JOSÉ VICENTE
A LUTA dos negros na denúncia e no combate à discriminação e ao preconceito racial e a colaboração destacada de organismos civis e governamentais na produção de informação, sensibilização e ações inovadoras têm conformado uma nova visão de mundo e operado profunda e consistente transformação de crenças e valores na nossa sociedade.
Zumbi dos Palmares, líder da resistência negra por 300 anos, tido como renegado, hoje faz parte do panteão dos heróis nacionais, e o aniversário de sua morte -20 de novembro- é comemorado com feriado em centenas de municípios brasileiros e no Estado do Rio de Janeiro. A denominação preta, parda ou negra, antes objeto de constrangimento e, em alguns casos, tida como agressão, hoje é fonte de autoestima e pertencimento, de forma tal que a maioria dos brasileiros estampa orgulhosamente essa sua condição.
Mesmo a telenovela, outrora palco permanente do escamoteamento da miscigenação e fonte da reprodução dos estereótipos negativos do lugar dos negros na cena social, coloca como mocinhos da vez nas três principais novelas -no caso, mocinhas- mulheres negras.
Fruto do trabalho hercúleo de todos os brasileiros, o país pós-redemocratização, ao se comprometer com os valores fundantes da democracia, da justiça e da equalização de oportunidades, promoveu e construiu um ambiente de maturidade e aperfeiçoamento da sociedade e de suas instituições. Consolidou a democracia e reconstruiu a economia. Criou uma nova história.
Credor do FMI, exportador de multinacionais, nova paixão do capital internacional, o Brasil, da Copa do Mundo, da Olimpíada, das megaproduções minerais, agrícolas e automobilísticas e potência petrolífera do pré-sal, confirma em gênero e grau que é abençoado por Deus e bonito por natureza.
O Brasil país do futuro tornou-se velozmente país do presente. Nasce, assim, um novo país, uma nova cultura, embalada numa nova mentalidade.
Soerguidos pelos sentimentos de identidade e pertencimento, descobrimos um país só nosso, único e extraordinário. Um país que ginga, que cria, que se reinventa e surpreende. Um país que potencializa suas energias e, na luta e na raça, avança e supera mesmo os limites imponderados. Nasce, assim, uma nova realidade. Um novo e fulgurante trem da história chega à estação transbordante de possibilidades, carregado de oportunidades.
Essa é a nossa nova e grande chance de reconstruir a nação. De reforçar os fundamentos de unidade, de ampliar e aprofundar o sentimento de coesão, da autoestima. De corrigir os equívocos e injustiças do presente, de reparar as graves omissões do passado.
Sabemos antecipadamente que o mercado e o capital internacional não farão isso por nós e sabemos também que o Brasil, potência do presente, não terá futuro se insistir em ser gigante com pés de barro. Identidade e pertencimento são, assim, a síntese, a evidência e a apresentação acabada e esclarecedora do novo sentido do povo brasileiro. Sem identidade não existe igualdade. Sem identidade e pertencimento não existe Estado ou nação. Não existe país. Essa é a nossa nova consciência que devolve o Brasil ao seu leito natural.
Acordados de um sono profundo, podemos agora enxergar o mundo real e maravilhoso que sempre esteve diante nós. Somos um país de homens e mulheres de muitas origens e de todos os matizes. Somos negros, brancos, verdes e amarelos. Somos diversos. Somos diferentes e nos sentimos felizes e orgulhosos da nossa identidade. Somos fortes e potência porque trabalhamos coletivamente para o progresso e a riqueza da nação.
Morremos e matamos por nosso país e energizamos nossa autoestima quando nos sentimos respeitados e nos vemos nele representados. Unificados, seremos imbatíveis e insuperáveis. Faremos mais e melhor. Seremos mais alegres e felizes. Seremos mais criativos e surpreendentes. Juntos e misturados, seremos uma nação de todas as cores, uma nação verdadeiramente miscigenada.
Potência sustentável permanente será o Brasil de que todos os brasileiros possam participar sem serem distinguidos ou omitidos pela cor da pele. Essa é nossa nova mentalidade, a nova consciência que pode e deve ser consolidada como valor efetivo, traço cultural e destino manifesto da nova história brasileira.
Consciência, esse é o novo trem da história. Se perdermos esse trem, só amanhã de manhã.
JOSÉ VICENTE, advogado, mestre em administração e doutorando em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, é presidente da ONG Afrobras e reitor da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares.