Antes de voltarmos a ‘vida normal’ depois do fim da pandemia, precisamos justamente pensar em como iremos conversar acerca do mundo que queremos. Mas como fazer isso? Vamos aqui, de maneira ideal, propor pequenos encontros com vista ao conhecimento entre as pessoas e a formação de grupos. A primeira proposta é que em grupos de uma mesma quadra ou rua, duas ou três famílias de vizinhos, procurem um lugar debaixo de uma arvore, ou embaixo de um viaduto. Façamos a roda. Se ela ficar muito grande, pode-se fazer uma roda dentro da outra como um caracol. No centro, pode-se colocar imagens de santos/orixás das preferências das pessoas envolvidas, ou mesmo imagens de parentes, assim como os instrumentos e as bebidas. Os instrumentos podem ser de ‘samba, de funk, de raggae, de rap ou de rock and roll’. Quem quiser pode usar o corpo como instrumento, como faz os Barbatuques, ou a voz.[1]
Um por vez canta e toca a música que expressa o que está sentindo/pensando no momento, todos, com seus respectivos instrumentos, tocam de modo que cada um ouça o puxador, seu próprio instrumento e os instrumentos dos outros (não é fácil, mas ninguém falou que seria). Todos devem estar com os ouvidos atentos para conseguir a harmonia de todos os sons. Pode-se escolher qualquer música, qualquer ritmo. Também vale misturar os ritmos, tocar um samba com ritmo de forro, um sertanejo com ritmo de samba enredo. Vejamos alguns dos conselhos do grupo Fundo de Quintal ou de grupos e pessoas ligadas a sua tradição:
No início, pode parecer difícil, mas fazendo um sacrifício será bem recompensado.[2] Além do mais, o samba está em nossas veias pois ‘todo brasileiro tem sangue criolo, tem cabelo duro’.[3] O samba vem da batida do coração, só (e não é pouco) precisamos (re)aprender a ouvir, a cantar, a dançar, porque o samba marca como um giz numa lousa que de tanto insistir fica gravada na alma.
De tempo ao tempo, pois o seu próprio tempo todo mundo tem. É tempo de união / é tempo de amar alguém / não espere pelo tempo que tempo é dinheiro não espera ninguém (…) o samba expulsou a tristeza / a felicidade chegou / chegou batucando na mesa a cadência do samba que tempo ensinou.[4]
Pois é, nesses momentos que se começa (ou termina) uma amizade, é chorando o seu choro, é sorrindo o seu sorriso, dando graças por você existir, amigo.[5]
Iniciada a conversa, não estamos mais sozinhos, pois já não é conversa de um ou dois / sem essa de vamos deixar pra depois / (…) O povo abra e roda dança aqui ali e acolá /
Um só voz na ciranda / canta pra melhorar / Do Oiapoque ao Chuí ciranda / Ciranda povo sem fraquejar / De marajó aos confins do pampas / Ciranda povo pra melhorar.[6]
O cacique de ramos é a planta onde todos os ramos, todos os componentes, cantam com e como os passarinhos, em plena comunhão com a natureza. É lá que o samba é erguido, é lá que o samba é levantado e até a grande árvore que gera as tamarindos, guardam a poesia que, depois de escolhidas, vão para as ruas alegrar o povo. Para ser compositor no cacique é preciso ouvir a poesia debaixo das tamarineiras e fazê-las soar nos instrumentos e, assim, se emocionar e emocionar a massa no fundo do quintal do coração. A roda do cacique é ao mesmo tempo uma festa brilhante e uma jóia rara que é fácil de se achar, basta ir aos subúrbios que veremos que lá, onde toca-se fundo de quintal e diversos outros sambistas, temos um doce refúgio para cantarmos a vida, já que nossa sociedade, dita organizada, não consegue fazer isso.[7]
A batucada do fundo de quintal, embaixo de tamarineira, começa. Os deuses tiram as nuvens que encobrem a lua cheia. Ai o samba incendeia até encandear (ofuscar) para podemos ouvir e bater na palma da mão, pois todos temos samba na veia, todos que temos descendência africana. As palmas marcam enquanto os melodistas brincam com os deuses trazendo a emoção, a empolgação, o arrepio.[8]
A ciência, supostamente a senhora do saber, não comprovou, mas viu a eficiência do samba, basta ver a saúde dos sambistas. Aliais, o samba é o único remédio sem contra indicações, sem efeitos colaterais, contra a melancolia e o tédio.[9]
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[1] Paull Zuntor diz que a voz é nosso instrumento mais antigo.
[2] Música: seja sambista também de fundo de quintal.
[3] Referencia a música olhos coloridos da Sandra de Sá.
[4] Música: tudo tem seu tempo do Fundo de Quintal.
[5] Música: Amizade do Fundo de Quintal.
[6] Música: Cirando do Povo do Fundo de Quintal.
[7] Música: Doce refúgio do Fundo de Quintal.
[8] Música: Lá debaixo da tamarineira do Fundo de Quintal.
[9] Música: O poder de curar do Fundo de Quintal.