Wole Soyinka: ‘Quando entro em um museu europeu, quero roubar de volta o que me pertence’

Em passagem pelo Rio, nobel de literatura nigeriano fala de exageros na afirmação da negritude e apropriação de acervos africanos

Aos 88 anos, o dramaturgo, poeta e romancista nigeriano Wole Soyinka passou por 20 horas de voo para chegar anteontem de manhã ao Rio, saindo de Lagos com escala em Milão, bem no Dia Mundial da África. À tarde, sem aparentar cansaço, apareceu no Armazém Utopia (na região portuária) para participar de sua conferência no Back2Black, festival do qual é uma das principais atrações. O primeiro escritor negro a vencer o Nobel de Literatura (1986) cativou a plateia com sua fala sobre os diálogos entre o Brasil e a África e as possibilidades de recriação das imagens de seu continente.

Soyinka (pronuncia-se chouínca) tem apenas dois livros publicados por aqui: a peça “O leão e a joia” (Geração Editorial) e o memorialista “Aké, os anos de infância” (Kapulana). É pouco, ainda mais considerando sua relativa familiaridade com o país. Embaixador da Unesco, fez parte da comissão que concedeu ao Cais do Valongo o título de Patrimônio Mundial da organização.

Viajante obstinado, Soyinka roda o mundo sem nunca abandonar seu papel de ativista, crítico de sucessivos governos nigerianos. De acordo com um velho provérbio iorubá, citado pelo escritor em um de seus livros de memórias, “quando alguém se aproxima do status de ancião, torna-se complacente com as batalhas”. Não é o caso dele.

— Há pessoas que nunca aprendem a envelhecer. Eu sou uma delas — disse em entrevista ao GLOBO.

Milhares de escravizados vindos da África chegaram ao Brasil pelo Cais do Valongo, aqui no Rio. Que sentimentos este lugar lhe traz?

É sempre uma viagem de descoberta, esse espaço em que escravos desembarcaram como mera mercadoria. Estive lá há muitos anos, no início da escavação, quando todos os vários itens foram desenterrados, limpos, tabulados. A memória traz o desafio de entender o próprio conceito de memória e o que é sagrado. O que é passado de geração em geração? Para mim isso inclui até mesmo a água, e tudo aquilo ainda não foi descoberto.

Qual a sua opinião sobre um possível museu da escravidão no local?

Nunca fui entusiasta de museus. Parecem petrificados para reter a história em um determinado momento. São úteis para instruir e oferecer o acionamento da memória e uma orientação ao futuro, mas ao mesmo tempo tendem a amortecer sensibilidades. São bons especialmente por continuar nos lembrando de certos relacionamentos infelizes entre uma comunidade e outra.

O que acha dos esforços de museus americanos e europeus para devolver artefatos a seus países de origem?

Cada vez que entro em um museu europeu e vejo artefatos africanos, quero roubar de volta o que me pertence. Recentemente, a Itália devolveu à Etiópia um obelisco de Aksoum (roubado por Mussolini na Segunda Guerra) e o significado deste monumento para os etíopes está além do que você e eu conseguimos entender.

Há uma famosa frase sua: “O tigre não mostra a sua tigretude, ele ataca”. É uma crítica a algum conceito de negritude?

A negritude é um nobre esforço de retomar a essência do ser africano, que foi distorcida por forças externas. O problema, claro, é que, quando você está articulando qualquer questão sua, sempre há uma tendência de exagero na representação das coisas em termos de preto e branco, em vez de reconhecer suas diferentes tonalidades. Então, não é surpreendente que a negritude tenha exagerado na direção de uma dicotomia, a de que preto é emoção e branco é racionalidade. Não precisamos colocar músicas e danças sobre tudo. Podemos, como o tigre, apenas nos impor na floresta.

A analogia acabou sendo mal interpretada pelos africanos?

Não era para ser uma rejeição da negritude em si mesma. Na relação entre o colonizado e os colonizadores, é importante que avancemos nas duas posições, a de negritude e de “tigretude”. Podemos ser os dois lados da mesma moeda, apenas articulando de maneiras diferentes e em áreas diferentes.

Ao vencer o Nobel de Literatura, em 2021, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah disse que não precisava representar a África, pois só representava a si mesmo. Concorda?

Não tenho nenhum problema com essa ideia. Na verdade, gostaria de ter esse temperamento na minha vida, seria muito mais simples.

Por quê?

Quando passamos pelo período de libertação após a colonização, ideologia e arte eram vistos como a mesma coisa. Se você não fosse combativo, era decadente. Isso é nonsense. Criatividade é uma atividade social. Algumas pessoas vão em uma direção sem se preocupar com nada, outros querem ampliar horizontes, outros querem combater o mal. Para mim, é a totalidade disso tudo que move o meu instinto artístico.

Sua educação política foi influenciada por sua mãe e sua tia, que é mãe de Fela Kuti. O que acha da música dele?

Sim, ele é meu primo, como muitos sabem. Gosto de algumas coisas dele. Acho-o muito inventivo, mas gosto mais dele como um maverick (dissidente) do que como músico. Meu gosto musical é mais conservador, gosto de música tradicional (iorubá).

Entre os anos 1960 e 1970, o senhor ficou 22 meses preso na Nigéria por conta de suas posições políticas. Considera-se um dissidente?

Oh, eu não me descrevo, deixo os outros me descreverem. (risos)

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