30 anos do Código de Defesa do Consumidor: uma análise sobre publicidades discriminatórias nas relações de consumo

Diante de uma sociedade movida pelo consumo, pela superprodução de bens e serviços, surge a necessidade de uma proteção e regulamentação dos direitos dos/as consumidores/as. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.078/1990, que regulamenta as relações de consumo, completou, no dia 11 de setembro, 30 anos de existência.

O reconhecimento a defesa do/a consumidor/a como direito fundamental está previsto no art. 5º da Constituição Federal, inciso XXXII, que estabelece “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. A Defesa do Consumidor também está incluída na Constituição Federal entre os princípios gerais de Ordem Econômica, no art 170 da Lei Magna: “A ordem econômica, fundamentada pela valorização do trabalho humano e livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (….) V- defesa do consumidor;”.

Vale ressaltar que, o CDC estabelece as responsabilidades e os mecanismos para prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais nas relações de consumo; define os mecanismos para atuação do Poder Público, como aplicação de sanções administrativa; e estabelece os tipos de crimes e as punições para quem pratica infrações penais.

A proteção contra a publicidade enganosa e abusiva é direito básico de todo/a e qualquer consumidor/a e encontra respaldo no art. 6, inciso IV do CDC, senão vejamos:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

Nesse contexto, após uma rápida pesquisa pela internet, é fácil encontrarmos campanhas publicitárias com conteúdo discriminatórios e ofensas direcionadas às mulheres negras. Entretanto, a Constituição Federal de 1988, veda, expressamente, a prática de preconceito e discriminação com base na origem, raça e cor, senão vejamos:

“BOMBRIL É ACUSADA DE RACISMO POR RELANÇAMENTO DE PRODUTO ‘CRESPINHA”; “NOVA PUBLICIDADA DA CERVEJARIA DEVASSA E SCHINCARIOL: ‘É PELO CORPO QUE SE RECONHECE A VERDADEIRA NEGRA.’

É de conhecimento geral a existência do preconceito racial, da discriminação racial e do racismo na sociedade. As pessoas negras são vítimas de atos discriminatórios desde o período escravista, sendo que, este quadro é mantido na sociedade contemporânea.

A Constituição Federal é a lei fundamental de organização do Estado. O Diploma Legal de 1988 é mais abrangente do que as anteriores ao vedar preconceito e discriminação com base na origem, raça e cor, mas a Lei ainda não se reflete na realidade.

O artigo 5º da Constituição traz os direitos e as garantias fundamentais. Consagra, em seu caput, o princípio da igualdade (art. 5º, caput e I), determinando que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Com vistas a tornar mais rigorosas as punições aos autores de delitos racistas, o legislador constituinte de 1988 fez inserir no artigo 5º, inciso XLII do Texto Magno, que determina a prática do racismo constituir crime imprescritível e inafiançável, sujeito à pena de reclusão.

Atualmente, encontramos no ordenamento jurídico brasileiro a Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, parcialmente alterada pela Lei nº 8.882, de 03 de junho de 1994 e pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, que dispõe sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, a denominada Lei do Racismo.

O artigo 1º da Lei pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

“Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra.” Essas são as palavras da filósofa Lélia Gonzalez para descrever a realidade da mulher negra no Brasil.

Ainda nos dias de hoje, a mulher negra continua vítima e vulnerável as práticas abusivas perpetradas por pessoas não-negras. “O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de família e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, não só durante a escravidão.” (Abdias Nascimento)

Como consequência, criou-se a imagem de objetificação da mulher negra. “Exploração econômica e lucro definem, ainda outra vez, seu papel social.” (Abdias Nascimento)

Nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor proíbe, expressamente, qualquer veiculação de publicidade enganosa ou abusiva, com conteúdo discriminatório, constituindo, inclusive, crime contra as relações de consumo, sujeito a penalidade de detenção de três meses a um ano e multa. (Artigos 37 e 67)

Entende-se como publicidade enganosa aquela que tem como característica induzir o/a consumidor/a em erro. O intuito desse tipo de publicidade é esconder informações do produto ou serviço referente a qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados.

Já a publicidade abusiva é aquela que se utilizam de meios escusos, contrários à ética, aproveita da suscetibilidade dos/as consumidores/as para “impelir” aquilo que se pretende vender.

Nesse contexto, a publicidade discriminatória é considerada pelo CDC como abusiva. Nesses casos, os fornecedores/as atribuem um tratamento desfavorável a um grupo de pessoas, com base em características raciais e atributos físicos, para vender um produto ou serviço.

Com destaque para publicidade discriminatória colacionada acima, citamos as palavras da professora Sueli Carneiro no texto “Gênero, raça e ascensão social”: “Nós, mulheres negras ou brancas, não somos fiscais do tesão de ninguém, temos outras prioridades políticas: o combate a todas as formas de discriminação e a violência sofrida pelas mulheres em geral e pelas mulheres negras em particular, tratando-as a partir do mais grotesco chauvinismo, como objetos de consumo e ostentação. Meros adornos do status e poder do homem.”.

Por fim, cumpre destacar que, em que pese todos argumentos e fundamentação expostas acima, a publicidade veiculada das Empresas de CERVEJARIA DEVASSA E SCHINCARIO: “É PELO CORPO QUE SE RECONHECE A VERDADEIRA NEGRA” NÃO foi considerada propaganda abusiva ou discriminatória pela 9ª vara Cível de Vitória/ES[1]. De acordo com o Juiz de Primeiro Grau inexiste a ato ilícito passível de indenização pois não “há qualquer mensagem racista, sendo o anúncio original, irreverente, refletindo uma essencialidade, autenticidade e alegria”. A decisão foi mantida pela TERCEIRA CÂMARA CÍVEL do Estada do Espírito Santo. De acordo com a decisão: “As provas dos autos demonstram não ser abusiva ou discriminatória, em sentido lato, a propaganda apreciada no contexto dos autos, em relação ao produto objeto da venda”.

Percebe-se que, existem hoje no ordenamento jurídico, várias normas que possibilitam punição da conduta ofensiva nas relações de consumo, praticadas por fornecedores/as de serviços ou produtos em casos de publicidade discriminatórias. Entretanto, no caso concreto, há de ser questionado se há de fato uma aplicação da legislação penal no Brasil.

Fica um questionamento: Será que fornecedores/as, empresários/as não cometem infrações penais contra as relações de consumo? Será que as lesões contra mulheres negras, nas relações de consumo, acontecem com pouca frequência?

*Baiana, advogada, afroempreededora, cofundadora do escritório MFG Advogadas Associadas, pós-graduanda em Direito do Consumidor pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela UNIFACS.

REERENCIAS:

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. 2019. p. 94.

GONZALEZ, Lélia (1980). RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf. Acesso: 13.09.2020

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 2016. P. 73.

+ sobre o tema

Racismo lá e cá

Aqui, o racismo continua como sempre, quase invisível e...

Caso Ágatha reabre debate sobre endurecimento de leis anticrime no Brasil

Garota de oito anos morreu após ser atingida nas...

Mãe perde guarda da filha após jovem participar de ritual do candomblé

Uma mãe de Araçatuba, no interior de São Paulo,...

para lembrar

Biko: A Consciência Negra e a Busca de uma Verdadeira Humanidade

Este domingo comemoram-se os 70 anos de Steve Biko,...

Os olhares racistas causam constrangimentos

“Você tá dirigindo um carro O mundo todo tá...

Portal erra tradução. Relatório da ONU não diz que políticas de igualdade racial “fracassaram”

O portal Estadão (repicado nos portais UOL, IG e outros) noticiou...

Nota de alunos que ingressam na UFMG pela cota já supera a dos não cotistas

Cotistas que garantiram uma vaga na UFMG neste ano...
spot_imgspot_img

Caso João Pedro: família cobra júri popular para policiais acusados

Familiares e defensores dos direitos humanos protestaram nesta terça-feira (20) com faixas em frente a sede do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), no centro...

Quase 85% da população preta afirma ter sofrido discriminação racial

De cada 100 pessoas pretas, 84 relatam já ter sofrido discriminação racial. A revelação faz parte de uma pesquisa apoiada pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR), divulgada...

Estado como um dos negócios mais rentáveis das elites

Os filhos dos amigos viram estagiários, os estagiários viram assessores, os assessores viram secretários. E, no final, todos se orgulham de suas difíceis trajetórias...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.