Conheço o chão da escola

Conheço o chão da escola desde quando era chão batido. Brincávamos de escolinha em casa onde havia a carência de piso. Conheço o chão da escola quando passávamos cera e deslizava durante as aulas. Também conheço o chão raspinheiro. Conheço o chão da escola quando fui reprovado durante a alfabetização por conta de a idade não permitir avançar e neste mesmo chão vi uma coleguinha branca com idade igual avançar. Conheço o chão da escola que eu saia da sala para jogar bola de saco plástico em minha escola que hoje está desativada. Após, este chão do campo pôde recepcionar a bola dente de leite que Dainha recebeu de presente de Jane para alegrar nosso intervalo entre as 10:00 e 10:20. Chamávamos de hora da merenda. Mesmo que as vezes esta não se fizesse presente. Conheço. 

Conheço o chão da escola quando minha família não podia comprar caderno e a gente empobrecida ganhava um caderno do governo de capa verde com o hino nacional e com as folhas amareladas. Somente depois de um tempo é que conheci caderno de folhas brancas. Nestes de folha branca a gente usava querosene e óleo de cozinha para decalcar os desenhos dos livros. Este mesmo óleo a gente dividia com a farinha seca e óleo para se alimentar. Sim, conhecedores. Isso foi alimento. Ainda é em muitos lares. Ninguém fica doente de uma vez. E os chãos também mudam. De quem pisa ajudar a mudar. 

Conheço o chão da escola quando na 3ª série recebi a primeira reprovação formal e a segunda na vida escolar. Tempo em que tirar 9,5 na quarta unidade de nada serviu. Depois do chão desta escola conheci o chão do ônibus onde várias vezes vomitei por tomar pela manhã o café com farinha e no caminho com o balanço do ônibus super lotado meu organismos não suportar o trajeto até a cidade de Antônio Cardoso. O chão da escola da sede do município me foi castigante. Naquele chão eu amarguei passar três anos conservado na 5ª série. Reprovado por um chão que eu desconhecia é que não consegui decifrar pela lupa da esfinge que ainda assombra algumas escolas. Naquele tempo eu estudava pela manhã e fui reprovado. Mudei para a tarde. A tarde fui reprovado. Voltei para a manhã onde consegui ser aprovado. Foi o tempo em que conheci professoras pretas. Neste mesmo chão a professora que eu mais admirava, uma branca, numa apresentação disse que eu tinha bichos dentro do cabelo. Numa apresentação um coleguinha pegou luva para tocar em meu cabelo black e todos riram. Eu ri de vergonha. Tipo aquele riso que os olhos lacrimejam. Uma exímia professora ela era, que me reprovou até eu me cansar dela. 

Conheço o chão da escola das recuperações. Fiz várias. Quem ver minha ficha 18 e 19 vai se confundir com a menstruação naqueles papéis. Achará tanta nora vermelha que imaginara que era um presságio para eu me tornar um homem preto de esquerda. Pois a cor vermelha é a cor da esquerda. Sou um homem de esquerda. Conheço o chão da escola que eu tinha as piores notas e no vestibular fui aprovado numa sala que havia 55 estudantes. Alguns não fizeram neste mesmo período que eu fiz. Desde aí aquele chão começou a me deixar inculcado com esta coisa de nota e avaliação. Este chão me recebeu um ano após para ser colega dos professores que me odiava e não escondia. Passei a frequentar o meu calvário: o conselho de classes onde o ódio de alguns aumentou. E eu… nunca comi do ódio de ninguém. Cheguei a desafiar colegas para dizer que seu método de ensino não servia e criava mais desigualdades. Conheço chão de escolas desde a alfabetização, primeira, segunda, terceira e quarta séries juntas eu sendo professor na primeira experiência. As chamadas salas multisseriadas. Conheço também os chaos das escolas de estudantes empobrecidos e rejeitados. Conheço o chão das grandes estudantes que vi passar no vestibular e me agradecer pelo incentivo. Os chãos das que não acreditavam ser possível estudar na universidade e depois de aprovada me deixar os olhos marejados de reconhecimentos lindos. 

Conheço o chão do lado da libertação dos estudantes mais empobrecidos. Há um chão que não conheço. Prefiro não conhecer. 

Prefiro me afastar dos chãos em que o silêncio é uma regra e a mudez é uma qualidade. Não quero os chãos em que os conteúdos são maiores do que a formação integral. As duas devem andar juntas e os conteúdos devem ajudar a libertar a quem frequenta estes chãos. Assim eu penso, atuo e defendo. Os chãos em que somente um sabe não me cabe. Os chãos que me felicita são aqueles que os olhos de quem ensina e de quem aprende brilham. Nestes chãos também tem conflitos, discordâncias. Há aulas nestes chãos que a gente planeja e os estudantes não querem assistir e não gostam. Nos deixam bem tristes. Mas, a gente ganha para fazer este serviço da oferta. A gente é pago e não está ali fazendo um favor. Estamos sendo remunerados para ensinar conteúdos e sonhos. Tive muitos dias de dificuldades. Nenhum foi maior do que os dias de felicidades. Pois, neste chão também tem amor. Muito amor e responsabilidade. Era de onde eu vinha. E ainda que não viesse daquele mundo eu tinha obrigação profissional com meu quefazer. Conheço chaos de ao menos 15 escolas em 8 municípios. Conheço também os chãos das escolas de educação não formal e informal. Foram estes chãos que me ensinaram a plantar. Plantar sonhos em gentes. Estes chãos me fizeram a ter lado na vida e saber que se a educação não liberta ela aprisiona. Me fez compreender que notas as vezes não nota a quem não aferiu a nota. Pois, muitos dos que não tem nota não são notados diariamente. Eu fui um destes não notados. Tai, um debate que gosto, faço e disputo: as notas nos chãos das escolas. Por chãos onde se planta amor, carinho, solidariedade e libertação … sigamos! 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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