Vivas nos queremos: Pelo fim da cultura do estupro e punição aos assediadores

Uma mulher sabe bem a diferença entre carinho e agressão.

por Danyella Proença no HuffPost Brasil

rudall30 via Getty Images
“É claro que não consegui assistir aula alguma. Eu só chorava.”

Há 14 anos, numa tarde qualquer que tinha tudo para ser de poesia e leveza, minha vida virou de cabeça para baixo. Eu estava no laboratório de fotografia da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), onde estudava jornalismo. Naquele dia, resolvi revelar alguns filmes em preto e branco num processo artesanal, com químicos específicos e luz vermelha. Era o tempo da imagem sendo respeitado, eu pensava, na minha inocência e encantamento.

Para isso, pedi auxílio ao técnico do laboratório, um senhor de cerca de 60 anos, boa praça, que dominava como ninguém seu ofício. Tanto que estava ali havia mais de 30 anos, como gostava de contar.

Aliás, ele gostava muito de contar histórias para os calouros recém-chegados na universidade. Falava sobre as ex-alunas famosas, fazia comentários sobre a rigidez de determinadas professoras, sempre atribuindo alguma pitada sobre a vida (ou a não-vida) sexual dessas mulheres.

Meu radar deveria ter apitado aí, mas eu era apenas uma menina de 20 anos. Que pena que palavras como empoderamento e sororidade não eram ditas aos quatro ventos naquela época.

Quando o abracei, ele me segurou forte pelos braços, não me deixando sair.

Eu estava feliz. O sorriso da minha mãe de braços esticados, segurando uma borboleta, começava a surgir no papel fotográfico. Neste momento, eu chamei meu algoz. Perguntei o que ele achava: se eu deveria deixar a foto alguns segundos a mais no revelador ou se já deveria tirar. Ele, sempre tecnicamente certeiro, me disse para deixar mais dois segundos.

A foto ficou perfeita. Nem clara, nem escura demais. Eu o abracei para agradecer, como quem queria dizer: “você é incrível!”. Todos os alunos, na verdade, o achavam incrível. Ele era uma unanimidade. E eu não via perigo algum nesta figura incrível.

Quando o abracei, ele me segurou forte pelos braços, não me deixando sair. Logo, me beijou à força e passou a mão na minha bunda. Eu estava petrificada. A violência da língua dele, quente, dentro da minha boca, é algo de que tento esquecer todos os dias. Eu simplesmente não consegui reagir. Fiquei em estado de choque. Depois de intermináveis segundos ou minutos, não sei, ele me soltou. Falou: “desculpas, foi um impulso, continua revelando suas fotos”. E saiu do laboratório.

A violência da língua dele, quente, dentro da minha boca, é algo de que tento esquecer todos os dias.

Naquele lugar escuro, que antes era meu refúgio, eu segui o comando dele feito um robô. Revelei ainda mais três fotos, sem pensar, como um zumbi. Até que, enfim, eu caí num choro convulsivo. Eu tremia sozinha, olhando para as minhas porcarias de foto, e pensava: por que isso foi acontecer comigo? Será que foi a roupa que eu estava usando? Será que eu não devia tê-lo abraçado? Será? Será?

Tentei andar até o meu carro e dirigir para casa, mas não conseguia parar de tremer. Liguei para uma amiga que foi fundamental para me dar apoio neste momento. Foi para a casa dela que consegui dirigir. Foi ela quem disse que a culpa não era minha e me convenceu a contar tudo na faculdade no dia seguinte.

Por que isso foi acontecer comigo? Será que foi a roupa que eu estava usando? Será que eu não devia tê-lo abraçado?

Arquivo Pessoa/ HuffPost Brasil – l Eu, Danyella Proença, em protesto com cartaz que explica como tratar uma mulher- com respeito

É claro que não consegui assistir aula alguma. Eu só chorava. Neste momento, eu já tinha ao meu lado, além dela, a minha prima e hoje ativista pelos direitos das mulheres. Elas foram comigo até a diretoria da Faculdade de Comunicação. A então diretora, mulher, foi ouvir a versão dele e voltou dizendo o seguinte: “Ele disse que você se confundiu. Que foi apenas um carinho no seu cabelo”.

Segunda violência. Uma mulher sabe bem a diferença entre cabelo e bunda, entre carinho e agressão. Resolvi sair dali e registrar um boletim de ocorrência na Delegacia de Proteção à Mulher (DEAM). Tive a companhia da minha mãe e foi muito dolorido, aliás, compartilhar essa experiência com ela. Éramos ambas feridas abertas, envoltas num tanto de memórias nunca verbalizadas. Ah, se já houvesse ali o #MeToo…

Na delegacia, vivi a terceira violência. A atendente, que era uma mulher, me perguntou o que havia acontecido comigo na frente de todas as pessoas que ali aguardavam. Eu contei. Ela me olhou e indagou de forma automática: “tá, mas foi só isso?”. Alguns anos depois, na terapia, aprendi a dimensão da ideia de “desqualificar” algo ou alguém. E foi exatamente isso o que aconteceu ali, naquele espaço que deveria me acolher. Minha dor foi desqualificada.

Segunda violência. Uma mulher sabe bem a diferença entre cabelo e bunda, entre carinho e agressão.

Talvez porque eu estivesse viva. Talvez pela falta de roxos ou arranhões. Talvez por não ter sido penetrada. É por permitirmos as menores violências que a cultura do estupro se perpetua. Eu me recusei a entender o que havia acontecido comigo como “só isso”. Mas e quantas mulheres, após vencerem a primeira barreira e terem a coragem de denunciar, não esmorecem diante de uma abordagem como esta? Precisamos rever todo o sistema.

Pelo meu caso, o técnico foi condenado a pagar algumas cestas básicas. Mas eu continuava a ter o desprazer de encontrá-lo nos corredores da faculdade e deixei de usar o laboratório de fotografia, que eu tanto amava. Mesmo com a minha denúncia, ele não foi afastado. O argumento oficial, pelo que eu soube, é que seria muito difícil encontrar algum técnico com a experiência e capacitação dele.

Diante dessa decisão do colegiado, passei 2 anos convivendo com o inimigo. Vendo o sorriso sarcástico dele ao me encontrar nos corredores. A cada passo em minha direção, eu revivia todo o pesadelo. Taquicardia, tremedeira. Medo.

Chegou o momento da minha formatura. A turma reuniu-se para decidir quem seriam os professores e funcionários homenageados. Todos, menos eu e minha amiga que sabia da história, votaram nele. Eu argumentei que tinha motivos muito sérios para querer que ele não fosse homenageado. Fui voto vencido. “Ah, mas ele é o cara mais legal da Faculdade de Comunicação!”, alguém retrucou.

Não consegui dizer ali, na frente de todo mundo, o que havia acontecido comigo 2 anos antes. No entanto, eu não conseguiria apertar a mão de quem me violentou. Era preciso, novamente, sair da minha zona de conforto. Escrevi um e-mail para a comissão de formatura relatando todo o caso. O e-mail vazou, obviamente, e algumas pessoas passaram a me procurar dizendo saber de casos antigos.

A cada passo em minha direção, eu revivia todo o pesadelo. Taquicardia, tremedeira. Medo.

A raiva voltou a guiar meus sentimentos. Raiva e vontade de fazer justiça. Peguei o telefone dessas pessoas, liguei para muitas meninas, conversei via MSN (a tecnologia da época mais próxima do WhatsApp de hoje), juntei mil peças de um quebra-cabeças. Muitas vítimas não queriam falar comigo por medo. Alguns casos haviam acontecido 10 anos antes. A maioria, infelizmente, já tinha prescrito. Em uma semana, reuni ao menos 7 casos concretos.

O mais recente deles, que ainda poderia gerar um Boletim de Ocorrência, havia acontecido na semana anterior à minha apuração. Era a irmã de um colega. Ela foi abusada durante uma viagem, em que a turma de fotografia foi até a Cidade de Goiás numa saída de campo acompanhadas por quem? Pelo técnico que havia sido denunciado por mim anos antes.

Se isso não nos escandalizar, eu honestamente não sei mais por onde anda nossa indignação.

Essa outra menina – também na faixa dos 20 anos – foi agarrada, beijada à força, teve o corpo apalpado. Todo o mesmo roteiro que eu conhecia tão bem. Isso tudo aconteceu quando o ônibus parou na estrada e ela se viu sozinha com o nosso algoz.

Nosso algoz.

Quando soube dessa história, me senti imediatamente responsável por essa garota. Liguei para ela, que ainda estava com muito medo. Foi preciso muito acolhimento até convencê-la a registrar um Boletim de Ocorrência, o que faria com que ele não fosse mais réu primário.

Fui com ela até a delegacia. Juntas. Eu não sabia o que significava sororidade. Mas, quando olho para trás e vejo como nos fortalecemos juntas diante da nossa dor, vejo que era exatamente isso o que vivíamos.

Queria que mais nenhuma mulher precisasse passar por isso. Que nossos corpos não fossem desrespeitados.

Ela registou a ocorrência. Eu fiz uma espécie de dossiê com todos os casos que havia apurado e encaminhei para a reitoria da UnB. Um tempo depois, ele foi afastado. Mas soube, por meio de uma rápida pesquisa no Google, que ele continua lotado na instituição.

Confesso que isso ainda me dói. Queria que ele tivesse sido exonerado. Queria que mais nenhuma mulher precisasse passar por isso. Que nossos corpos não fossem desrespeitados. Que não tenhamos de ser violentadas pelo simples fato de sermos mulheres.

Hoje tenho 34 anos e estou bem mais atenta aos sinais dos tantos Barbas Azuis que encontramos pelo caminho. Figuras boas-praças, divertidos, bons profissionais, talvez bons pais. É difícil saber ao certo quem será um assediador. Por isso precisamos estar cada vez mais atentas e fortes. E juntas.

É isso o que mais me deixa feliz ao constatar como os tempos mudaram desde aquela tarde no laboratório de fotografia. Hoje, sabemos que não estamos sós e não toleramos mais nenhum tipo de abuso. Nada mais será considerado “só isso”. Nossos corpos, nossas regras.

Nenhuma relação de poder vai nos intimidar mais. Passamos pelo #MeToo, pelo #MeuAmigoSecreto, pelo #NiUnaMenos, pelo #EleNão. Vimos serem denunciados homens como o médico Roger Abdelmassih, o produtor hollywoodiano Harvey Weinstein e, agora, o médium João de Deus. Todos poderosos. Todos usaram sua influência para coagir suas vítimas. E todos, de uma maneira ou de outra, defenderam-se dizendo que havia um complô de mulheres ressentidas que faziam as denúncias apenas para prejudicá-los.

Tristes, loucas ou más. Não é assim que tão bem diz a canção? É este o retrato que ainda tentam fazer de nós quando buscamos forças para denunciar. Um recado: essa desculpa cola cada vez menos e espero viver até o dia em que ela não convença mais ninguém.

A casa de vocês, assediadores, vai cair uma a uma.

E nós, mulheres, estaremos juntas, curando nossas feridas, dando suporte umas as outras. E seguiremos denunciando.

Porque vivas e inteiras nos queremos.

Juntas, aplicativo de Enfrentamento a Violência contra Mulher – Clique na imagem e acesse o aplicativo JUNTAS

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