Experiência de dor, resistência e liberdade: Pequenas Histórias de Escravas Fugidas

Não são expressões de própria lavra de escravas no Rio de Janeiro oitocentista, mas escritas da imprensa que expõem poderes, resistências, dispositivos de “captura do corpo e de imposição de identidades naturalizadas”. Avisos de fuga de cativas exprimem a agonia e força da ordem escravocrata. Aqui, a escrita é da historiadora que procura “problematizar a diferença e escutar o outro”, ou exercitar a re-significação do passado na análise de discursos acerca de mulheres que escaparam, ainda que não registrassem, elas mesmas, suas agruras, alianças e negociações em relação aos poderes do patriarcado na experiência da monarquia constitucional escravista.

Publicadas diariamente nas páginas do Jornal do Commercio, periódico que circulava na capital da Corte no século XIX, as imagens de escravos “fujões” modeladas nos avisos não estavam revestidas da pele de heróis ou heroínas e, aos olhos da época, mais revelavam o espectro de corpos semoventes de uso (e abuso) privado em suas marcas singulares. Eram, portanto, figuras carregadas da reprovação de anunciantes que precisavam detalhar as características dos corpos que escapavam – mercadorias, propriedades, capitais perdidos -, na tentativa de recuperá-los. Figuras desenhadas sob certas marcas que compunham a representação de cada uma das “peças”, em espaços reservados para indicar bens, patrimônio, até mesmo rendas, que as elites proprietárias não queriam perder. Trata-se de uma perda, que, naquela evidência cotidiana e expressiva, todavia, exibia tensões sociais, outras forças em movimento e a fragilidade do regime e da dominação.

Daí porque, geralmente anônimas nos anúncios de venda e aluguel, as mulheres escravizadas apareciam nesses avisos designadas por seus nomes. Em meio à descrição das características de aparência física que configuravam cada uma, seus nomes seriam ferramentas necessárias no arsenal de trabalho de caçadores urbanos, na intenção de que, municiados com os traços que singularizam e distinguem corpos que escapam, caçadores pudessem recuperá-las e a ordem pudesse ser recomposta.

Ademir Gebara acrescenta um dado importante sobre os critérios que orientavam aquela descrição. Ele observa que, após 1870, a construção de ferrovias, o movimento da fronteira agrícola, a elaboração de uma política imigrantista e o próprio crescimento urbano contribuiriam para o enfraquecimento dos mecanismos de controle social. São mudanças que transparecem nas atitudes de proprietários e na formulação dos enunciados, que (…) ao anunciarem fugas através da imprensa, passam a descrever os fugitivos mais cuidadosamente – enfatizando suas qualificações profissionais e as possíveis articulações sociais dos fugitivos. 2

A despeito do controle da ordem escravista ou de seu enfraquecimento, ele lembra, os avisos pareciam também sinalizar para a necessidade de mão-de-obra para o trabalho. Portanto, a questão leva a crer que, àquela altura, a fuga representava também a disponibilização de força de trabalho, no caso mão-de-obra em circulação.

Tensão e controle são faces daquela sociedade que se explicitam em discursos da imprensa, do mercado, das instituições sociais no âmbito das províncias do Império e do regime monárquico em geral, abrigam/revelam jogos movediços e expressam relações que estão cada vez mais tensas na segunda metade do século XIX. Afinal, desde a independência do Haiti, em fins do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, a questão da manutenção da escravidão e a possibilidade de sua extinção não deixaram de ser objeto do discurso social, não só na capital e nas províncias da Corte imperial, mas na maior parte do continente americano3.

Os avisos podem ser tomados como um front e uma trincheira, e também um aparato de luta de proprietários, de comerciantes de escravos, em suma, de elites econômicas e políticas, para manter o poder e resgatar seu patrimônio naquela batalha cotidiana. As peças gráficas que reúnem o elenco de traços que as identificam representam, portanto, parte de uma tecnologia política de produção e manutenção do regime, voltada para a recuperação de corpos escravizados. Uma tecnologia que Machado de Assis tão bem apreendeu4 que, ao ser acionada, expressava um empenho para a recuperação de um bem privado e o restabelecimento da ordem escravocrata. Trata- se de uma tecnologia que deixa transparecer as tensões que procura dissimular, porquanto, em cada detalhe dessas formulações, fica explícita uma marca, um gesto, um nome, que poderia significar a chave ou o caminho para a possível recaptura da propriedade perdida ou exatamente o contrário nos corpos que conseguiram escapar definitivamente.

Cada enunciado remete ao conjunto de signos que demarcam a propriedade humana e sinalizam para práticas de coação e crueldade que estavam naturalizadas no cotidiano do cativeiro. Nesse sentido, os avisos apresentam formulações que conferem um testemunho e uma materialidade discursiva referente ao confronto daquelas forças sociais; exprimem o poder e a repressão da autoridade escravocrata e a reação pela fuga; exprimem sentidos que remetem à ordem e à transgressão; falam do poder em nuances e em movimento, ao tempo em que não ocultam indícios daquele exercício político impresso em marcas que remetem à violência e às experiências de dor.

CORPOS QUE SIGNIFICAM E ESCAPAM

Como resultado da superposição da economia punitiva escravista e da forma da repartição disciplinar articulada na imprensa moderna, corpos que escapam aparecem sistematicamente assinalados em visualidades reconhecíveis, sob a linguagem e em séries que são características nessas peças de divulgação: corpos femininos aparecem designados pelo nome, pela cor, por detalhes do cabelo, da pele, do rosto e do corpo; pela idade; por certos trejeitos ou costumes; pelas funções que ocupavam e também por roupas que vestiam, que foram a elas dadas ou por elas subtraídas. Não por acaso, com o mesmo valor da oferta estimada para gratificação pelo proprietário da personagem Arminda, a “fujona” de Machado de Assis, Christina também foi objeto da procura de seu proprietário, tal como registra o aviso na edição de sexta-feira, 3 de agosto de 1877, daquele jornal:

100$000

(…) Fugio no dia 2 de Fevereiro a parda escura de nome Christina, altura regular, olhos vivos, bem fallante, de 16 a 18 annos, figura bonita, é lavadeira e engommadeira, levou vestido de lã verde e casaco de flanella encarnada com cordãosinho preto e calçava chinellas. A quem a apprehender e levar a seu senhor abaixo assignado, á rua dos Pescadores n. 12, se gratificará com a quantia acima e protesta-se com todo o rigor da lei contra quem lhe dér couta. Antonio Gomes de Castro. (…)5

Christina, apesar da pouca idade, representava uma propriedade de valor por cuja recaptura o Sr. Antonio Gomes de Castro estava disposto a pagar 100$000. De acordo com os avisos reunidos, as gratificações variaram de 10$000 a 200$000. Era “figura bonita”, “parda escura”, tinha “olhos vivos” e “altura regular”. A “lavadeira e engommadeira” saiu da casa de seu proprietário calçada em “chinellas” e bem vestida de “lã verde e casaco encarnado”. Não apresentava, ao menos no aviso, as marcas duras da escravidão que muitos outros corpos mais vividos exibiam. Como se denota no aviso acima, as marcas do cativeiro não estavam ainda muito nítidas no caso de moças novas ou mesmo meninas que apareciam em aspectos fisionômicos significativos da beleza, da juventude, da pouca experiência de vida entre outros, que, todavia, não escondem o traço da sagacidade.

Isso é também o que se depreende do aviso de fuga da negrinha Luiza, que tinha dentes bonitos e apenas 13 anos. Talvez em virtude da pouca idade ou das parcas posses da proprietária, eram oferecidos apenas 10$000 como recompensa a quem a apreendesse:

10$000

(…) 10$000 de gratificação a quem aprehender a negrinha Luíza e leva-la á sua senhora, á rua da União n. 2D, que fugio no dia 3 do corrente, ás 7 horas da noite, cujos signaes são os seguintes: crioulla muito escura, cabellos annelados, dentes bonitos, idade 13 annos; levou um vestido de chita xadrez largo, encarnado e preto; desconfia-se que esteja acoutada na praia ou rua do Sacco do Alferes, na da América ou na da Chichorra: o motivo desta desconfiança é ella ser recatada, não sahir á rua e nem ter conhecimentos. (…)6

O aviso de fuga de Luiza, “crioulla muito escura, cabellos annellados, dentes bonitos”, exibe nela além do traço do “recato”, que despista aquele a procura, o da ignorância. Do enunciado, observo que, mesmo nova, recatada, pouco relacionada ou conhecedora da vida e das ruas, ela escolheu, planejou e conseguiu fugir do cativeiro, levando um “vestido de chita xadrez largo, encarnado e preto”. Folheando o jornal, recolhi dezenas de avisos que falam de meninas e de mulheres cativas, sempre pelos nomes. À medida que elas os corpos têm mais idade, os enunciados aparecem enriquecidos com outros detalhes. Apresentam “sinais particulares” nas marcas da violência que servem para identificá-las nas ruas e, sobretudo, para nomeá-las como “fugitivas”, ao figurá-las como peças capazes de inventar ardis ou estratagemas para escapar do cativeiro e, ainda assim, serem vistas, reconhecidas como escravas.

É o que se imagina, ao ler o aviso da escrava que fugira no dia 9 de fevereiro de 1872. Felizarda andava fugida havia dois meses, quando sua proprietária publicou o seguinte texto:

Attenção

Continua fugida desde o dia 9 de Fevereiro a escrava Felizarda, com os signaes particulares: baixa, magra e fraca figura, tem o dedo indicador da mão esquerda alejado, uma orelha defeituosa, falta de dentes na frente, volta os pés no andar, para fora, desconfia-se que fosse desencaminhada e que esteja alugada em alguma casa ou acoutada; porisso protesta-se contra quem a tiver a seu serviço, sob pena de pagar 1$ diários, desde o dia que anda fugida, a quem apprehender e a levar á sua senhora Maria Cândida de Menezes á rua do Sabão n. 230, receberá gratificação de 20$000.7

Baixa, magra e fraca figura, Felizarda tinha um dedo aleijado, uma orelha defeituosa e faltavam-lhe os dentes na frente. Conforme a descrição publicada, andava com os pés para fora, ou seja, dos pés à cabeça a descrição esboça a imagem do corpo combalido, marcado pelas agruras da vida no cativeiro. Não obstante as marcas que sugerem diferentes lesões, era um corpo que escapa à condição que lhe foi imposta, provavelmente para buscar negociá-la em melhores termos, mesmo que por meio da prestação de seus serviços a outro senhor. Os “dentes arruinados”, “podres” ou a falta deles eram traços recorrentes, marcas quase obrigatórias naqueles corpos que aparecem com cicatrizes nas faces, entre muitas outras marcas de “costuras”, “queimaduras”, “aleijões”, “feridas ainda abertas”, “pernas arqueadas”, “dedos tortos” no espectro de “defeitos” descritos nos avisos. São marcas que desenham corpos escravizados que escapam e, assim, apresentam sinais de reprimenda e de advertência, de reação e de dor. Os primeiros, da parte dos anunciantes da classe senhorial, os dois últimos, pensados do ponto de vista desses corpos que escapam.

Era também freqüente, nos avisos, a menção à embriaguez, à gagueira, entre mazelas outras que costumavam distingui-los, estigmatizá-los. Nessas imagens, embaralhadas também estavam marcas físicas e traços morais num jogo não inocente de representações e significações. Além das lesões físicas, como as da escrava Angélica, que tinha “uma vista a menos”, e da crioula Ermelinda, com um “corte do lado dos olhos”, as “qualidades” de caráter eram salientadas para produzir corpos de escravas fugitivas. Eram sinais que se imprimiam em corpos de “fujonas” para divulgá- los, mas também denunciá-los, sujeitá-los e desaprovar-lhes a conduta insubmissa. Geralmente, estes últimos sinais eram expostos por meio de termos que expressam o desagrado e o prejuízo do proprietário. Por exemplo, apareciam no aviso da fuga de Delfina, que, escrava, além de portar cicatriz no beiço superior do lado direito e da falta de dentes, era descrita como “muito disfarçada e fingida”8. Fingida, mas cobiçada.

Ademais, os avisos em que proprietários reclamam suas propriedades serviam como um registro datado da transgressão para fins de penalização, inclusive, dos aliados envolvidos. Se pensada sob a perspectiva de ampliação da cidade e das ocupações urbanas, bem como dos interesses comerciais e laços sociais, seria importante tentar coibir o gesto de pessoas que pudessem apoiar ou até incentivar as fugas. Como um boletim de ocorrência policial, o registro funcionava, portanto, como um aparato de controle e manutenção da ordem escravocrata. O protesto a quem desse abrigo aos fugidos fazia parte do aviso e possibilitava que fossem estimados valores que deveriam ser pagos por aquele ou aquela que os/as “acoutasse”. A ameaça aos que praticaram o “acoutamento”, portanto, estava quase sempre explícita nos avisos, e o enunciado significava mais uma expressão do conflito deflagrado e da repressão àqueles que contrariavam a regra escravocrata.

De acordo com a Lei Penal do Império, a escrava, ou escravo, era considerada rês, quer dizer, simultaneamente coisa e pessoa. Não participava da vida da civitas, pois estava privada de capacidade, não tinha direitos civis, menos ainda políticos9. Pela norma vigente baseada no direito romano, escrava ou escravo nada adquiria para si, mas para seu senhor10, fossem “direitos reais, desmembrações da propriedade, créditos, legados, herança, posse, ainda que sem ciência e consentimento do senhor.11 Na prática, porém, escravas/os “cultivaram para si nas terras nas fazendas dos senhores, fazendo seus todos os frutos, que são seu pecúlio”; muitas delas puderam trabalhar como lavadeiras e quitandeiras e circular na Corte, assim como os homens escravizados, desde que de “ajuste com o próprio senhor, pelo qual fosse o escravo obrigado a dar-lhe um certo jornal; o excesso seria do escravo”12.

A prática da escravidão ao ganho possibilitava que cativos circulassem em meio aos libertos e às pessoas livres, é claro. Embora cativos postos ao ganho fossem obrigados a portar uma licença e/ou uma placa expedida pela Câmara Municipal13, nem sempre o controle era eficiente a ponto de impedir que fugidos se misturassem à população urbana e se candidatassem a uma vaga de trabalho entre muitas categorias inclusive do serviço doméstico, setor que crescia e absorvia trabalhadores cativos, libertos e livres. No caso das mulheres, ganhadeiras formavam com as forras e livres uma expressiva força de trabalho urbano, vendendo quitandas, café, frutas, refrescos, e promovendo um comércio alternativo que não parecia de pouca monta14.

Da janela para a sociedade carioca no passado recente, enxergada nos avisos de fuga, consegue-se imaginar muito e entrever possibilidades para mulheres que certamente interagiam com companheiras e companheiros fugidos, forros e livres, criando estratégias de escape da contingência do cativeiro. O enunciado que se repete nos avisos registra o protesto de proprietários e sinaliza para a penalização de pessoas livres, portanto, expressa tensões e articulações sorrateiras que culminavam com as fugas (ou vidas que se iniciavam após aqueles episódios), bem como a fragilidade da autoridade pública e privada no controle urbano sobre os corpos que eram escravizados.

A discussão sobre a legislação que fundamentava a medida repressiva torna manifesta a inquietação do poder público em relação à questão das fugas. Como esclarece Gebara, em 1885, a Câmara dos Deputados chegou a aprovar um projeto de lei para a definição de multas para quem acoitasse fugidos/as, mas não havia legilsação anterior que qualificasse o delito – “acoutamento”. Como o Código Criminal não permitia que se estabelecesse pena para um delito não qualificado, o projeto foi emendado e o acoitamento foi transformado em furto15. Na ótica do contemporâneo Martinho Campos,

(…) nas capitais onde a polícia protege o abolicionismo o crime dá-se em larga escala; não assim nas províncias onde o fazendeiro vai buscar o escravo onde quer que esteja e faz o acoutador pagar os jornaes. Em todo o caso bom é que a lei trate de corrigir o abuso. (…)16

Ou seja, nas duas décadas que antecedem a abolição, observamos outras possibilidades. No campo, em locais menores, onde a política, a polícia e a lei ainda estavam na esfera do poder pessoal e privado, as fugas podiam ser inibidas. Já nas capitais de província, inclusive na capital da Corte, a situação parecia fugir ao controle e o crime não por acaso mal definido já se dava em larga escala. Na prática, enquadrar as práticas de “acoutamento” no delito de furto foi uma forma encontrada para tentar ampliar o espectro de força e a coerção do instrumento legal de repressão. Corpos que fogem da escravidão, corpos que abrigam os fugidos e corpos que trabalham nas ruas e, quando cativos, são “colocados ao ganho”, são faces de uma mesma ordem, ou desordem, na medida em que são resultantes da mesma tensão política que se esgarça e produz uma economia simbólica ambivalente.

Reunidas na capital da Corte, essas forças configuram condições de possibilidade para a formulação desses discursos ordenadores. Por sua vez, os textos, ao refratarem aquelas tensões cotidianas, exibem materialidades que nos permitem adentrar a sociedade, observar poderes em movimento, capturar desejos e motivações controversas que se produzem e exibem nas páginas dos jornais, dando a ler o trânsito da dominação, de sujeitos, assujeitamentos e insubordinações nas ruas onde viviam mulheres cativas, entre forras e livres, ora trabalhando ao ganho, ora fugindo, deixando filhos, parentes e amigos/as para trás ou abrindo caminhos para encontrá-los.

Os avisos evidenciam corpos insubordinados, marcados com cicatrizes, mas antes delas, pela genitália feminina, pela cor da pele preta, parda, retinta, por constituírem um valor de objeto, mercadoria, por invocarem um sentimento de posse; por serem considerados propriedades, lucros, ou o patrimônio de um senhor; e reconhecidos por funções e atribuições que os distinguiam na sociedade enquanto mulheres cativas. Eram mulheres de que se apropriavam, ou mulheres destituídas da posse do próprio corpo, do destino, e da possibilidade de expressar vontade, até que escapassem. Por tudo isso, aqueles que significavam mulheres escravizadas, eram corpos desejados. Singulares nas marcas significativas da abjeção, da transgressão e da recusa daquela ordem, suas práticas plurais emergem encerradas na materialidade única que remete à conduta considerada fora da norma e desviante. Nessas imagens da violência, da repressão, negociação ou da transgressão à ordem escravocrata, observo a elaboração da afirmação identitária, como atenta Tânia Swain, em que os corpos de mulheres que fogem aparecem imersos na matriz da inteligibilidade binária do sexo-gênero, da raça-etnia e do estatuto servil. Na forja binária, essencialista, assimétrica e disciplinar que confere inteligibilidade aos corpos, aqueles também estão construídos por oposição ao referente fixado pelo masculino, modelo desdobrado em homem branco, proprietário e livre, que dá origem a uma “cascata de desigualdades”. Desigualdades que, como sublinha a historiadora,

(…) encontram-se, assim, fundadas em um discurso de evidência, ocultando-se, desta forma, que a própria idéia de diferença sexual pressupõe todo um aparato valorativo, em que o sexo biológico é tomado como parâmetro principal na classificação do humano. (…) 17

Em 13 de maio de 1888, entretanto, todas elas deixariam ao menos de ser identificadas pelas marcas do estatuto da escravidão. Mas, mesmo assim, estariam preservadas algumas das marcas que as distinguiam como seres hierárquica e culturalmente considerados inferiores, tais como as de sexo-gênero, de raça-etnia. Também não se perderiam as marcas da violência vivida, forjadas na pele e na memória do cativeiro.

Com a abolição, desapareceriam definitivamente dos jornais os avisos que contam fragmentos importantes das histórias de tantas mulheres, inclusive de Delfina, Helena, Anna de Benguela, Rosa, a preta Balbina, a parda Benedicta, a preta Lucrécia, que tornou a fugir, Martha, conhecida por Martinha, Rosa, preta mina, a crioula Isabel, a preta Fortunata, Angélica, Ermelinda, Sabina, Joanna preta, negrinha Luiza, a parda Cândida, a escrava Ignez, crioula do Norte, Felizarda e tantas outras…

Seus nomes desapareceriam. Tampouco suas marcas ou micro-fragmentos de suas histórias estariam nas páginas do jornal, lugar em que elas figuraram como cativas, corpos-mercadorias perdidas, objeto de uso, abuso e das mensagens de reprimenda à sociedade que fugia ao controle da norma escravista. Corpos que significavam o sentimento de reprovação, raiva e a injúria de proprietários que se sentiram lesados com a perda de seus serviçais, suas rendas e patrimônios. Aos nossos olhos, avisos e nomes significaram, principalmente nas duas últimas décadas do Império, bandeiras e evidências de luta nos discursos sobre a escravidão: suportes que nos possibilita ler a criação cuidadosa e ruidosa de detalhes figurativos, reveladores de lutas sociais e simbólicas, que superpunham resistências e antigos poderes punitivos às formas engenhosas da disciplinarização moderna.

Trata-se de uma superposição de signos e significados que se exprime na aparelhagem dos avisos de fugas de escravas publicados na imprensa e que modelam aqueles corpos em detalhes nada disciplinados. De acordo com a perspectiva política de que fala Foucault, naqueles corpos nenhum detalhe é indiferente, tanto pelo sentido que nele se esconde como pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo18. Na conjuntura peculiar do regime escravista sob o ideário liberal19, os avisos revelam a superposição de temporalidades, isto é, a manifestação do humanismo moderno que se articula no interior de relações de trabalho compulsório revividas da experiência colonial.

Nesses pequenos enunciados, é possível imaginar, perceber a orquestração política dos

detalhes, e sentir o exercício do poder entranhado nas pequenas coisas. Como ensina Foucault,

(…) uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.20

 


 Notas

1 INHIS / Universidade Federal de Uberlândia / MG.
2 GEBARA, Ademir. O Mercado de Trabalho Livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 135.
3 MATTOS, Hebe Maria. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: NOVAIS, Fernando (Dir.) & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.) História da Vida Privada no Império. Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 337- 384.
4 Refiro-me ao conto “Pai contra mãe”, publicado em ASSIS, M. de. Relíquia da Casa Velha. Vol.2. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.H.Jackson Inc. Ed, 1946.
5 Jornal do Commercio, sexta-feira, 3 de agosto de 1877.
6 Jornal do Commercio, quarta-feira, 5 de julho de 1882. 7 Jornal do Commercio, sabbado, 6 de abril de 1872.
8 Jornal do Commercio, terça-feira, 2 de abril de 1872.
9 WEHLING, Arno. O Escravo ante a Lei Civil e a Lei Penal no Império. (1822-1871). In: LACOMBE, Lourenço Luiz (Dir.) 100 Anos de Abolição da Escravidão. Petrópolis: Museu Imperial, 1988, p.106.
10 Nesse aspecto o direito imperial continuava a tradição colonial, por sua vez, baseada no direito romano. A exceção era o caso de herança, que, se deixada a escravo de outrem, não revertia para este, considerando-se nulo o testamento. WEHLING, A. Op. cit., passim.
11 Conforme o Art. IV, do Cap. III de O Escravo ante as Leis Positivas e o Liberto, § 31, “O escravo nada adquirira, nem adquire, para si; tudo para o senhor”. Tal era o princípio do direito romano; O § 33 esclarece ainda que “por exceção, porém, adquiria o escravo para si em vários casos, v.g. legado de alimentos e pecúlio”. In: MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Coleção Dimensões do Brasil. Petrópolis: Vozes/MEC, 1976, pp. 61-2.
12 Idem, ibidem.
13 Sobre o crescimento vertiginoso de pedidos de licença nas décadas de 60 e 70, ver: SILVA, M. R. N. Negro na Rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec,1988.
14 Idem, ibidem.
15 GEBARA, A. Op. cit., pp. 158-9.
16 ASI, Rio de Janeiro, 1886. Apud GEBARA, A. Op. cit., p. 159.
17 SWAIN, Tânia Navarro. Mulheres, sujeitos políticos: que diferença é esta? In: SWAIN, Tânia Navarro & MUNIZ, Diva do Couto Gontijo (Org.) Mulheres em Ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis, Belo Horizonte: Ed. Mulheres, PUC Minas, 2005, p. 341.
18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 129-130.
19 Sobre a especificidade do liberalismo na realidade escravista brasileira, ver SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de Debates, 1, 1976; BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1992; GRINBERG, K. Liberata, a lei da ambigüidade: ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
20 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit., pp. 129-130.

 


Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1997. GEBARA, Ademir. O Mercado de Trabalho Livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Coleção Dimensões do Brasil. Petrópolis: Vozes/MEC, 1976.

MATTOS, Hebe Maria. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: NOVAIS, Fernando (Dir.) & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.) História da Vida Privada no Império. Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 337- 384.

SILVA, M. R. N. Negro na Rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec,1988.

18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 129-130.
19 Sobre a especificidade do liberalismo na realidade escravista brasileira, ver SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de Debates, 1, 1976; BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1992; GRINBERG, K. Liberata, a lei da ambigüidade: ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
20 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit., pp. 129-130.

SWAIN, Tânia Navarro. Mulheres, sujeitos políticos: que diferença é esta? In: SWAIN, Tânia Navarro & MUNIZ, Diva do Couto Gontijo (Org.) Mulheres em Ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis, Belo Horizonte: Ed. Mulheres, PUC Minas, 2005.

WEHLING, Arno. O Escravo ante a Lei Civil e a Lei Penal no Império. (1822-1871). In: LACOMBE, Lourenço Luiz (Dir.) 100 Anos de Abolição da Escravidão. Petrópolis: Museu Imperial, 1988.

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