Fonte: Afropress –
por: Dojival Vieira
O Brasil não é um país fácil de entender, nem sua interpretação obra para amadores. Há mais coisa entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia, diria Sheakespeare.
Não se deve atribuir apenas aos talentos para o negócio de eventos do afro-reitor José Vicente, da Unipalmares, o milagre da multiplicação de juntar em um espaço chique de S. Paulo – a sala S. Paulo – , negros ricos e famosos, lado a lado com a elite econômica e política do país para celebrar Zumbi dos Palmares.
Não se negue que Vicente, na linguagem antenada empresarial, é “focado” no que faz: atrair dinheiro de poderosos para negócios – em que negros seriam os supostos beneficiários, seja por meio de bolsas de estudos, seja por intermédio de empregos e estágios nos bancos. Dos Governos, pede-se parcerias, que na prática significam para jovens negros, a esperança de um modelo de inclusão pela porta dos fundos.
Em troca distribui com rara generosidade, através da ONG que fundou – a Afrobras -, comendas a personagens do mundo político e empresarial. De Sarney, o presidente do Senado e dono do Maranhão, ao poderoso presidente da Federação Brasileira de Bancos, Fábio Barbosa, passando por ministros, governadores, ex-governadores etc, etc, etc.
Consenso tão raro quanto extraordinário não é obra do acaso, nem de talento e esforço pessoal.
Ex-delegado da Polícia de S. Paulo, Vicente tornou-se empresário de sucesso e uma espécie de unanimidade negra entre os grandes do mundo empresarial e da política dominante. A festa do Troféu, que este ano, entrou em sua sétima edição, é um momento de glamour em que, negros bem sucedidos – e ricos – do mundo da música e da televisão, ao lado de anônimos com smokings alugados, misturam-se a personagens brancos e descolados, para celebrar a “Raça”.
Há, contudo, um dado difícil de entender e mais ainda de explicar e aí começa uma das facetas que convém desvendar para a tarefa de se entender o Brasil: porque os mesmos personagens que se beneficiam do racismo institucional e da herança maldita de quase 400 anos de escravismo, e que no seu dia a dia, abominam essa história de cotas, de ações afirmativas, de igualdade de oportunidades, só nesse dia – e apenas nesse dia -, acorrem com inusitado interesse aos apelos de Vicente?
O que teria de especial, o afro-reitor para unir em um dia – anual e religiosamente – uma constelação tão heterogênea?
Vejamos: o presidente da Febraban, por exemplo, um dos sempre homenageados em festanças e comendas que levam o nome de Zumbi dos Palmares. O banqueiro Lázaro Brandão, uma das estrelas da sétima edição do Troféu, apresentado como o “Oscar” da Comunidade Negra.
A poderosa Federação dos banqueiros se beneficia da prática sistemática e contínua da discriminação na sua política de recursos humanos e de pessoal, conforme denunciou, inicialmente o Ministério Público Federal do Trabalho. A própria Febraban, pressionada, encomendou junto ao CEERT a confecção de um censo, como parte de um Mapa da Diversidade – transformado em lustosa peça de propaganda e marketing – em que confessa pagar a pretos e pardos salários 64,2% inferiores, em média, aos pagos a funcionários não negros.
Que razões levariam os banqueiros Barbosa e Brandão a homenagear Zumbi? Bondade? Filantropia? Marketing para camuflar esse negócio rentável de tirar com a mão da discriminação e dá com a outra em forma de benemerência?
E quanto aos membros da elite política do país, todos solícitos a atender os convites de Vicente para essa versão negra dos “Bailes da Ilha Fiscal”, como ficou conhecido a última festança do Império antes do advento da República? O que faz governadores como José Serra, Sérgio Cabral (cuja presença chegou a ser anunciada), o presidente Lula, o prefeito Kassab, o ex-governador Alckmin, acorrerem tão prestimosamente às homenagens a Zumbi – esquecendo – ainda que por um momento – as divergências políticas e ideológicas que os separam?
Por que o consenso tão raro de contrários não produz o milagre de, entre parcerias, sempre anunciadas com pompa, a adoção de políticas públicas de, fato inclusivas, capazes de reduzir o abismo de desigualdades que separam negros e não negros?
O que na verdade explica o consenso obtido por Vicente chama-se marketing. É um grande negócio escamotear os efeitos das políticas discriminatórias que resultam em acumulação de lucros nas empresas; é também um extraordinário marketing associar-se a negros bem sucedidos e famosos em trajes de gala e tapetes vermelhos e limusines – ao velho estilho dos negros norte-americanos, para mandar aos negros de baixo, ao menos uma vez por ano, um sinal conveniente: estamos juntos. A Casa Grande e os Donos da Senzala unidos pelo mesmo ideal de um Brasil que camufla e esconde a Casa Grande e a Senzala em pleno século XXI.
Pura esperteza, diriam uns. É só ideologia, cujo papel é precisamente esse, o de escamotear, esconder, camuflar, dizemos nós.
O que se vê nas festas de Vicente (Troféus e Comendas) – e na profusão de artistas e celebridades e subcelebridades globais desfilando seu glamour, não é outra coisa senão a versão de um pacto sócio-racial por cima – conveniente para os de cima – inclusive, para elite negra que a ele aderiu e que recebe, em contrapartida, fama e negócios. Zumbi e os de baixo nada tem a ver com isso.
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