5 discos para não esquecer que o rock é som de preto Vol. 2

Que o berço do rock é preto todo mundo já sabe. Se o mundo não sabe bem deveria saber. Com os avanços das discussões sobre as relações raciais nos últimos anos muitas pesquisas buscaram provar as raízes pretas do rock. Eu mesmo há anos me aventurei nessa produção afirmativa ao elaborar o primeiro volume da coletânea que nomeia esse artigo. 

O rock e suas inúmeras facetas nascem da audácia criativa de nomes como Sister Rosetta Tharpe e seus riffs transgressores, Robert John e mística da encruzilhada, Chuck Berry e seu molejo malemolente e Little Richard com sua criatividade pomposa. Todos essa criatividade germina nos Estados Unidos da América por volta dos anos 1950, mas tem suas origens na ancestralidade do continente africano. Estes são princípios que desaguam por todo o atlântico negro e fundam praticamente todo gênero musical moderno como bem afirma o pesquisador Paul Gilroy.

Provocações feitas, busco nesse segundo volume exemplificar a influência negra nas mais variadas vertentes roqueiras das últimas décadas. Pela busca por diversidade algumas concessões precisaram ser feitas, então nem todas as bandas tiveram em todas suas formações apenas artistas necessariamente negros. Contudo, o protagonismo ainda é preto. Espero que esse texto, como os demais citados por aqui, sejam inspirações para mais listas, coletâneas, pesquisas e produções que enfatizem que o rock é som de preto!

Os Brazões – Os Brazões (1969)

A tropicália brasileira não passou batida pelas mãos negras. Assim como a nossa bossa ser negra não é novidade, vide Alaíde Costa e Johnny Alf, na mistura do tropicalismo o negro não foi apenas mais um tempero. Encabeçados por Miguel de Deus, futuro pioneiro de black music brasileira, a banda Os Brazões serviu de grupo de apoio para os tropicalismos de Gal Costa e Tom Zé na virada dos anos 1960, além de ter no seu repertório músicas dos principais expoentes da época, como em “Pega a Voga Cabeludo” de Gil e “Gotham City” de Macalé.

Muito além da bat-macumba em seu único lançamento o grupo faz uma mescla de guitarras fritadas, efeitos psicodélicos e uma cozinha lisérgica aguçada por uma percussão macumbeira. Apesar de ser um disco que não recebeu a devida atenção, por ter sido ofuscado por gigantes talentos da época, o grupo não fica atrás dos bastiões da época. Fica sempre a curiosidade de como a banda poderia se encorpado caso a psicodelia então vigente tivesse casado com o caminho funk/soul que Miguel de Deus trilhou anos depois.

Betty Davis – Betty Davis (1973)

Betty Davis, a mulher que eletrificou Miles Davis. Só esse cartão de visita seria o suficiente para justificar a presença desse petardo aqui. Entretanto, Betty não se limita ao curto casamento com Davis. Modelo de formação, a artista sempre compreendeu a importância do impacto, seja visual ou sonoro, na indústria cultural. Assim sua genialidade aliou visuais provocantes e arrebatadores a um som elétrico e pulsante para criar sua contribuição ao emergente movimento de direitos civis no seu álbum de estreia.Composto integralmente por Betty Davis e contando com músicos da banda Graham Central Station, como o próprio Larry Graham, e da banda de Carlos Santana, como o guitarrista Neal Schon, seu disco homônimo é um furacão do início ao fim. Com seus vocais rasgados, como se Elza Soares tivesse dado aulas de canto para Janis Joplin, mas também apresentando performances doces e sensuais carregadas pelo groove do funk Betty conduz com maestria as canções do long play. Suas letras de duplo sentido, suas posturas instigantes e envolventes, como a de outras artistas negras de sua época, poderiam facilmente constar como influências a divas atemporais como Beyoncé e Madonna.

24-7 Spyz – Strenght in numbers (1992)

O que acontece quando se junta a agressividade do hardcore, thrash metal e punk com a pegada do jazz, soul e reggae?  O 24-7 Spyz tem a resposta. Formada por jovens negros do Bronx, Nova Iorque, nos meados dos anos 1980 os espiões em tempo integral buscaram inovar em suas composições desde o primeiro lançamento. Comparados aos complexos Bad Brains, Living Colour e Fishbone, pioneiros nessa mescla de influências negras, a banda entrou no ringue na virada da década de 1990 em tempos que a música pesada e elaborada dava lugar a um som mais simples e direto como o grunge de Seattlle.

Sem jogar a toalha o grupo lançou uma dupla de discos com referências bem variadas até comprimir o seu som a porrada que é Strenght in numbers. Flertando ao que seria conhecido para frente como groove metal, principalmente pela ação dos brazucas do Sepultura, o 24-7 Spyz encontra a sua melhor forma. O grupo encrudesce sem perder a gordura por completo, como se pode notar no peso das composições entrecortando com o suingue das guitarras limpas do ska reggae e do baixo funk cheio de soul certeiro e pontual.

Black Pantera – Ascensão (2022)

O Black Pantera é a banda que melhor representa o Brasil de hoje. Não o Brazil sucateado, explorado e conservador, mas sim uma brasilidade aguerrida, plural e criativa dentro do som pesado. Direto, sisudo e radical o Black Pantera não tem medo de se posicionar politicamente em um cenário muitas vezes com mais reacionários do que deveria. O Black Pantera dá uma aula de história para o Brasil, como muito de nossos roqueiros parecem ter esquecido nos últimos anos, matéria que outros estilos, como principalmente o rap, vem fazendo com maestria. O grupo de Uberaba honra as raízes políticas da origem negra do rock com letras que aprofundam a discussão racial e social do país sem cair em jargões esvaziados. Como vemos em Fogo nos racistas, “Eu sei, a nossa simples existência já é uma afronta/Os demônios em você/Não aguentam ver um outro preto que desponta”.

Musicalmente a banda faz um estrondo visceral entre o thrash, o punk e o hardcore, exibindo domínio de diferentes influências sem deixar de criar também um som autoral e original. As guitarras cortantes, o vocal rasgado e linhas de baixo muito bem executadas fazem a ascensão do Black Pantera ser algo a se comemorar por muitos. O que se reflete na declaração do baixista Charles da Gama, que diz que Ascensão, “fala de diversas questões e da ascensão não só do povo preto, mas da ascensão de qualquer pessoa que quiser se relacionar, independente de cor, sexo, religião, da ascensão de todas as pessoas que estão realmente sendo oprimidas no Brasil e no mundo todo”.

Witch – Zango (2023)

Nós pretendemos causar destruição. Esse é o nada simples propósito do Witch, conforme justifica o acrônimo no inglês, We Intend to Cause Havoc, que os nomeia. Ainda eufóricos com a independência recente da coroa inglesa, a recém-formada Zâmbia fervia diferentes influências culturais que resultaram na formação do Witch por Emmanuel Jagari Chanda no começo dos anos 1970. Influenciados pelos Rolling Stones de Mick Jagger que inspira o nome artístico do líder, uma apoteótica apresentação de James Brown no país e o desejo jovem de fazer barulho o Witch funda uma vertente pesada e africana para a música roqueira, o Zamrock.

Depois de dezenas de lançamentos, shows de grandes proporções e revoltas populares constantes o gênero, como suas bandas representantes, desaparece no mesmo estrondo que o origina. Porém, depois de quarenta anos de silêncio, o Zamrock cai no gosto de colecionadores e muito de dos discos do sub-gênero começam a ser relançados. O que culmina em uma nova formação do Witch com Jagari, músicos locais e europeus. No melhor sentido da magia negra, o Witch retorna para enfeitiçar uma nova geração com o seu tradicional rock de garagem, pesado, político e lisérgico ainda soando bem político e contemporâneo. Com essa travessia por ambos os lados do litoral atlântico conseguimos perceber que o rock é som de preto desde sempre e ainda muito continuará a ser. E doa a quem doer. Hoje, além de bandas, artistas e músicas temos uma crescente de diferentes profissionais que não nos fazem esquecer da origem preta e africana do rock. Iniciativas como a Tomarock produções do pioneiro Luciano Tomarock e as Metaleiras negras mostram que essa afirmativa ecoa para diferentes ações e cada vez ganha mais proporção no cenário do rock. Para quem mais quiser fazer coro, acrescente bandas, discos e iniciativas que não podem ficar de fora de uma futura terceira edição. Viva o rock preto!



Marco Aurélio da Conceição Correa*:

É pedagogo, escritor e pesquisador. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro, doutorando em educação (ProPed-UERJ) e pósgraduado em ensino de história da África (PROPGPEC-CP2). Autor dos livros Cinemas afro-atlânticos e Necropoéticas e outras histórias.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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