, ligar o alarme passar a tranca e não deixar ninguém chegar. Interação é jogo.

Mas aí vem a pergunta, como estou participando de um grande grupo e não nos ensinam a não cair em lábias, não ficar sozinha com agressores, a não permitir que encostem nos nossos corpos de maneira desrespeitosa?

Já ouvi falar várias e múltiplas vezes que certos assuntos não são da capoeira, será que se eu for uma pessoa bem preparada para responder e ajudar a outros que porventura possam sofrer com os abusadores, eu vou ser bem aceita por esse mundo?

Será que não vou atrapalhar nada? Sim sim sim eu sei que sim. Eu falando sobre, estou impedindo que outras alunas menores de 14 anos não sejam levadas na lábia corrosiva de homens mais velhos, que não destruam sua autoestima atrás de homens lixo, que buscam somente tirar proveito de seu lugar de poder e autoridade.

Eu falando sobre violações de direitos estou informando que seu filho e sua filha ou a sua irmã ou irmão ou amigo não aceite ser tocado, acariciado em silêncio por um adulto. Que não se deve ficar calado nem passar por constrangimentos porque foi o seu Mestre ou algum outro capoeirista mais velho que o fez.

Eu sei que ao tentar resolver falar, trazer a voz do mais fraco, somos desqualificados, tentam tirar nosso espaço, nos dar um papel de invisibilidade, ignoram as nossas impressões, e tudo o mais que venha de nós.

Estou na capoeira há mais de 15 anos, para muitas Mestras e Mestres que conheci e conheço, pouquinho tempo, nada até, mas enquanto mulher negra de pele clara, mãe de três filhos, sinto o esforço que faço, também sei do tratamento que recebo por gostar muito de treinar, de estar de fato presente na capoeira, pois tem sim muita gente, homem mulher que só assina o nome na lista e vai embora. Pois sim ouvimos muito sobre, vai treinar, vai jogar, vai tocar, vai pra roda. Mas em contrapartida quanto impedimento, quanta contrariedade, quantas desistências, desincentivo. Não gosto nem de contar, mas se fizer uma lista capaz virar um livro.

Fico compadecida e triste por toda a vez que alguém desiste da capoeira, por não ter encontrado escuta, por ser barrado por causa do dinheiro, pois em certos clubes sociais pobre e preto não entra. Entra até mas tem que ser manso, bem polido e educado se é que me entende…

As mulheres que relatam ter sofrido de tudo um pouco e não encontram espaço de luta, e sim de ficar calada, aos meninos pobres que buscam outra realidade e encontram abusos físico e psicológico, às pessoas negras que não se sentem representadas no espaço de cultura de matriz africana, a capoeira, as pessoas que buscam transformações melhores para sua vida e encontram autoritarismo e julgamento. Aos donos de escolas que não querem falar sobre, pois só querem alunos, e aluno bom é aluno silencioso.

Espero sinceramente que encontremos uma direção mais orientadora que traga ajuda em um grande coletivo que estamos, precisamos de cura, de evolução, preciso, busco o aprendizado todos os dias que acordo.

Trazer sim bons exemplos, pois o exemplo arrasta e eles existem e muitos por aí, mas é impossível calar, é impossível fortalecer o fortalecido, é cruel e deprimente silenciar o oprimido, é injusto é fora do que capoeira ensina.

Quem sou eu enfim para escrever sobre tudo isso? Apenas uma mulher negra de pele clara, mãe de três filhos oriunda de morro, de uma família totalmente matriarcal, criada pela minha avó, esporadicamente via a minha mãe, pois essa era só trabalho, trabalhava a noite dormia de dia. Que pratica, pratico mesmo, a capoeira, e não pretendo arredar um milímetro dela. Nenhum , pois ela está em mim e vive o mundo comigo, e isso é inegável. Não a uso para guardar na estante com meus livros da academia, não é minha diversão apenas, nem apenas minha terapia. Levo isso a sério, assim como muitos comprometidos com a causa.

Capoeira sempre foi e sempre vai ser a luta do oprimido contra o opressor, sempre teve cor e teve nome.

Como me disse minha mãe, depois que mandei o texto para ela avaliar antes de postar…

“Para cada cabeça, um chapéu do tamanho certo.”

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

 


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